informativos anteriores

observatório ecopolítica

ano V, n. 107, abril de 2022.

 

memórias do outro lado do pacífico

 

o massacre de 1923

 

Em 1923, o Japão vivia o chamado período da democracia Taishô (1919-1926). O país já havia se destacado militarmente após a vitória na Guerra Russo-Japonesa, e desempenhado papel importante no Tratado de Versalhes, sendo reconhecido como a quinta potência na conferência.

 

No mesmo ano de 1923, um imenso terremoto atingiu a região de Kanto (Tóquio e arredores). Temia-se que outro tremor atingisse a localidade nos dias seguintes e afundasse todo o país no Oceano Pacífico. Levantava-se a hipótese de que o Monte Fuji entraria em erupção, queimando toda a região. Em meio ao caos, rumores, destruições, feridos e mortos, a terra não tremeu, nem o vulcão explodiu. Mas, um mar de sangue foi derramado em Tóquio nos dias seguintes.

 

A polícia de Tóquio viu o terremoto como uma oportunidade para exterminar os indesejáveis e declarou lei marcial. Entre os executados estavam os libertários Itô Nôe, Ôsugi Sakae e seu sobrinho de 7 anos de idade. Eles foram capturados e espancados até a morte e seus corpos jogados em meio a destroços do terremoto. Foram encontrados alguns dias depois.

 

Simultaneamente às execuções perpetradas pela polícia, milícias nacionalistas se formaram para exterminar os não japoneses. O alvo principal, com o aval e participação da polícia e do exército, foram os coreanos. Sob o argumento de que mesmo com a destruição das cidades de Kanto os coreanos teriam água potável, muitos deles foram torturados e presos. Contabiliza-se mais de 4 mil denúncias realizadas contra coreanos e executadas nas ruas pelas milícias ou pela polícia. Dessas 4 mil, somente 15 delas teriam algum tipo de "prova" de condenação.

 

Os coreanos abordados pelas milícias, tiveram suas casas incendiadas, foram espancados e jogados em caminhões. Outros eram atirados nas ruas. As crianças retiradas de seus pais eram alinhadas diante deles. Em seguida, os milicianos cortavam as gargantas das crianças e pregavam os adultos na parede diante dos corpos de seus filhos em forma de cruz.

 

Aqueles que tentavam fugir de trem, eram barrados pelo exército e executados por soldados que gritavam "vida longa ao Imperador!".

 

Mesmo mortos, os corpos ainda eram profanados e decapitados. De acordo com a tradição japonesa quando um corpo está mutilado, a alma nunca mais voltará para esse mundo. A tortura tinha de se perpetuar até pelo além da vida.

 

Por mais de duas décadas ainda, o Japão continuaria com a vasta execução de libertários, comunistas, cristãos e, principalmente, coreanos...

 

Mesmo com o fascismo e a devoção ao Imperador entre os súditos japoneses, certos historiadores ainda alegam que a aliança com Mussolini e Hitler ocorreu apenas por um interesse diplomático no território russo e que o Japão sempre teria sido um país pacífico.

 

R A D. A. R

 

Eros + massacre, de Yoshishigue Yoshida

 

 

Anarchist from colony, de Lee Joon-ik

 

 

nanjing

 

Dezembro de 1937. Nas proximidades do Marda China Oriental, a cidade de Nanjing, então capital do país, foi invadida pelas forças armadas japonesas. Xangai e parte da costa chinesa haviam sido subjugadas.

 

A marcha de Xangai a Nanjing deixou um incomparável rastro de sangue. No caminho, tenentes japoneses disputavam qual deles conseguiria alcançar a marca de 100 mortos usando apenas uma espada. A competição foi amplamente apoiada pela população japonesa e os jornais da época noticiavam sobre a corrida aos mortos estampando a incrível marca que os tenentes conseguiam atingir.

