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observatório ecopolítica

ano V, n. 109, maio de 2022.

 

Empreendedorismos e a proliferação de pastores

 

Integração entre empreendedores das favelas e do "asfalto", a busca por uma favela "feliz" e demandas que visam o reconhecimento das comunidades como portadoras de direitos voltados ao "bem-estar" e à chamada segurança social foram alguns dos temas abordados na primeira edição da Expo Favela 2022, realizada entre os dias 15 e 17 de abril.

 

Era uma feira de negócios organizada pela Favela Holding, sociedade empresarial que reúne um conjunto de empresários que procuram incentivar a proliferação do empreendedorismo e atrair a presença de fundos de investimento nessas localidades. Além disso, o evento foi marcado pela presença de muitos ativistas, que não hesitaram em enfatizar a importância da solidariedade por parte dos membros das comunidades nessa empreitada. Seguindo à risca a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada em 1948, a fraternidade em relação ao próximo é o espírito que deve orientar as condutas de todos os "bons" cidadãos.

 

A Expo Favela despertou a atenção dos grandes jornais, que trataram o encontro como um momento "disruptivo", termo em voga entre os empreendedores e compreendido como algo organizado para confrontar o estabelecido e para "inovar" o mercado. Dez empreendedores foram selecionados para participar de um reality show na maior emissora de televisão do país, cuja finalidade é enfatizar que a produtividade é o que melhora a "qualidade de vida".

 

Além disso, essas iniciativas que visam a "inovação", a criação de "oportunidades" e o desenvolvimento econômico das favelas também foram celebradas por aqueles que aspiram ao "desenvolvimento sustentável", uma vez que a defesa da inclusão dos chamados vulneráveis é parte constitutiva da norma que orienta os "bons" cidadãos e, por conseguinte, os ativistas.

 

O evento foi realizado para exibir as chamadas comunidades como locais constituídos por pessoas "produtivas" e "inovadoras", dispostas a criar um ambiente seguro, atrativo e, sobretudo, "sustentável". Os três dias contaram com inúmeras exposições e painéis acerca de educação financeira, a "economia criativa", a formação de lideranças femininas e a expansão de políticas públicas e direitos voltados à educação, à saúde, à mobilidade urbana, etc.. Enfatizou-se serem esses os temas principais para a consolidação de uma sociedade financeiramente sustentável, fundada na colaboração entre os diferentes agrupamentos da sociedade civil organizada — do "asfalto" e da "favela" — e as autoridades públicas.

 

A palavra "trabalhador" não faz parte do vocabulário desses ativistas sendo substituída por "empreendedor". A dicotomia entre "trabalhadores" e "patrões" foi atualizada como cooperação entre empreendedores das favelas e dos "asfaltos" que seguem um líder, coordenador ou supervisor que também é um empreendedor, mas de destaque. Todos devem estar unidos em direção a uma sociedade "inclusiva". Trata-se de melhorar a sociedade por meio da colaboração entre empreendedores.

 

Essas aproximações são impulsionadas, entre outras coisas, por empresas de "influenciadores" digitais, como o Digital Favela, e seus novos pastores cuja finalidade é divulgar os empreendedorismos das comunidades. Para as iniciativas são selecionadas pessoas que vivem ou viveram nessas regiões e que possuem o que se convencionou chamar de linguagem da favela: é preciso ser eficiente para atrair, organizar e orientar o rebanho a se esforçar, investir, ser produtivo e empreender para honrar e ser o pastor dos vizinhos. Beneficiam-se, por conseguinte, da horizontalização do pastorado, promovendo os empreendedores da comunidade como modulações a serem seguidas. Nada de resistências e revoltas, a norma é ser "inovador" e "produtivo".

 

Outras iniciativas, como o G10 favela, organização econômica composta por "líderes e empreendedores" de impacto social, disseminam-se nessas localidades. O G10 tem como finalidade criar redes de investimentos cujo objetivo é incentivar o empreendedorismo. O grupo fundou o G10 bank, um tipo de banco "popular" que fornece microcréditos aos empreendedores locais, fomentando a financeirização dos negócios dessas localidades. Para esses ativistas empreendedores, é necessário introduzir um choque de capitalismo nessas localidades, empoderando a favela por meio da promoção da ascensão social. Novas palavras e condutas para velhos objetivos capitalistas.

