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observatório ecopolítica

Ano V, n. 101, novembro de 2021.

 

Controle das minúcias: pobreza e direito menstrual.

 

Em 2019, o curta-documentário Period. End of a Sentence recebeu a estatueta do Oscar em sua categoria, trazendo de vez para os holofotes a questão da chamada pobreza menstrual. O documentário retrata a menstruação como estigma em uma região da Índia, mas também como uma oportunidade de negócios sustentável e independência feminina.

 

O estudo Comfortably, Safely, and Without Shame: Defining Menstrual Hygiene Management as a Public Health Issue, publicado em 2015, identifica o interesse público em relação à "higiene menstrual" a partir da atenção à disparidade de gênero no ambiente escolar.

 

Estudos realizados na África, com o apoio da Fundação Rockfeller, mostraram a relação entre a evasão escolar das meninas e a menstruação. Além do papel de organizações não governamentais em trazer o tema para a discussão pública, os estudos também apontaram para a importância da atuação do setor privado. A grande empresa de produtos de higiene, Procter & Gamble (P&G), desde 2005, estabeleceu parcerias com ONGs, fundações, instituições de governo em vários países na África. O objetivo era "expandir seu mercado, construir uma marca, e aderir à responsabilidade ética e social que inclui o compromisso em educar as meninas sobre seus corpos".

 

Os estudos salientaram, ainda, que a intervenção a partir da escola, organizações e políticas governamentais tornou-se mais relevante por conta de circunstâncias específicas (como imigração compulsória) ou por questões culturais, em que a família nem sempre cumpria o papel de informar e orientar as meninas sobre o processo de mudança em seus corpos e como administrá-los.

 

Em relatório da UNICEF de 2005, o termo Menstrual Hygiene Management (MHM – Manejo da Higiene Menstrual, em português) foi definido como forma de possibilitar efetivas intervenções na saúde menstrual de meninas em idade escolar e passou a ser largamente adotado a partir de 2010.

 

Em 2013, a organização sem fins lucrativos, sediada na Alemanha, WASH-united, começou uma campanha global pela conscientização da importância da higiene menstrual, o que deu origem ao Menstrual Hygiene Day (Dia da Higiene Menstrual), em 28 de maio, celebrado oficialmente desde 2014.

 

A WASH (water, sanitation and hygiene/ água, saneamento e higiene) é um acrônimo usado no âmbito da ONU para definir as ações relacionadas à questão sanitária, de higiene e de acesso à água potável. A ONG alemã, WASH-united, em parceria com a UNICEF, P&G, entre outras organizações e empresas, tem como um dos focos principais a campanha Menstrual Hygiene Day (MHD).

 

O objetivo da campanha é dar fim a então intitulada pobreza menstrual até 2030 (ano previsto para a consolidação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), e construir "um mundo em que nenhuma menina ou mulher seja deixada para trás por menstruar e que: qualquer um tenha acesso aos produtos menstruais de sua escolha; o estigma menstrual seja coisa do passado; todos tenham informações básicas sobre a menstruação e como lidar com ela; todos tenham acesso a instalações adequadas a quem menstrua."

 

Em maio deste ano — mês em que se comemora o Dia da Higiene Menstrual (MHD) —, a UNICEF, junto ao Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), publicou o relatório Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos. De acordo com o relatório:

 

A pobreza menstrual é um fenômeno complexo, multidimensional e transdisciplinar caracterizado principalmente pelos seguintes pilares:

• falta de acesso a produtos adequados para o cuidado da higiene menstrual tais como absorventes descartáveis, absorventes de tecido reutilizáveis, coletores menstruais descartáveis ou reutilizáveis, calcinhas menstruais, etc., além de papel higiênico e sabonete, entre outros;

• questões estruturais como a ausência de banheiros seguros e em bom estado de conservação, saneamento básico (água encanada e esgotamento sanitário), coleta de lixo;

• falta de acesso a medicamentos para administrar problemas menstruais e/ou carência de serviços médicos;

• insuficiência ou incorreção nas informações sobre a saúde menstrual e autoconhecimento sobre o corpo e os ciclos menstruais;

• tabus e preconceitos sobre a menstruação que resultam na segregação de pessoas que menstruam de diversas áreas da vida social;

• questões econômicas como, por exemplo, a tributação sobre os produtos menstruais e a mercantilização dos tabus sobre a menstruação com a finalidade de vender produtos desnecessários e que podem fazer mal à saúde;

• efeitos deletérios da pobreza menstrual sobre a vida econômica e desenvolvimento pleno dos potenciais das pessoas que menstruam.