 

No primeiro dia do ano de 1938, um jornal em inglês editado em Tóquio, declarou sobre a disputa entre os tenentes, nomeada de hyakunin-giri kyōsō (competição de matar 100 pessoas usando uma espada):

 

[Toshiaki] Mukai tem uma pontuação de 106 e seu rival [Takeshi Tsuyoshi Noda] despachou 105 homens, mas os dois acharam impossível determinar qual passou a marca de 100 primeiro. Em vez de resolver com uma discussão, eles estenderam a meta em cinquenta. A lâmina de Mukai foi levemente danificada na competição. Ele explicou que foi o resultado de cortar um chinês ao meio, com capacete e tudo. A competição foi "divertida", ele declarou, e achou bom que os dois homens tivessem ultrapassado a marca de 100 sem saber que o outro já havia alcançado o feito. No início da manhã de sábado, quando o homem de Nichinichi entrevistou o subtenente em um ponto com vista para o túmulo do Dr. Sun Yat-sen, outra unidade japonesa incendiou as encostas da Montanha Roxa na tentativa de expulsar as tropas chinesas. A ação também extinguiu Mukai e sua unidade, e os homens ficaram de braços cruzados enquanto balas passavam por cima [de suas cabeças]. "Nenhum tiro me atinge enquanto estou segurando esta espada no meu ombro", explicou ele com confiança.

 

Após a marcha sanguinária até Nanjing, o príncipe tenente general Asaka Yasuhiko acompanhado de seus soldados, satisfizeram parte de sua sede fascista. Por seis semanas, templos, casas, fábricas e ruas foram saqueadas pelos japoneses e quase todos os moradores foram levados a uma cratera de pedreira para serem executados. Corpos mortos ou quase mortos ficaram no buraco para apodrecer.

 

Os deixados para viver foram separados em homens e mulheres. Muitos eram enfileirados para os soldados japoneses competirem. A meta era conseguir decapitar mais e mais rápido com suas afiadas espadas de samurais.

 

As mulheres e crianças foram violentadas, mutiladas... Os seus corpos eram jogados ao chão e em suas genitais fincadas baionetas, varas de bambu, ou qualquer objeto semelhante a uma lança.

 

Estima-se que 300 mil pessoas foram executadas pelo exército do Japão e dezenas de milhares de mulheres e crianças violentadas.

 

O massacre de Nanjing, como ficou conhecido, até hoje é negado por nacionalistas japoneses e pouco comentado em território japonês.

 

R A D. A. R

 

Bob Tadashi Wakabayashi. The Nanking Atrocity, 1937-1938: Complicating the Picture. NY: Berghahn, 2007.

 

 

Nanjing ! Nanjing !, de Chuan Lu.

 

 

Tōkyō Nichi Nichi Shinbun. hyakunin-giri kyōsō. 1º/01/1937.

 

 

coreia, china, tailândia, vietnã...

 

O massacre de Nanjing foi considerado pelo Império do Japão como um excesso a ser controlado. O Imperador, tio do príncipe tenente-general comandante do ataque, organizou meios para que os soldados descontassem a tensão da guerra. Foi assim, que a primeira "casa de conforto" para soldados foi inaugurada em 1938, nas proximidades de Nanjing. Em poucos anos, essas casas já estavam espalhadas por todos os lugares que os japoneses haviam subjugado.

 

Uma rede de tráfico de mulheres e crianças organizadas pelo palácio imperial possibilitou que as casas de conforto estivessem presentes no Japão, China, Filipinas, Indonésia, Malásia, Tailândia, Birmânia, Nova Guiné, Hong Kong, Macau...

 

Em documentos oficiais, as casas de conforto eram citadas como "unidades de suprimento de guerra". Nelas, mulheres e crianças coreanas, chinesas, tailandesas e vietnamitas — consideradas inferiores às mulheres japonês — eram usadas exclusivamente para aliviar os soldados japoneses que deveriam se conter para evitar muitos "excessos".

 

As chamadas "mulheres de conforto" eram sistematicamente violentadas e executadas em nome da expansão do Império do Japão. Estima-se que 800.000 mulheres e meninas passaram por essas casas.

 

É impossível contabilizar com exatidão quantas "mulheres de conforto" serviram aos militares japoneses. Muitas delas eram executadas quando tinham alguma doença, estavam grávidas, ou quando os militares se viam diante da iminente derrota. Quando os aliados se aproximaram, os japoneses forçaram as "mulheres de conforto" ao suicídio ou se matavam junto com elas.

 

Alguns dos soldados japoneses que fugiram com essas mulheres foram para regiões remotas da Birmânia. Os corpos delas foram utilizados pelos militares japoneses até após a morte. Depois de executadas serviam de alimento para sobrevivência dos militares.

 

Registros sobre a existência das "mulheres de conforto", como dos testes biológicos em humanos feitos na unidade 731, só foram publicizados em escala planetária na década de 1990.