 

A democratização do direito de propriedade é a grande motivação. Isso será possível, segundo os ativistas do momento, por meio do reconhecimento do direito da favela à cidadania. Não há, portanto, uma divisão entre a chamada iniciativa empreendedora e a busca por mais direitos, uma vez que ambas as questões se conjugam. Enfatiza-se que a confluência entre a adoção de políticas públicas — conforme os direitos assegurados pela Constituição de 1988 —, a "solidariedade" entre os governados e a cooperação entre grandes proprietários e os empreendedores mencionados é o meio necessário para garantir maior inserção dos negócios das periferias nos fluxos que movem o capitalismo. A meta é a inclusão em meio às disputas que envolvem a formalização dos direitos. A incorporação da democracia nas relações desvia a atenção da permanência da propriedade.

 

A felicidade, como não poderia ser diferente, é reivindicada como um direito inalienável à comunidade. Essa noção está atrelada à resolução aprovada em 2011 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, intitulada A Felicidade: para um Enfoque Holístico do Desenvolvimento. O documento chama atenção para a necessidade da adoção, por parte dos Estados-membros, de políticas públicas que tenham como finalidade promover a inclusão dos corpos classificados como vulneráveis por meio de um desenvolvimento equitativo. A inclusão a partir da formalização de mais direitos, com base nessa perspectiva, é concebida como a materialização do direito à felicidade.

 

Desse modo, a emergência de um ativismo constituído por empreendedores das chamadas comunidades que não apenas reivindica a renovação da aspiração sagrada — o direito à felicidade —, como também a figura do morador de periferia como um empreendedor de si, alguém cuja "luta" reside no direito a empreender, no direito de ser proprietário, no direito a ser feliz.

 

Isso mostra como os ativismos se orientam a partir da racionalidade neoliberal, que permeia as sociabilidades nas diferentes esferas da vida, como nas escolas, nas universidades, no trabalho, etc. Sustentam uma noção de liberdade atrelada ao sujeito-empresa, que é capaz de maximizar faculdades e se tornar mais competitivo e inovador por meio da expansão e da materialização de direitos em relações democráticas da casa à empresa e ao Estado (de direito, obviamente).

 

Isso exige a criação de um ambiente ordenado, não suscetível a possíveis desajustes. As lideranças empreendedoras se tornam, também, lideranças comunitárias, responsáveis pela organização da favela. Dizem necessitar de suas próprias políticas públicas, sobretudo em momentos de crise, como ocorre no contexto da chamada pandemia. Assim, ampliou-se a distribuição de cestas básicas, serviços de pintura de moradias, monitoramento de pessoas infectadas, etc. Frente às misérias inerentes ao capitalismo, os "pastores" dessas regiões colocam em movimento o mesmo princípio de seletividade que orienta as políticas públicas, uma vez que o objetivo é o mesmo: gerir a miséria, oxigenar o capitalismo e garantir a segurança da propriedade — no caso, a propriedade dos "empreendedores das favelas" que compõem como elites secundárias com as elites principais e lucram com a gestão democrática e sustentável da miséria.

 

São esses os princípios sagrados que norteiam as condutas normais de muitos agrupamentos ativistas que se apresentam como antirracistas, antifascistas etc. Concebem a concretização do sagrado como a materialização da liberdade. Para eles, todos devem ser livres empreendedores, inclusive os da comunidade. Todos devem, por fim, colaborar para a sustentabilidade do capitalismo.

 

R A D. A. R

 

Dez razões para visitar a Expo Favela neste final de semana

 

 

Expo favela coloca a favela na agenda do asfalto

 

 

Declaração Universal dos Direitos Humanos

 

 

ONU reconhece busca pela felicidade como objetivo fundamental

 

 

Startups levam tecnologia e geram renda para as favelas

 

 

Expo Favela

 

 

"Prefeito" de Paraisópolis empodera moradores e vira exemplo mundial

 

 

G10 Favelas

 

sexualidade e seletividade de minorias

 

Atualizam-se muito rapidamente as reivindicações por direitos de minorias. Em relação às minorias de gênero e sexualidade, as demandas seguem a ininterrupta profusão de identidades e as disputas entre elas. Seja por maior visibilidade e protagonismo, tanto dentro do movimento LGBTQIA+, quanto em meio à sociedade. Seja pelo lugar da vítima mais vulnerável a ser protegida e assegurada pelo Estado com leis e polícias específicas.