 

A chamada pobreza menstrual não estaria relacionada somente a uma questão econômica, mas também à falta de informação, à permanência de tabus, preconceitos e estigmas, iniquidade de gênero, à saúde reprodutiva e sexual, etc. Passa-se a falar de direitos menstruais.

 

Resolver a questão da pobreza menstrual torna-se meta a ser atingida para o sucesso dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O relatório da UNICEF assinala ainda que os objetivos relacionados à questão são, em primeiro lugar, o ODS 5 - igualdade de gênero; em seguida o ODS 1 - Erradicação da pobreza; ODS 3 - Saúde e bem-estar; ODS 4 - Educação de qualidade; ODS 6 - Água potável e saneamento; ODS 8 - Trabalho decente e crescimento econômico; e ODS 12 - Consumo e produção responsável.

 

igualdade de gênero e educação

 

Foi a constatação da evasão feminina do ambiente escolar em países ditos em desenvolvimento que moveu as organizações que já atuavam neste ambiente para que voltassem sua atenção à questão da menstruação.

 

Notou-se que, em países como a Índia, o acesso a produtos de higiene durante o período menstrual não necessariamente estava relacionado à ausência de recursos econômicos para a obtenção dos mesmos. A vergonha, a falta de informação, os tabus em torno da menstruação eram barreiras muito mais complexas do que a questão econômica.

 

O tema da menstruação, quando abordado na escola, por instituições ou organizações, geralmente era feito só entre mulheres e no contexto da saúde reprodutiva. Uma das bandeiras das iniciativas contra a pobreza menstrual está, portanto, na chamada educação para desestigmatização da menstruação tanto para meninas como para meninos.

 

O movimento internacional Girl Up encampou algumas destas iniciativas, incluindo o Brasil. A proposta do Girl Up é formar meninas ao redor do planeta para que se tornem líderes na mudança social para igualdade de gênero.

 

O Livre para menstruar é um dos braços deste movimento no Brasil e está por trás de campanhas para aprovação de projetos de lei que assegurem a "dignidade menstrual". Entre eles está o Projeto de Lei 4968/2019, vetado pelo Governo Federal este ano, que garantiria a "distribuição gratuita" de absorventes para meninas e mulheres consideradas em situação de vulnerabilidade.

 

Em novembro de 2020, a Escócia se tornou o primeiro país no mundo a aprovar uma lei que libera o acesso gratuito a produtos para higiene menstrual.

 

Enquanto isso, a inciativa privada continua atuando em parceria com governos e ONGs na promoção da dignidade menstrual. A P&G, cujos investimentos no tópico remontam ao início do século XXI, continua ativa no continente africano. Desde 2008, a Always, marca da P&G, segue com o programa "Always Keeping Girls in School" (Sempre/Always mantendo as meninas na Escola) na Nigéria, África do Sul e Quênia. Entre as atividades realizadas pelo programa estão a distribuição de absorventes, treinamento em MHM, saúde reprodutiva e integração de gêneros, e apoio psicossocial a meninas para que elas possam "se comprometer com a sua educação e futuro".

 

produção e consumo sustentáveis

 

O acesso a produtos para a chamada higiene menstrual levantam ainda uma outra questão que diz respeito à produção e ao consumo dito insustentável.

 

Se, de um lado, ressalta a importância de disponibilizar produtos higiênicos para a menstruação, como absorventes descartáveis, de outro lado, a questão ambiental torna-se cada vez mais latente na discussão pública.

