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observatório ecopolíticaano V, n. 110, maio de 2022.
Extermínios...
Um homem chega sozinho, arrasta consigo um compensado de madeirite e um banquinho. Ele se acomoda atrás de uma caçamba, tira alguns pacotes de cor branca e um cachimbo do bolso. Pouco tempo depois, outras pessoas aparecerem e ali se estabelecem. Em minutos, uma pessoa passa a ser centenas. "São chamados de nóias, zanzam como andrajos à cata de resíduos, material para reciclagem a ser entregue em cooperativas sustentáveis, uma esmola, uma pedra de crack. Pernoitam pelas ruas da cidade e sustentam o olhar atônito".
Os cidadãos moralistas de plantão ficam em choque. Exigem repressão, isolamento ou o abate desta parte do rebanho e limpeza do espaço para o seu trânsito como gado limpo e reprodutor. Não suportam o cheiro putrefato da sujeira e a miséria dos que nela habitam. Para eles é o insuportável, o horror que deve ser varrido o quanto antes de seus olhares.
Essa higienização social opera pela lógica liberal de penalizar mais e melhor, como medida de proteção da "pessoa humana", como capital humano empreendedor e portador de direitos inacabados. Garante a continuidade do modo de governar pessoas e populações nos espaços degenerados e degradados das cidades, e a funcionar como legitimador de extermínios. Os fortalecimentos das práticas de extermínio como a higienização é o exercício regular do Estado e sua Justiça, abrindo inquéritos procedimentais para determinados casos que encontram repercussões sociais e, eventualmente, apresentar culpados vivos ou mortos. Os demais, que não encontram repercussão midiática seguem segundo os procedimentos seletivos de polícia e justiça para as execuções.
fluxos, higienizações e controles a céu aberto
A política proibicionista criou o crack como lixo rentável, o reciclado da cocaína. A população de rua e o crack estão juntos como recicláveis.
Desde o final dos anos 1980, o crack se tornou hegemônico no consumo de drogas nas ruas. Sua produção se dá a partir da mistura da pasta-base de coca ou cocaína refinada (feita com folhas da planta Erythroxylum coca) com bicarbonato de sódio e água. Quando aquecido a mais de 100ºC, o composto passa por um processo de decantação, em que as substâncias líquidas e sólidas são separadas até formarem cristais — ou pedras. O nome crack vem justamente do barulho gerado em seu processo de produção e na quebra do bloco em pedaços menores. Fumada em cachimbos, o efeito da droga leva de 8 a 15 segundos para chegar ao cérebro, estimulando o sistema nervoso central, alterando o funcionamento dos neurônios e produzindo um excesso de dopamina. Apesar de extremamente potente, a sensação de êxtase dura de cinco a dez minutos, o que faz o usuário desejar consumir cada vez mais esta droga. Como efeito, o crack corta o sono, o apetite e a sensação de cansaço. Alguns frequentadores chegam a passar de quatro a cinco dias seguidos usando a substância, num processo chamado de "invernação" ou "hibernação".
O termo "cracolândia" foi utilizado pela primeira vez no ano de 1995, quando um jornal de grande circulação em São Paulo utilizou a expressão em uma matéria que noticiava a prisão de traficantes dias após a inauguração da Delegacia de Repressão ao Crack na capital paulista. Na época, a publicação abordou o que declarava ser uma "epidemia do crack" na cidade. Desde então, a expressão pejorativa se tornou corriqueira no vocabulário da mídia e da população para designar locais onde pessoas se agrupam para consumir crack. Entretanto, a "cracolândia" não é um local definido, é onde as pessoas estão, numa peregrinação móvel por variadas ruas e praças da cidade. É a produção de um consórcio de empresas legais e ilegais que criam locais alternativos de consumo e distribuição de drogas na cidade. Locais onde policiais, seguranças de comércio local, traficantes, PCC (Primeiro Comando da Capital) e outros grupos garantem a continuidade e a mobilização enorme do fluxo de pessoas na cidade.
Nos últimos dois meses, na cidade de São Paulo, a "cracolândia" voltou a receber os holofotes da grande mídia devido à Operação Caronte da Polícia Civil, que resultou no deslocamento do fluxo do crack, a mando do tráfico, da rua Helvetia e da Alameda Dino Bueno, ambas no bairro de Campos Elíseos, para a Praça Princesa Isabel e posteriormente para outros pontos do centro da capital. Em resposta, o governo municipal instalou grades em áreas da praça objetivando conter os usuários do crack e impedir a propagação de barracas improvisadas.