 

No início de abril de 2022 o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, que mulheres transexuais e travestis têm direito a usufruir das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha caso passem por situações catalogadas como violência doméstica.

 

Os juízes alegaram que esta lei se baseia em gênero, na discriminação e misoginia que vivenciam mulheres cis e mulheres trans. No entanto, grupos de feministas radicais (radfem) impetraram uma petição no Senado Federal, solicitando a troca da expressão "gênero" por "sexo biológico feminino", exatamente para impedir o acesso a esta lei de mulheres trans e travestis, ou seja, somente "mulheres cisgênero" poderiam ter o direito a esta legislação.

 

Para além do acossamento das radfem contra mulheres trans, importa destacar implicações relativas às identidades e à busca por direitos, respeito, representatividade, igualdade, visibilidade etc. Temas requentados, mas também constantemente sacralizados pelas minorias identitárias. Chama atenção que um segmento minoritário tenha saído na frente dos setores conservadores e reacionários para barrar uma medida que amplia direitos a outro segmento minoritário, também composto por mulheres, muitas delas também feministas…

 

Ainda no âmbito de gênero e sexualidade, a chamada linguagem neutra se tornou alvo de, ao menos, 34 projetos de leis em 19 estados e no centro federal. São projetos muito similares anexados ao PL 5198/20 que pretende: "veda[r] expressamente a[s] instituições de ensino e bancas examinadoras de seleções e concursos públicos a utilização, em currículos escolares e editais, de novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas". Como exemplo, há o projeto de lei 5248/20 que pretende "estabelece[r] o direito dos estudantes de todo o Brasil ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e orientações legais de ensino". Soma-se a outros 13 projetos vinculados que orbitam exatamente a mesma proposta. Datam de anos recentes: 2020, 2021 e 2022.

 

Há leis municipais e estaduais que determinam proibições semelhantes voltadas ao ensino e às documentações produzidas por instituições estatais. Em 2021, Rondônia foi o primeiro estado a implementar uma legislação similar, vetada no mesmo ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Disputas entre essas instâncias se repetem em outras localidades como, mais recentemente, na cidade de Criciúma.

 

A discussão chega à esfera jurídica pela oposição à pauta de alguns movimentos LGBTQIA+ e de certos feminismos que se espraiou, via redes sociais, para o mercado, a imprensa e outros ativismos, encontrando reverberações acadêmicas. Neste caso, é a oposição conservadora e reacionária que se antecipa, tornando uma causa minoritária o alvo de uma série de projetos de lei cujo conteúdo é praticamente o mesmo.

 

Além da educação, estes projetos visam também atingir a área cultural, como a Portaria nº 604, de 27 de outubro de 2021, outorgada pelo Secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, autoridade da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo que vetou: "nos projetos financiados pela Lei nº 8.313/91 [Lei Rouanet], o uso e/ou utilização, direta ou indiretamente, além da apologia, do que se convencionou chamar de linguagem neutra".

 

Produzem-se leis, medidas, emendas como novos direitos contra os direitos de minorias.

 

Em 2019, durante o mês de junho — conhecido como o mês do Orgulho Gay (hoje, do Orgulho LGBTQIA+) — foi determinado pelo STF que "discriminação por orientação sexual e identidade de gênero" é considerado "crime" passível de punições sob a Lei de Racismo (7716/89). Contempla as chamadas homofobia, lesbofobia, transfobia e todas as demais "discriminações" contra a "população LGBTQIA +". Trata-se de uma decisão votada a pouco mais de oito anos, após o mesmo tribunal autorizar a equiparação das relações homoafetivas às uniões estáveis heterossexuais, em maio de 2011. Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou resolução para proibir que funcionários de cartórios se negassem a fazer os trâmites para uniões estáveis entre "pessoas do mesmo sexo", bem como a converter a união em casamento. A mesma resolução outorgou o casamento entre duas "pessoas do mesmo sexo" no país, tanto por via direta quanto pela conversão da união estável.