 

Entretanto, na Coreia do Sul, mulheres sobreviventes já se organizavam desde 1980 na tentativa de contar suas histórias. Durante a ditadura militar sul-coreana (1979-1987), em nome do crescimento da nação, as alianças com o Japão se estreitaram com o apoio dos EUA e as histórias das "mulheres de conforto" foram tratadas somente como um desentendimento resultante da guerra entre japoneses e coreanos.

 

unidade 731

 

Nana san ichi Butai, a Unidade 731, foi o destino de muitos dos capturados pelo Império do Japão. A unidade funcionou entre os anos de 1934-1945 e estava sediada na Manchúria, invadida e subjugada pelo Japão após o sufocamento das forças resistentes no país, como a Comuna Shinmin, animada por libertários provenientes da Ásia e que resistiam aos comunistas chineses e aos fascistas do Japão.

 

A Unidade 731, em seus primeiros anos de funcionamento, chamava-se Departamento de Prevenção de Epidemia e Purificação de Água e ficou sob comando da Kempeitai, conhecida como a SS japonesa em referência à polícia nazista. Foi somente no ano de 1941 que recebeu o nome de Unidade 731, e, sob o comando de Shiro Ishii, intensificou os testes biológicos em prisioneiros.

 

Os presos eram utilizados para experimentos cirúrgicos e testes de armas químicas e biológicas. Assim, em nome da medicina e da cura do soldado japonês, os cirurgiões atiravam nos prisioneiros e realizavam cirurgias sem anestesia para a retirada das balas com a finalidade de verificar o tempo de cicatrização.

 

Além disso, cirurgias eram realizadas em crianças, preferencialmente chinesas e coreanas, com extração de seus órgãos e respectivas inserções em outras pessoas, bem como a junção de diferentes partes de corpos em outras pessoas.

 

Entre os testes estavam os de transfusão de sangue. Os prisioneiros recebiam transfusões de sangues armazenados em garrafas térmicas. O sangue era congelado e depois descongelado, misturados ao sangue retirado do coração de um cadáver, sangue de ovelha etc.

 

Outras vezes, os presos eram intencionalmente infectados por alguma bactéria e observava-se como o corpo reagia diante de determinadas situações. No prisioneiro doente ministrava-se uma overdose de sal ou seu corpo era posto diante de baixas temperaturas, pressão e altitude.

 

Com relação aos testes de armas, os prisioneiros eram expostos a bombas de antraz e armas bactericidas. Quando um corpo já não era mais útil, era descartado.

 

Ninguém saía vivo da Unidade 731, conhecida como a Auschwitz do Japão.

 

Outras variações da Unidade 731 foram instaladas nos países invadidos pelo Império. A Unidade 1644, na China, em parceria com a 731, realizava a disseminação de infecções pelo país. Uma dessas, aconteceu em Nanjing, onde foram depositadas bactérias em poços, pântanos e até em lanches distribuídos para os chineses. Quando as doenças se espalhavam, os médicos japoneses observavam o funcionamento das epidemias.

 

Ao final da Guerra, estes cientistas receberam imunidade do governo dos EUA em troca de suas pesquisas. Durante o período do governo da ocupação, a Unidade 731 permaneceu em sigilo.

 

R A D. A. R

 

Men behind the sun, de T. F. Mou.

 

 

ocupação

 

No ano de 1945, após as bombas de Hiroshima e Nagasaki, o Império do Japão assinou a rendição aos EUA que passou ocupar o país em nome de seu desenvolvimento capitalista e democrático.

 

As primeiras medidas do General Douglas MacArthur, responsável pela ocupação estadunidense do Japão, foram: mudar o hino do país; estabelecer uma nova bandeira; destituir o Imperador do governo; declarar que a família imperial não era divina; modificar o sistema educacional...

 

As bases militares estadunidenses que cortam o país até hoje também foram um marco para que a ocupação do Japão fosse tida como um grande sucesso para os EUA. Dessas bases saíram parte do enriquecimento do Japão com a Guerra da Coreia e o apoio militar estadunidense para a posterior ditadura militar na Coreia do Sul que torturou, executou e sumiu com inúmeros jovens, homens e mulheres.

 

Assim, no Japão, em nome da harmonia e para evitar um levante contra os soldados estadunidenses, a estrutura da família imperial manteve-se intacta. Reconstruía-se a imagem do povo pacífico, ordeiro e vítima das bombas nucleares.

