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observatório ecopolítica

ano I, n. 11, maio, 2016.

 

OLIMPÍADAS 2

Dos territórios empesteados à segurança da saúde global


Alardes sobre a possível disseminação do vírus zika na Europa ocuparam a mídia no mês de maio, enfatizando o aumento da temperatura no verão e a possível circulação do vírus entre continentes com a realização das Olimpíadas, no Brasil, em agosto.


Como mostrou o observatório ecopolítica nº10, a Organização Mundial de Saúde (OMS) é a instituição ligada ao Sistema das Nações Unidas responsável pelas recomendações de medidas de segurança sanitária a atletas e turistas. Neste exercício planetário de vigilâncias e monitoramentos dos territórios empesteados, espera-se de cada um a conduta exemplar, pois cada pessoa em circulação “legal” – turistas e atletas – representa um possível transmissor do perigo sanitário além da fronteira. Afinal, os cientistas reguladores, especialistas em cuidar das fronteiras e definir situações de emergência internacionais, fazem o que deles se espera.


Os procedimentos sanitários que regularizam o trânsito de pessoas e mercadorias para a contenção de doenças e epidemias não são novidades neste século. Decorrentes dos fluxos migratórios de trabalhadores no século passado, principalmente nos períodos pós-guerras mundiais, as regulamentações sanitárias internacionais voltadas a determinadas doenças orientaram os principais vistos de entrada controlados pelas polícias de fronteiras, assim como a circulação do comércio internacional, principalmente em portos e aeroportos.


A OMS, em 1969, por meio do documento Regulamento Sanitário Internacional – RSI , atualizou os procedimentos, estipulando a obrigação dos países-membros em informar, mapear e conter especificamente a “cólera, a peste e a febre amarela”. Pelo primeiro artigo do tratado, cada país ficava responsável em estabelecer um Aedes aegypti index vistoriando casas e áreas infectadas. Visava-se produzir a erradicação da febre amarela e, ao mesmo tempo, alertar para a prevenção de visitantes aos países considerados “disseminadores”. Entre outras medidas, o documento também exigia a fiscalização de carteiras internacionais de vacinação, a inspeção sanitária de aeronaves, navios, contêineres, bem como informar periodicamente a OMS a respeito da situação sanitária nacional, com a finalidade de produzir, relatórios semanais sobre os estados de risco epidemiológicos territoriais.


Em 2005, o RSI foi atualizado, seguindo as recomendações da ONU por um “mundo mais seguro”, repaginando a cartilha de “segurança sanitária” e atribuindo à OMS a responsabilidade de gerenciar a disseminação internacional, não mais de “doenças específicas”, mas das chamadas novas “ameaças” e seus agentes, identificando-os como estados de “vulnerabilidade compartilhada”. Isto requer de cada Estado Membro a avaliação de sua capacidade de conduzir as políticas de “segurança sanitária internacional” voltadas à redução do “sofrimento humano” e de “perdas econômicas”. Os estados de “vulnerabilidade” e “ameaça” foram identificados como conjuntos de doenças com potencial epidêmico (ebola, influenza, e demais doenças virais), doenças de origem alimentar, surtos acidentais e deliberados como acidentes tóxicos, químicos, nucleares, efeitos de poluição e desastres ambientais que conformam o que se convencionou chamar de pandemia global.


Com a entrada em vigor do novo documento, em 2007, a OMS passou a contar com um instrumento internacional jurídico específico para emitir estados de “emergência global”, o Public Health Emergency of International Concern (PHEIC), definido como: “um evento extraordinário que é determinado, conforme previsto no presente Regulamento [RSI-2005]: um risco para a saúde pública a outros Estados através da propagação internacional de doenças; e que requer uma resposta internacional coordenada. Esta definição implica uma situação que: é grave, incomum ou inesperada; implicações para a saúde pública além das fronteiras nacionais do Estado afetado; e pode exigir uma ação internacional imediata”.


O estado de emergência sanitária (PHEIC) pode ser emitido pelo Diretor-Geral da OMS após a consulta e o estudo de um Comitê de cientistas que avaliam a possível ameaça e elaboram um conjunto de “recomendações temporárias” ao Estado Membro onde o risco foi identificado. Estas recomendações também são revistas por meio de relatórios e são moduláveis, podendo levar a um estado “extraordinário de emergência” conduzido por prazo indeterminado.