 

A poluição do solo e das águas pelo descarte de material pode se tornar um fator que impactará diretamente nas condições sanitárias da localidade. Isto, por si só, anuncia que o uso de absorventes descartáveis entre meninas e mulheres é inferior ao estimado pelo bom senso; que está subestimada avaliação da contaminação de nascentes e de áreas de preservação; que o solo permanece contaminado por falta de saneamento básico.

 

No relatório da UNICEF, Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos, alerta-se para que sempre mais de um fator deve ser levado em consideração nas campanhas e ações de combate à pobreza menstrual. Nesse sentido, o relatório alerta que a solução não pode ser a mesma e que deve atender às condições específicas de cada comunidade, região, etc.

 

Por exemplo, o uso de panos higiênicos e outros materiais reutilizáveis seria uma solução ambiental e economicamente sustentável, porém encontram certas barreiras intransponíveis, até agora, por serem considerados anacrônicos ou anti-higiênicos.

 

No entanto, o relatório ressalta ser preciso considerar as condições de acesso à água limpa e produtos de limpeza que são quase inexistentes em algumas regiões. Nestes casos, os produtos reutilizáveis para a higiene menstrual deixam de ser uma solução adequada, porque podem se tornar fonte de infecções e doenças.

 

Uma alternativa, no entanto, que pretende abranger a questão ambiental bem como o escasso acesso a condições sanitárias adequadas, foi estabelecida pelo The Pad Project.

 

O projeto teve início com o curta-metragem Period. End of a Sentence. Neste documentário, uma máquina de produzir absorventes higiênicos de baixo custo e com material biodegradável é desenvolvida e instalada em uma vila próximo à Nova Delhi, na Índia. As mulheres recebem treinamento para utilização da máquina e com a produção conseguem atingir alguma independência financeira. Ao mesmo tempo, a venda e exposição do produto permitem que se abra uma discussão sobre a menstruação, cuja desinformação e tabu parecem ser a norma na região.

 

No país, que conta com um dos maiores índices planetários de mulheres violentadas, as que estão em período menstrual são consideradas como impuras, sendo-lhes vetada a entrada em determinados templos. Em manifestações recentes, quando milhões de mulheres se dirigiram aos templos para tentar dar fim à proibição, centenas delas foram presas e outras tantas espancadas por machos e pela polícia.

 

Tudo limpo, rentável, sustentável e asséptico, para nos fixar cada vez mais distante da própria vida, cada vez mais distante do bicho de carne, osso e sangue que somos.

 

fluxo de oportunidades

 

A biologia e a medicina ocidentais costumam explicar o sangue menstrual a partir de um processo relacionado com o ciclo reprodutivo da mulher. O sangue está diretamente relacionado ao útero. O ser humano sem útero não menstrua.

 

Segundo a perspectiva médico-biológica, de modo simplista, o útero se prepara todo mês para receber um embrião; quando a gravidez não ocorre o útero descama, e essa descamação com o sangue é a menstruação. Mas nem toda pessoa que tem útero menstrua; nem toda aquela que menstrua é fértil; e nem todas que são férteis querem engravidar.

 

Estudos antropológicos mostram em muitas culturas, atuais e no passado, a celebração da primeira menstruação, mas também, muitas vezes, tabus adicionados às mulheres menstruadas. O sangue da menstruação e do parto recebe uma aura de fascínio e pavor quando é encarado como a prova da capacidade de gerar vida e, ao mesmo tempo, a seu avesso. Isso, obviamente, não é exclusividade das sociedades não ocidentais. Mas, no ocidente, a menstruação também está envolta por restrições de condutas, aprendidas no interior das famílias, ou comunidades. Diferentes religiões, também, apresentam relações específicas com a menstruação, seja situando as mulheres como deusas ou como seres impuros.

 

O ocidente pouco dá relevância ao conhecimento que as mulheres indígenas, em certas sociedades, têm do próprio corpo, de sua saúde, e mesmo da reprodução ou de sua rejeição. Malinowski observou que entre os trobriandeses, apesar da existência de interditos sobre a mulher menstruada, isso pouco ou quase nenhum efeito tinha na vida cotidiana, e que o sangue não causava medo ou repulsa aos demais.