 

O Imperador e sua corja, incluindo o príncipe comandante do ataque a Nanjing, permaneceram sustentados pela devoção dos súditos japoneses. As "casas de conforto" no Japão, por sua vez, continuaram a existir para saciar os soldados estadunidenses. Elas só foram legalmente banidas anos depois... e seus registros arquivados pelo governo de ocupação.

 

R A D. A. R

 

Hadashi no Gen (Gen pés descalços), adaptado do mangá de Keiji Nakazawa, direção de Mori Masaki.

 

 

mulheres de conforto

 

Japão, hoje, um país conhecido por sua harmonia e obediência...

 

Desde 2019, artistas japoneses circulam pelo país tentando expor uma de suas obras, a representação de uma "mulher de conforto" a espera do militar japonês. Em agosto daquele ano, em meio às recordações das bombas de Hiroshima e Nagasaki, a obra foi exposta em Nagoya, três dias depois foi recolhida.

 

Dois meses depois, foi exposta novamente por sete dias. O mesmo aconteceu em Osaka. Há 10 meses, a obra foi exposta por 4 dias no subúrbio de Kunitachi. Em todas as tentativas de exposição, grupos fascistas com a bandeira do Império japonês gritavam em microfones que a obra era uma vergonha e feriam a alma e a harmonia japonesa. Todas as galerias que encerraram a exposição eram financiadas pelo governo japonês. Eis a harmonia japonesa, construída com sangue e esquecimento.

 

afirmar a vida livre

 

Fumiko Kaneko acompanhou de perto os massacres de 1923. Na noite do terremoto, sua casa foi invadida pela polícia. Os agentes procuravam por Yeol Park, seu companheiro procedente da Coreia. Fumiko explodiu em raiva quando um policial encostou nele e atacou ferozmente os policiais. Recusando-se a desempenhar o papel da esposa japonesa.

 

Foi espancada e presa junto com Park.

 

Da prisão, acompanhou as milícias nacionalistas, o exército e a polícia derramando sangue por toda Tóquio. Diante dos gritos de saudação ao Império, afirmou: é preciso matar o Imperador. Escorrer o sangue do Império era o único meio de atingir os fascismos pelo país.

 

Após conseguir sobreviver à prisão junto com Park, arquitetou o plano de acabar com a família imperial. Entretanto, seu plano foi descoberto pela polícia.

 

Foi levada a julgamento, e não temeu diante do tribunal.

 

"Juiz: nome?

 

Kaneko: Fumiko Kaneko.

 

Juiz: Idade?

 

Kaneko: de acordo com o seu oficial, 24, mas eu acredito que seja 22. Falando francamente, eu não acredito nessa também. Tanto faz a minha idade, não tem importância, tanto faz, estou viva agora. (...)

 

Juiz: ocupação?

 

Kaneko: minha ocupação é demolir o que agora existe.

 

Juiz: endereço?

 

Kaneko: prisão de Tóquio.

 

(...)

 

Planejei eventualmente lançar uma bomba e aceitar o encerramento da minha vida. Eu não quis saber se esse ato afetaria uma revolução ou não. Estou perfeitamente contente para satisfazer minhas próprias vontades. Não quero ajudar a criar uma nova sociedade com base em uma nova autoridade de forma diferente. (...)

 

Eu não vivo para os outros! (...) Eu me insurjo contra toda a coerção... então, vocês, os funcionários, vão me perguntar: 'por que você pretende destruir sua própria vida?' Eu responderei: 'viver não é apenas sinônimo de movimentar-se. É mover-se de acordo com a própria vontade... pode-se dizer que só se começa a viver quando se age. Se, portanto, agir de forma própria leva à destruição de si mesmo, não é uma negação da vida. É uma afirmação".

 

Após ser condenada à forca, pena posteriormente convertida em prisão perpétua pelo Imperador por benevolência, não deixou sua vida ficar encerrada em uma cela de prisão: enforcou-se em uma manhã ensolarada.

 

R A D. A. R

 

Art event featuring 'comfort woman' statue opens in Tokyo

 

 

The Anarchist Movement in Japan, 1906–1996, by John Crump

 

 

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

www.nu-sol.org
www.pucsp.br/ecopolítica
http://revistas.pucsp.br/ecopolitica
05014-9010 Rua Monte Alegre, 984 sala s-17
São Paulo/SP- Brasil
55 11 3670 8372