A declaração extraordinária de emergência relacionada com o zika vírus foi anunciada pela Diretora-Geral da OMS, a chinesa Margaret Chan, em fevereiro de 2016. Foi a quarta vez que a OMS recorreu ao PHEIC: primeiro, em 2009, com o surto de Influenza H1N1 relacionado com a carne suína e identificando a Ásia como área de risco; o segundo, em 2014, com os casos de pólio na Síria, em Camarões e no Paquistão; e o terceiro, no mesmo ano, com os casos de ebola na África Ocidental. Todos permanecem em funcionamento, com a corroboração dos cientistas, governos, polícias, empresas e cidadãos saudáveis ou empesteados, em zonas consideradas de risco ou em zonas temerosas de contágio.


O perfeito alinhamento entre a OMS, cientistas, o governo brasileiro e a organização das Olimpíadas, mostra o funcionamento dessas chamadas ferramentas de segurança para o século XXI, agora com a sustentabilidade. O discurso pelo “mundo mais seguro” e “sustentável” apresenta a vida como atualização higienista de uma sucessão interminável de vigilâncias e monitoramentos. Esta “saúde” exige uma vida asséptica. Torna-se imperativo identificar novos guetos, assim como meios de interceptar os indesejáveis, pela continuidade dos negócios humanitários, e pela ideia de vida expandida pelos velhos protocolos diplomáticos. Como insiste a OMS em seu plano para a segurança sanitária internacional, tudo para garantir o “mínimo de transtorno no trânsito e nas atividades comerciais”.


Como não há comércio sem gentes, os apropriadores estão pouco se lixando para a vida de certas gentes. Importa-lhes que o empreendimento Olimpíadas obtenha os lucros planejados e produza os efeitos locais desejáveis, que também orbitam ao redor da conquista de melhorias. Em tempos sustentáveis, a produção de relatórios e de monitoramentos constantes justificam para as populações os riscos gerais e deixam a cada um, sob modulações da racionalidade neoliberal, a responsabilidade pela sua própria vida. Todos estão comunicados continuamente sobre perigos e prevenções imediatas. Isso não só beneficia o turismo e assegura as rendas dos grandes eventos mundiais, como também contempla a indústria preventiva, de roupas a protetores farmacológicos, e fomenta uma conduta de cuidados sanitários ambientais na gente local.


Quanto aos nativos, eles que se virem com o que há à disposição, sabedores que Estados e organizações internacionais fazem o máximo para “melhorar” a condição de sua saúde sob a ameaça diária e constante da morte. Cabe-lhes ser mais limpos em cidades fétidas e consumirem o ideal de direito à cidade.






R A D.A.R


Regulamento Sanitário Internacional
1969 –http://www.who.int/csr/ihr/ihr1969.pdf
2005 –http://www.who.int/ihr/publications/9789241596664/en/


Public Health Emergency of International Concern PHEIC H1N1
http://www.who.int/foodsafety/fs_management/No_02_influenza_Apr09_en_rev1.pdf


PHEIC pólio
http://www.who.int/mediacentre/news/statements/2014/polio-20140505/en/


PHEIC ebola
http://www.who.int/mediacentre/news/statements/2014/ebola-20140808/en/


PHEIC zika vírus
http://www.who.int/mediacentre/news/statements/2016/1st-emergency-committee-zika/en/


Ross Winn. “The breakdown of State”. Mother Earth n.11, maio de 1911.
http://theanarchistlibrary.org/library/ross-winn-the-breakdown-of-the-state


“A favela vai abaixo”, de Sinhô
https://www.youtube.com/watch?v=7O8gifq8irg


“Daqui não saio”, de Paquito e Romeu Gentil
https://www.youtube.com/watch?v=dxGKqcX68lU

 

“Opinião”, de Zé Keti
https://www.youtube.com/watch?v=FhBJqVKgi70


 

Quem vai acender o fogo?


Diferente do fogo “contra a Copa” que empolgou as ruas em 2013 e 2014, grande parte dos protestos às vésperas das Olimpíadas não se voltou para impedir a realização dos jogos até o momento.