As medidas de descentralização do comércio e uso de crack na cidade ocorrem de tempos em tempos, espalhando ainda mais a crescente população de rua e os usuários de crack. Trata-se de uma estratégia de ampliação de mercado com ou sem respaldo ou contestação das autoridades municipais, mas contando sempre com a polícia.
Ao longo dos anos, houve várias iniciativas e operações na tentativa de acabar com a "cracolândia": uma forma política de prestar contas aos cidadãos de bem e enaltecer a moral punitiva. Não deixou de produzir lucros astronômicos, solidificar a fusão de poderes ilegais e legais e ampliar o amontoado de cadáveres rastejantes indo para a morte ou aos braços de ONGs humanitárias.
Em 2005, uma operação coordenada pela prefeitura e pelo governo do estado teve por objetivo "revitalizar" a "cracolândia". Na "Operação Limpa", como o próprio nome sugeria, o usuário de crack era visto como uma "sujeira" que deveria ser "varrida" do centro. Comandada pela polícia, a operação repressiva contou com 115 policiais, 27 viaturas e dois trailers das polícias militar e civil. Em quatro dias, 2.340 pessoas foram abordadas e 18 presas. No final, os frequentadores da "cracolândia" foram dispersados, mas retornaram às ruas logo após o fim da operação. Deu nas manchetes de jornais, revistas e redes sociais.
Em 2006, a prefeitura de São Paulo lançou o Projeto Nova Luz, que buscava "requalificar" um pedaço do centro, ampliando o uso residencial com base no modelo de concessão urbanística que permitia parcerias entre o poder público e a iniciativa privada. A proposta urbanística visava esquadrinhar, totalizar e higienizar o espaço, objetivando atrair novos moradores para a região por meio de um programa de cunho habitacional e comercial, buscando uma metamorfose do bairro que passasse a ser um local de lazer e consumo para classes sociais de maior poder aquisitivo. O projeto não atraiu o interesse do mercado imobiliário. De concreto, demoliram alguns edifícios e abriram um canteiro de obras que permitiu aos usuários de crack se espalharem pela região de Santa Cecília, vizinha ao centro da cidade. Deu nas manchetes de jornais, revistas e redes sociais.
No ano de 2009, foi a vez da operação integrada Centro Legal, que envolvia os órgãos estaduais e municipais ligados à segurança pública, à saúde e à assistência social e voltados para a implementação de políticas de saúde na "cracolândia". Como parte da iniciativa do Centro Legal, em 3 de janeiro de 2012, ocorreu a Operação Sufoco, posteriormente como "Dor e Sofrimento", em razão da declaração do então coordenador de Políticas sobre Drogas da Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania, Luiz Alberto Chaves de Oliveira. Segundo a autoridade, a estratégia era causar "dor e sofrimento" aos usuários de crack na região, de modo que a falta da droga e a dificuldade de fixação fariam com que as pessoas buscassem tratamento. A Operação Sufoco foi uma das mais violentas realizadas na "cracolândia". Os usuários de crack foram cercados pelos agentes policiais com ameaças, golpes de cassetetes, bombas de efeito moral, tiros com balas de borracha e perseguições com viaturas e motocicletas. Em resposta, os frequentadores do fluxo do crack revidaram atirando pedras na polícia. No final, espalharam-se pelo centro em pequenos pontos e retornaram ao local que havia sido realizada a operação dias depois. Essa operação marcou o início de uma continuidade ajustada da combinação entre cuidado e repressão que vem sendo praticada até hoje. Deu nas manchetes de jornais, revistas e redes sociais.
Em 2013, a prefeitura de São Paulo elaborou uma estratégia para a "cracolândia" que envolvia as secretarias municipais de Saúde, Assistência e Desenvolvimento Social, Segurança Urbana e Direitos Humanos, e Cidadania e que não contava com forças policiais. O governo municipal, inicialmente, instalou unidades móveis na região para oferecer água, comida, colchões, chuveiros e atividades para os usuários de crack. A ideia era seguir o modelo de redução de danos fundado na justiça restaurativa. Deu nas manchetes de jornais, revistas e redes sociais.
No ano seguinte, a prefeitura lançou o Programa De Braços Abertos. Aos participantes era oferecido um quarto em pequenos hotéis do centro, três refeições diárias, um trabalho de varrição de ruas de quatro horas por dia com uma remuneração de R$ 115 por semana, cursos profissionalizantes de jardinagem ou serviços de zeladoria para garantir geração de renda e acesso a serviços de saúde. O programa salientava que os nóias deveriam ser tratados e acolhidos, como os demais hipoteticamente disponíveis para o trabalho, ocupados para o seu benéfico e o da cidade, recebendo cuidados necessários para descobrirem suas potencialidades produtivas, afastados do vício e da violência. Deu nas manchetes de jornais, revistas e redes sociais.
