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observatório ecopolítica

ano V, n. 111-112, junho de 2022.

 

sobre negócios sustentáveis ou não para o meio ambiente e a permanência do projeto civilizatório

 

Desde dezembro de 1972, 05 de junho é marcado como o Dia Mundial do Meio Ambiente, estabelecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas durante a abertura da Conferência de Estocolmo.

 

Neste ano de 2022, no Brasil, a data foi lembrada, principalmente, por proprietários e pela imprensa empresarial. Em tom majoritário, matérias especiais nas mídias impressas, televisivas e digitais criticaram o governo federal e elogiaram os parceiros na dianteira de grandes empresas, como o frigorífico-matadouro JBS e a Vale cuja lama tóxica destruiu cidades, rios, solos, corais, ecossistemas inteiros; vidas vegetais, animais e humanos (e que, sequer, pagou indenizações aos familiares de quem foi soterrado, arrastado, afogado, morto pela lama de dejetos produzida pela mineradora). Enalteceram, especialmente, o compromisso com as diretrizes da ONU e do Pacto Global, com foco na descarbonização.

 

Em 2000, o então secretário-geral das Nações Unidas, o ganês Kofi Annan, lançou o Pacto Global como uma convocatória às empresas para alinharem suas estratégias, metas e missões aos “dez princípios”, divididos em quatro grandes áreas: direitos humanos, trabalho, meio ambiente e anticorrupção. Postulou:

 

1. as empresas devem apoiar e respeitar a proteção de direitos humanos reconhecidos internacionalmente;

2. assegurar a não participação em violações destes direitos;

3. as empresas devem apoiar a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva;

4. eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório;

5. abolição efetiva do trabalho infantil;

6. eliminar a discriminação no emprego;

7. as empresas devem apoiar uma abordagem preventiva aos desafios ambientais;>

8. desenvolver iniciativas para promover maior responsabilidade ambiental;

9. incentivar o desenvolvimento e difusão de tecnologias ambientalmente amigáveis;

10. as empresas devem combater a corrupção em todas as suas formas, inclusive extorsão e propina.

 

O Pacto Global da Organização das Nações Unidas se tornou a maior iniciativa voltada à sustentabilidade corporativa e, desde 2015, está norteado pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). Hoje, abrange mais de 16 mil participantes, distribuídos em 70 redes locais, espalhadas por 160 países. O Brasil possui uma rede com mais de 1500 signatários do pacto e que é considerada uma das maiores do planeta. “O Pacto Global não é um instrumento regulatório, um código de conduta obrigatório ou um fórum para policiar as políticas e práticas gerenciais. É uma iniciativa voluntária que fornece diretrizes para a promoção do crescimento sustentável e da cidadania, por meio de lideranças corporativas comprometidas e inovadoras”.

 

Em 2015, o Pacto Global lançou o projeto Ambição 2030, aprovado por consenso entre os 193 países-membros da ONU. O Ambição 2030 é voltado ao fomento de medidas empresariais ambientais, sociais e de governança – os pilares da sigla ESG (Environmental, social and corporate governance). Faz parte desse projeto o Observatório 2030, plataforma de monitoramento dos compromissos assumidos pelas empresas, consideradas as “causas e soluções para reverter as mudanças no clima, especialmente no que diz respeito às escolhas energéticas e especialmente no Brasil, as decisões sobre mudança de usos do solo e desmatamento. Como parte da solução é necessário repensar as atividades ao longo de toda cadeia produtiva, precificar internamente o carbono, avaliar os riscos climáticos em seus planejamentos e, considerar novas oportunidades de negócio”. Neste sentido, o Observatório 2030 busca difundir “conhecimento aplicado” direcionado ao planejamento de estratégias e estabelecimento de metas relacionados ao clima.

 

O monitoramento realizado pela plataforma não se restringe às medidas de redução de emissão de carbono e outras metas sustentáveis, afere também a igualdade de gênero, o combate à corrupção, o pagamento de salários “dignos” e os indicadores de promoção da saúde mental dos funcionários. No campo ambiental, além do clima, há avaliações específicas sobre o uso e conservação da água, atrelado ao saneamento. No site do Observatório são divulgados apenas os dados sobre igualdade de gênero e de combate à mudança climática. Os demais tópicos, ainda estão “em construção”.