A poucos meses da cerimônia de abertura do evento internacional, as diversas manifestações convergem, em especial, para a exposição das chamadas violações dos direitos à cidade, explicitadas pelas inúmeras remoções de bairros inteiros visando a realização de obras, na cidade do Rio de Janeiro, como o Porto Maravilha, o Porto Olímpico, o estacionamento do estádio do Maracanã, a Transcarioca, o Transoeste e outros vultuosos futuros cartões postais.


Entre os bairros removidos, a “Vila Autódromo” foi uma das principais resistências às políticas levadas a cabo e a cassetete pelas autoridades cariocas.


Basta ouvir alguns sambas e marchas de carnaval para notar que as chamadas remoções são usuais na “cidade maravilhosa”, desde as primeiras décadas do século passado. Sinhô cantou nos anos 1920: “minha cabocla, a favela vai abaixo/ ajunta os troço, vamo embora pro Bangú/ Buraco Quente/adeus pra sempre meu Buraco”. Mas foi a partir do final dos anos 1940 que irromperam com mais insistência as resistências a tais políticas. E, em vários cantos do Rio, e de outros espaços brasileiros muitos ainda sabem de cor o “daqui não saio/ daqui ninguém me tira”, versos da parceria de Paquito e Romeu Gentil, de 1949.


Entretanto, foi com a letra de “Opinião” — “podem me bater/ podem me prender/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião/ daqui do morro/ eu não saio não” —, escrita por Zé Kéti, em 1964, ano do golpe civil-militar, que tais recusas vitais se amplificaram.


Passadas mais de cinco décadas deste samba e quase trinta anos do chamado ocaso da ditadura, a remoção da “Vila Autódromo”, em 2016, expõe em plena democracia, como antigas violências persistem.


O pequeno bairro, abrigo de operários, migrantes, pessoas que estavam ligadas como trabalhadores à construção do Autódromo Internacional Nelson Piquet, também conhecido como Autódromo de Jacarepaguá, cresceu no início da década de 1970. Naquele período, batizado de “milagre econômico”, no qual milhares de pessoas eram torturadas e silenciadas, empresas como a Shell e a Esso se instalaram na Barra da Tijuca, tornando lucrativa a terra outrora chamada pelos tupinambás de “água podre”. Não tardou para que a partir dos anos 1980, com a construção de condomínios de luxo e complexos de lazer, os homens e mulheres que construíram parte da Barra se tornassem alvo de disputas políticas, ameaçados constantemente de remoção, mesmo com a “cessão de uso” concedida pelo governo de Leonel Brizola, no início da década de 1990.


Em 2013, após décadas de enfrentamentos entre moradores e funcionários do Estado, às vésperas da Copa da FIFA, centenas de famílias tiveram suas casas marcadas com a inscrição SMH (Secretaria Municipal de Habitação),finalmente demolidas; este processo foi encerrado somente em 2016, sob a justificativa da construção do Parque Olímpico em terreno vizinho ao bairro.


A recusa de alguns moradores da “Vila Autódromo” em aceitar a negociação da remoção foi quase insignificante. Parte dos movimentos sociais não se moveu para defender seus direitos diante do empreendimento Olimpíadas. Repletos da sintaxe política, reivindicaram uma “gestão democrática” para o “megaevento”, isto é, uma outra Olimpíada, mais inclusiva, que ampliasse o direito à cidade, permitindo o acesso a milhares de pessoas, moradores das favelas e subúrbios, aos benefícios do evento internacional. Formaram o coro dos contentes em busca das migalhas.


No interior de tal posicionamento, obviamente, foram raras as menções ao chamado “processo dos 23”, no qual, também em nome da democracia, da segurança e da propriedade, e da aceleração do crescimento, homens e mulheres foram acusados de participar dos protestos de 2013, e ainda permanecem impedidos de deixar o município, sobrevivendo presos a céu aberto entre os limites da cidade.


O pouco barulho diante da continuidade deste processo, da permanência de Rafael Braga na prisão, da promulgação da “lei antiterrorismo” (cf. exposto no observatório ecopolítica nº 10), e do anúncio da ocupação de mais seis favelas pelo exército, explicita as nítidas diferenças entre os protestos contra a Copa e os atuais.


Onde antes havia centelhas que empolgavam e discerniam, hoje governa a convergência e frentes, a reivindicação por direitos, a política e o coro dos participativos contentes.


Sob tal mormaço, na cidade da tocha olímpica, quem vai acender o fogo?





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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