 

Mas há também sociedades e comunidades em que a menstruação é utilizada como justificativa para imposições de restrições e controle sobre o corpo da mulher, como o costume de afastar a mulher do convívio social quando menstruada. Também não é incomum o interdito de mulheres menstruadas em ralação à caça, para além das justificativas espirituais, pois sobrevive o medo de que o cheiro do sangue também atraia o perigo.

 

Em certo momento da história recente, a medicina e a psiquiatria ― no esteio da etimologia da palavra hystero do grego=útero e instrumentalizados pela construção psicanalítica sistematizada no livro número 1 de Freud, intitulado Histeria ― definiram que os seres com úteros eram suscetíveis à histeria. A incorporação de mulheres no mercado de trabalho acompanhou o desuso do termo. Em compensação, novos termos como T.P.M. (Tensão Pré-Menstrual) tornaram-se cada vez mais comuns para explicar qualquer excesso do chamado gênero feminino e foi regulado por lei.

 

Foi preciso entrar no século XX para que se tornasse de conhecimento público que uma parte considerável da população mundial sangra uma vez por mês. Mas se o assunto interessa à biologia por uma questão reprodutiva, a menstruação interessa ao liberalismo como oportunidade de negócios e investimento no capital humano.

 

A pressão das empresas privadas para a distribuição de absorventes pelos governos também é constitutiva de uma estratégia de venda. Os produtos distribuídos "gratuitamente" pelos governos são comprados de empresas, que geralmente negociam um valor mais barato por item, para lucrarem altamente com a quantidade sempre maior de produtos a serrem adquiridos. É um grande negócio para o Estado e para as empresas.

 

As pesquisas realizadas por instituições, ONG e governos, e que constantemente contam com a parceria de empresas, servem também ao cálculo de potenciais consumidores, sejam eles o próprio governo (com o dinheiro público), ou indivíduos.

 

As pesquisas conduzidas com o espírito da igualdade feminina acoplam meninas e mulheres às empresas e às benesses a serem obtidas pelos governos, sob a rubrica de eficientes e eficazes políticas públicas. Neste caso, capturando, sequestrado e agrupando mulheres ao assujeitamento.

 

Trata-se de uma higienização, educando e submetendo cada uma delas aos preceitos da suposta superação da degradação em nome da saúde pública e da camuflagem das práticas imediatas de cada menina e mulher para conter a exposição do seu inevitável fluxo menstrual. (cf. flecheira libertária 649).

 

Além de se apresentar como caminho para a inovação de produtos, parcerias de negócios público-privado, diversificação de mercadorias, ampliação do mercado consumidor, a chamada pobreza menstrual é mais uma oportunidade lançada pela racionalidade neoliberal para o controle das condutas dentro e fora das famílias.

 

Pretendem atingir a todas, mas principalmente as meninas e as mulheres jovens porque não só o seu "bem-estar" depende sua produtividade, como as habilitam a serem atraídas para compor as elites secundárias (cf. hypomnemata 251.).

 

Assim é que pobreza e direito menstrual se relacionam e fazem funcionar a participação moderada e conservadora, na atualidade, por meio dos ativismos democráticos. Os ODS exigem que o controle das minúcias sobre o corpo e a inteligência sejam cada vez mais explicitados e incluídos sob a forma de direitos.

 

R A D. A. R

 

Period. End of Sentence.

 

 

Comfortably, Safely, and Without Shame: Defining Menstrual Hygiene Management as a Public Health Issue

 

 

Mesa redonda: UNICEF/IRC - Water, Sanitation and Hygiene Education for Schools, 2005.

 

 

WASH-united

 

 

Menstrual Hygiene Day

 

 

Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos

 

 

Movimento Girl UP

 

 

Livre para Menstruar

 

 

Projeto de Lei 4968/2019

 

 

Period Products (Free Provision) (Scotland) Bill

 

 

Always is Helping Keep Girls in School

 

 

The pad project

 

 

Índias e antropólogas. Diálogo de Carmen Junqueira; Betty Mindlin

 

 

flecheira libertária 649

 

 

hypomnemata 251. Elites secundárias

 

 

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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