 

No momento, mais de 80 empresas fazem parte do projeto. Dividem-se entre os ramos de: petróleo, petroquímicos e biocombustíveis; siderurgia e mineração; varejo; indústria e infraestrutura; bancos e serviços financeiros; saúde e educação; consumo e alimentos; utilities; TI e telecom; construção, shoppings e properties; papel, celulose e madeira. A grande meta é o Brasil se tornar “net zero” até 2050, por meio do corte da emissão de 21 bilhões de toneladas de CO2 e da compensação de 79,5% das emissões dos gases de efeito estufa (GEE) via investimento em Afolu (Agropecuária, Floresta e Outros Usos do Solo). Trata-se da recuperação de pastagens, da conservação de áreas naturais e da ampliação dos sistemas integrados ou agroflorestais. O investimento em Afolu é uma medida compensatória quando “não é possível” zerar diretamente as emissões de carbono. Em geral, as empresas compram o dobro de hectares (dos destinados ao desmatamento) e os conservam como áreas de preservação. Um dos exemplos de maior “compromisso”, de acordo com os pares empresariais, é o matadouro JBS, uma das maiores indústrias alimentícias do planeta, produtora de carnes e alimentos processados – também voltados ao mercado vegano. A multinacional pretende reduzir a zero suas emissões de GEE antes do prazo, até 2040.

 

O investimento na floresta – manutenção, preservação, conservação e restauração – e nas populações originais – geração de renda – aparece como um negócio profícuo e uma “solução”, vinculado à participação das empresas, do terceiro setor, da academia e de governos enquanto “facilitadores”. Investir em trechos de florestas vivas é menos uma preocupação com a existência de ecossistemas biodiversos e mais uma forma de reduzir danos, pois a flora é capaz de filtrar parcelas do gás carbônico emitido pelas produções, circulações e consumos humanos. Em nome de um verde, garante-se a continuidade de outro e o crescimento das cifras de verdinhas dos grandes proprietários e empresários bilionários. A adesão às medidas sustentáveis serve aos negócios e aos humanos, produz lucro e expectativa de futuro. A descarbonização desponta como um bom negócio. As empresas com políticas sustentáveis usufruem até de maiores vantagens financeiras como acesso mais barato a créditos.

 

Em geral, no Brasil, os setores que mais produziram gases do efeito estufa, nos últimos três anos, foram: petróleo, petroquímicos e biocombustíveis; siderurgia e mineração. De acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) a partir de levantamento realizado em 2019, dentre os 10 municípios brasileiros que mais emitem gases do efeito estufa, 8 estão na Amazônia. A região Norte emite 60% de todo carbono lançado na atmosfera pelo país, cuja principal causa é o desmatamento. Quando uma árvore morre ela emite carbono, metano e óxido nitroso. Por isso os municípios da Amazônia dominam o ranking dos maiores poluidores, ainda que suas populações sejam pequenas se comparadas às de outras regiões do Brasil. Altamira é a cidade que mais polui, responsável por produzir 35,2 milhões de toneladas de CO2. É seguida por: São Félix do Xingu (PA), Porto Velho (RO), Lábrea (AM), São Paulo (SP), Pacajá (PA), Novo Progresso (PA), Rio de Janeiro (RJ), Colniza (MT) e Apuí (AM). Altamira é mais de 100 vezes menos populosa que São Paulo e chega ao dobro de emissões de EEG. Em São Paulo e no Rio de Janeiro a causa maior das emissões difere das demais cidades da lista, provém da energia e dos resíduos.