Abriu-se o campo de negociações em torno de hotéis da região, empresas, ONGs e trabalhadores sociais que passaram a disputar o mercado desses espaços: distribuição de cestas básicas, serviços de acompanhamento médico, monitoramento de pessoas etc. Frente às misérias inerentes ao capitalismo, os "pastores" colocam em movimento o princípio das políticas públicas: gerir a miséria, oxigenar o capitalismo e garantir a segurança da propriedade.
Ao mesmo tempo que a prefeitura de São Paulo lançou o Programa De Braços Abertos, o governo do estado lançou o Programa Recomeço, visando o tratamento e a recuperação dos usuários de crack e financiando vagas em comunidades terapêuticas para internações. Nesse programa, as ONGs firmam convênios com o governo para oferecer vagas (em suas comunidades terapêuticas, moradias assistidas, casas de passagem ou repúblicas) em troca de recursos públicos. Outra iniciativa do programa foi organizar plantões judiciários com a finalidade de agilizar internações compulsórias de pessoas na "cracolândia". Deu nas manchetes de jornais, revistas e redes sociais.
Em 2017, a gestão do "prefeito-gestor" assumiu com a promessa de extinguir o crack em seu mandato com o programa Cidade Linda. Nesse programa, a limpeza não ocorre a partir de um objetivo a ser comprido, mas sim por metas de curto prazo a serem cumpridas, não cumpridas e/ou atualizadas. O prefeito-gestor também anunciou na época a substituição do programa De Braços Abertos pelo programa Redenção. A prefeitura anunciou ainda um prontuário eletrônico para acompanhar a trajetória de usuários de crack pelos serviços de saúde. Deu nas manchetes de jornais, revistas e redes sociais.
Em 21 de maio do mesmo ano, ocorreu outra grande operação policial coordenada pelo GOE (Grupo de Operações Especiais) da Polícia Civi. Com o suporte de centenas de policiais militares do Choque e da GCM, expulsaram com armas ditas "não-letais" e letais o fluxo do crack da Alameda Dino Bueno e da rua Helvética. A truculência dos quase mil agentes destacados para desmontar o esquema do tráfico na região deixou moradores do fluxo feridos e fez com que usuários de crack se dispersassem pelo centro da cidade.
Desde o princípio da operação, o governo municipal chegou a pedir a autorização na Justiça para a internação compulsória de usuários. Também chegou a demolir prédios históricos tombados na região, um deles com pessoas ainda dentro. E o prefeito declarou que a "cracolândia" havia acabado. Após veementes críticas, o prefeito-gestor voltou atrás em sua declaração e relativizou o discurso para um projeto de longo prazo, e confirmou novas operações policiais para impedir a construção de barracas. Na época, uma pesquisa do Datafolha apontou que 60% dos moradores da capital apoiavam as operações policiais na região e 80% diziam ser favoráveis à internação compulsória. Deu nas manchetes de jornais, revistas e redes sociais.
Em 2019, a prefeitura municipal, sob nova administração, anunciou uma segunda fase do programa com algumas mudanças em relação ao anterior. Implementou-se o Siat (Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica) para realizar ações de abordagem, acolhida temporária e profissionalização, segundo o estágio de tratamento do usuário. Também foram oferecidos bolsas de trabalho de R$ 698 para quem recebesse capacitação profissional e cumprisse uma carga de quatro horas diárias e 20 horas semanais. A remuneração total ocorreria apenas na fase final de tratamento. Deu nas manchetes de jornais, revistas e redes sociais.
Braços abertos, Cidade Linda, Redenção e demais programas expressam como a racionalidade neoliberal relativa à conformação do indivíduo como capital humano combina repressão e atenção à saúde (políticas públicas), atreladas à segurança pelas quais governos e a sociedade civil organizada contam com cada cidadão-polícia na higienização dos ambientes.
Quanto às operações policiais, elas seguem sendo realizadas, fazem parte de um jogo de tensão e distensão no qual se opera a gestão da miséria em um conjunto de controle a céu aberto que não tem como alvo, necessariamente, os usuários de crack, mas a possibilidade de controle dos espaços da cidade. Esse controle dos fluxos ocorre por meio de tecnologias de monitoramento e vem sendo posto, reposto e testado a cada ano, a cada nova gestão.
E quanto à filantropia neoliberal, as ONGs e demais organizações da sociedade civil governam democraticamente a miséria das ruas, fazendo dos moradores de rua devotos de religiões e da razão laica neste ecumenismo acolhedor da continuidade dos mortos-vivos para manter a segurança dos cidadãos de bem, o cidadão-polícia.
R A D. A. R
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O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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