 

Desde o início dos anos 2000, normas administrativas estaduais e municipais já permitiam o registro em cartórios de uniões homoafetivas, na cidade de São Paulo (2002), nos estados do Rio Grande do Sul (2004) e Piauí (2008). Processos e recursos individuais de casais também abriram precedentes para a decisão do STF. O primeiro casamento homoafetivo realizado no país, após essa decisão, ocorreu no interior de São Paulo, em Jacareí, no dia 28 de junho de 2011, data em que se celebra o Dia do Orgulho.

 

Se em 2011, no dia 28, o primeiro casal de homens era reconhecido pelo Estado brasileiro, no mesmo dia, em 1969, eclodia a revolta de Stonewall, em Nova York. Nesta ocasião, drag queens e sapatonas caminhoneiras revidaram contra a polícia durante uma abordagem chamada de usual. As forças de segurança do esquadrão moral, cotidianamente invadiam bares e boates gays. As queens e caminhoneiras eram os alvos preferenciais, enquadradas na lei de "vícios e jogos" por não se vestirem de acordo com o "seu sexo": mais de três adereços ou vestimentas "do sexo oposto" poderiam levar à detenção pela contravenção de se disfarçar ou mascarar de forma "inusual ou antinatural". A insurgência fez a polícia se esconder dentro do bar Stonewall Inn, junto com os proprietários mafiosos italianos, enquanto um bando de pessoas não-heterossexuais, em sua maioria negras, estrangeiras e junkies, lançavam coquetéis molotov, parquímetros, pedras, sapatos de salto alto contra a polícia.

 

…50 anos depois, a quilômetros de distância do antigo gueto gay nova iorquino, o Supremo Tribunal Federal brasileiro decretava a equiparação da homo, lesbo e transfobia ao racismo enquanto "crimes inafiançáveis". Pelos próprios movimentos de minorias, as lutas são apaziguadas e reduzidas para se assimilarem à ordem. Reivindica-se o direito não a ser e fazer-se o que se é, mas para obtero reconhecimento em igualdade perante a lei, o Estado e a moral de maioria ou de minorias que compõem o majoritário.

 

Na constante atualização das identidades e de suas demandas, é possível que se anuncie a regulamentação das uniões estáveis poliamorosas ou de trisais. Em cartórios brasileiros, tais relações vinham abrindo precedentes ao conquistarem lavraturas que as formalizavam nos mesmos moldes das uniões estáveis monogâmicas. Em 2012, na cidade paulista de Tupã, três pessoas foram declaradas casadas. Em 2015, no Rio de Janeiro, e em 2016, em São Vicente, também no estado de São Paulo, outros trisais foram reconhecidos legalmente. No dia 26 de junho de 2018, o CNJ elegeu a proibição destas lavras, argumentando que a Constituição Brasileira é restrita à monogamia. O clamor por esta providência proveio da sociedade civil, notadamente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). As escrituras validadas perderam a legitimidade.

 

Ainda que não ocorra grande mobilização, as relações classificadas como não-monogâmicas ganham cada vez mais visibilidade atreladas às pautas de minorias sexuais e de gênero. O assunto rende nas redes sociais e emboca no mercado, despertando interesse midiático e protagonizando publicidades.

 

Outra pauta minoritária que se combina às de gênero de sexualidade é a dos ciborgues. Ao menos desde 2016, reivindicações acerca de um direito ciborgue ganham projeção em alguns contextos. Neste ano, marcou-se a publicação da "Carta de Direitos Ciborgue" ou "A Declaração de Direitos Ciborgue v1.0", assinada pelo pesquisador Rich MacKinno, que foi lida durante o SXSW (South by Southwest) — festival anual de tecnologia, cinema e música realizado em Austin, no conservador estado do Texas, EUA. O pesquisador e ativista na área de direitos e liberdades eletrônicas e civis se antecipou a um esperado "conflito entre interesses concorrentes em propriedades localizadas dentro do corpo de uma pessoa e provavelmente conectadas a recursos controlados externamente para armazenamento, registro e monitoramento — por exemplo, um dispositivo médico — e podemos imaginar que o corpo de alguém possa conter mais de um desses órgãos sintéticos, sistema de sustentação da vida ou outra tecnologia de suporte — todos com diferentes proprietários com diferentes interesses e reivindicações sobre as entranhas de uma pessoa".

 

Na ocasião, ele defendeu que esse "rascunho de direitos" poderia servir de base para discussões, almejando adoção por convenções, ONGs, entidades voltadas aos direitos humanos e, posteriormente, legislações. Elencou: a proteção contra o desmonte, a liberdade morfológica, a igualdade entre mutantes e pessoas naturais, o direito à soberania corporal e à naturalização orgânica.

 

O direito à sagrada propriedade, e ao corpo enquanto tal, refaz-se diante de próteses, suplementos, implantes, coletes, chips, mecanismos e tecnologias implementados por empresas e médicos em corpos humanos (e não só).

 

É o direito à sagrada propriedade que atravessa as reivindicações pelo direito a se casar e ter assegurada a partilha de bens, benefícios e sobrenome, além da garantia da herança.

 

Não deixa de ser a lógica da propriedade sobre os filhos e as crianças que motiva os projetos de leis contra a "linguagem neutra" nas escolas. Temem pela continuidade do mesmo, sustentado pelo lar familiar reconhecido por lei e abençoado. A continuidade do mesmo e da propriedade.

 

Não deixa de ser essa mesma lógica que leva o macho, e cônjuges em geral, a castigarem, baterem, espancarem, torturarem, violentarem, mutilarem, executarem as mulheres, as pessoas com quem, legalmente ou não, supõe-se terem relações amorosas, e seus filhos naturais ou adotivos. Mas que tratam como inferiores, reduzidos à propriedade.

 

R A D. A. R

 

"Lei Maria da Penha é aplicável à violência contra mulher trans"

 

 

Portaria nº604 à Lei nº 8.313/91

 

 

Projeto de Lei N.5248/20

 

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1942371

 

https://www.conjur.com.br/2021-nov-17/stf-suspende-lei-proibe-linguagem-neutra-instituicoes-ensino

 

 

"STF aprova a criminalização da homofobia"

 

 

"Decisão do STF que reconhece união estável homoafetiva completa 10 anos"

 

 

"CNJ proíbe cartórios de registrar união estável poliafetiva"

 

 

"The cyborg bill of rights v1.0"

 

 

a representação desfigurada

 

Entre os povos que habitavam o que hoje denominamos de América do Sul, usava-se da palavra para se denominarem sempre com o sentido de "gente", "humanos", "os bons"... Os demais humanos podiam ser chamados de "ovo de piolho" ou qualquer coisa menos significativa.

 

O antropólogo Claude Lévi-Strauss elaborou, a partir disso, a noção de cultura como a produção dos que se enxergam como melhores e superiores. O contrário seria submissão e assimilação pelo que considerassem superior. Hoje quase todos querem ser assimilados.

 

A história é sempre a partir do olhar de quem conta, mas a História oficial é a História dos vencedores. Mais preciso seria chamá-la de História dos apropriadores. Há séculos, isso que se chama cultura ocidental (lembrando que a própria noção de ocidente é arbitrária em um planeta redondo) espalha-se pelos territórios, apropriando-se de corpos, lugares, tecnologias, saberes. Depois de pacificados, os outros sempre tiveram seu lugar nesta cultura, mesmo empalhados para entretenimento e curiosidade alheios.

 

Isso não é o mesmo que falar em apropriação cultural, um termo que funciona muito mais para a produção de novo nichos em um mercado já saturado. A cultura que paira sobre o ocidente, a cultura capitalista, tem quase nenhum oponente sincero.

 

Se antes dizia-se que o macho, adulto, branco, hétero, europeu era a medida do bom-belo-correto na sociedade capitalista, as lutas por direitos de minorias introduziram a possibilidade de uma ampla variação de termos, sem, no entanto, abolir a fôrma. O homem de sucesso pode ser uma mulher, o/a/e trans, indígena, latino-americano.

 

A discussão em torno da presença das chamadas minorias obteve outros efeitos, mais cinematográficos. O termo em inglês whitewashing, ou "embranquecimento" em português, se refere à prática, especialmente no cinema, de colocar atores brancos para representar personagens não brancos. Na história da indústria de entretenimento estadunidense não faltam exemplos, desde o primeiro filme sonoro de 1927 (The jazz singer) com um ator branco pintado de cantor negro (a voz do primeiro filme é a voz do negro transvestido de branco), à Cleópatra de Elizabeth Taylor, o Genghis Khan de John Wayne, uma infinidade de brancos passando por índio, até, mais recentemente, um sem-número de atores estadunidenses que vieram a público se desculpar pelos papéis que aceitaram fazer. Em 2020, uma atriz negra se desculpou por ter interpretado Nina Simone, posto que sua pele não era escura o suficiente.

 

O "embranquecimento" na indústria de entretenimento cumpriu, por décadas, o papel de pacificador, ou ao menos atenuador de um produto cujos consumidores finais eram as classes médias brancas estadunidense e europeia. O rock-n-roll se popularizou quando Elvis Presley emprestou seu rebolado para o som criado nos guetos negros estadunidenses...

 

Com a ampliação do mercado consumidor, a "representatividade" torna-se mais presente nas telas, na música, etc. Revira-se a arte e o artesanato indígena passa a ser arte de artistas indígenas que mimetizam mercado, estética e palavreado do comando das condutas. Os escaninhos deste mercado se abrem rubricados por identidades minoritárias, ou a elite secundária das artes.

 

A palavra arte é utilizada para designar uma certa produção estética no que se convencionou chamar de ocidente. À medida que outras produções passam a ser assimiladas no mercado da arte, estas, a princípio, recebem um adjetivo, "indígena", "afro", "oriental", etc. O verdadeiro reconhecimento de um artista acontece quando ele não mais escapa dessas categorias, mas as confirma. São as categorias identitárias (mesmo variadas e fluidas) que impulsionam novos artistas ao "estrelato". Mas é necessário que cada um se expresse a partir do seu lugar de fala, de existência em conformidade com o que deles se espera.

 

As artes já foram os meios por onde se expressavam as críticas mais radicais à ordem. Agora, a corrosão e a demolição entraram em baixa. Elas devem ser a expressão "verdadeira" do artista sob o tribunal do mercado (de artes e com as redes sociais eletrônicas). Não é do mundo que o artista deve ousar falar, mas antes, de si mesmo, ou daquilo que representa em seu ambiente.

 

No cinema, a polêmica corrente gira em torno da reivindicação por personagens constituídos por minorias representados por estas mesmas minorias: uma mulher trans, deve ser interpretada por uma atriz trans; um portador de deficiência, deve ser interpretado por um ator com deficiência, e assim sucessivamente. A representação do ator no teatro e cinema modernos passa a ser reserva de mercado, paradoxalmente a representação desfigurada.

 

De um lado, esta prática pretende questionar como são ignorados os atores e atrizes subalternos ao segmento majoritário. De outro lado, ao exigir que tais papeis sejam interpretados somente por atores cuja experiência seja idêntica à de seu personagem, reduzem a expressão artística da atuação a uma representação chula.

 

Não se pode ignorar que há de fato, e há muito tempo, a marginalização de pessoas que não correspondem ao ideal branco, hétero, macho, eurocêntrico, cujos exemplos podem ser explicitados no interior da própria lógica do mercado, por meio da diferença de salários para o mesmo trabalho.

 

Porque não abrir novas possibilidades, trazendo, por exemplo, mulheres trans para interpretar mulheres cis, ou subvertendo quaisquer normas ou leis naturais? Porque se escolhe a limitação cada vez maior em vez de abrir novas possibilidades, trazendo, por exemplo, mulheres trans para interpretar mulheres cis, ou subvertendo quaisquer normas ou leis naturais — já que as artes são também o espaço para se criar este tipo de ruptura?

 

Talvez a resposta esteja na diferença entre a arte e seu mercado. O mercado não é lugar para rupturas radicais, insubordinações ou revoltas. O mercado é um espaço para negociações e assimilações. Para o debaixo sempre ceder um pouco mais para se tornar tolerável. São os deveres que se assumem em troca de alguns direitos ao empoderamento, ao protagonismo... E enquanto se defende a propriedade da identidade, a subjetividade já foi assimilada. É este o preço, baratinho.

 

R A D. A. R

 

When white actors play other races

 

 

O que é whitewashing

 

 

Zoe Saldana pede desculpas por interpretar Nina Simone em cinebiografia

 

 

Hollywood Diversity Report

 

 

Identity Art & Identity Politics

 

 

Outcasting: Inside TV's Revolution for Transgender and Disabled Actors

 

 

 

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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