 

Um dos maiores entraves anunciados para que o Brasil atinja a meta zero até 2050 é o consumo e produção de energia renovável. De acordo com pesquisa do Carbon Disclosure Project (CDP), seria necessário aumentar a participação das fontes renováveis dos atuais 47% para 73%, porém estima-se que, dentro de dez anos, o aumento será de 0,7%. Já a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) e a Associação Internacional de Resíduos Sólidos (ISWA) calculam que 40% do lixo produzido nas áreas urbanas brasileiras é tratado de forma “inadequada”, ou seja, destinado aos lixões. A maior parte dos restos do consumo humano, 60,2%, é levada aos aterros, considerados menos agressivos ao meio ambiente porque, diferente dos lixões, evitam poluir diretamente o solo, a água e o ar. Por ano, em média, são geradas 82,5 milhões de toneladas de resíduos sólidos no Brasil. Um dos materiais mais descartados no país é o plástico. Em 2019, foram produzidas 11,3 milhões de toneladas de plástico. Dos quais 145 mil, cerca 1,3%, foi reciclado. O Brasil disputa um lugar no pódio de maiores consumidores de plástico, atualmente ocupado por Índia (3º lugar), China (2º lugar) e EUA (1º lugar).

 

Os bons negócios e os acordos prosperam quando se atualizam, refazem-se e recalculam metas e prazos. A maior parte da população humana do planeta continua produzindo e consumindo; jogando por aí seus lixos e objetos inutilizados – de roupas a aparatos tecnológicos. Faz parte do fluxo veloz apenas eliminar da frente o que não serve mais, os restos que ficam à espera de alguém, na maioria das vezes, que recolha e transporte essas toneladas de resíduos para algum lugar. E assim a maior parte da humanidade não sabe e não se importa com o destino dos seus dejetos corporais.

 

o sustentável e o que desaba

 

Entre 2020 e 2021, mais de 21,6 mil hectares de Mata Atlântica foram devastados no Brasil. Além da decorrente destruição de ecossistemas, de espécies vegetais e animais, dos rios, e do aumento da emissão de gases do efeito estufa, o desmatamento das florestas acarreta deslizamentos em morros e encostas, como os ocorridos em tempos recentes em Paraty, Angra dos Reis, Petrópolis e Recife.

 

No dia 1º de junho de 2022, contabilizavam-se 120 mortos em decorrência de deslizamentos em morros nas comunidades metropolitanas recifenses e mais de 7.300 pessoas sem suas casas. Fortes chuvas nos últimos dias de maio, somadas ao desmatamento, levaram inúmeras moradias pobres, precariamente erguidas, a deslizarem morros abaixo. Meteorologistas dizem que somente no último final de semana daquele mês, o volume de água chegou a 70% do esperado para maio inteiro.

 

Enquanto os moradores das vizinhanças arrastadas pela água e pela lama procuravam por vivos e cadáveres – alguns, também, arriscavam-se para recuperar seus miseráveis bens –, em meio aos destroços e ao barro, em outras regiões de Recife catalogadas como “de risco”, os moradores aguardavam as novas chuvas previstas. Muitos apelaram aos serviços estatais. Receberam como resposta um número de WhatsApp atendido por um robô, um 0800 e a orientação de que seguissem para os abrigos da prefeitura ou improvisados em escolas municipais, igrejas, ONGs e centros sociais; ou outros “locais seguros”. Na madrugada do dia 07 de junho outra barreira ruiu. O número de mortos soterrados por restos de casas, mobílias, lama, rochas e tudo mais o que a força das águas arrastou consigo chegou a 129.

 

Desde a primeira semana de junho não se noticia mais esse assunto. Nada mais foi dito.

 

O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais do Brasil (Cemaden) estima que 9,5 milhões de pessoas vivem em áreas catalogadas como “de risco” – de deslizamentos e/ou inundações. Em sua maioria, habitam barracos e casas pobres em favelas e comunidades espalhadas por morros e encostas em todo país.

 

Em meados de fevereiro deste mesmo ano, pessoas que viviam/vivem em situação semelhante também enfrentaram deslizamentos após fortes tempestades, em Petrópolis. Até o dia 04 de março, somavam-se 233 mortos. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), em uma hora choveu o esperado para todo o mês de fevereiro. No Recife, a tragédia alardeada se repetiu em pouco tempo nesta região serrana do Rio de Janeiro. Em 20 de março, 19 localidades da cidade tiveram deslizamentos. No dia seguinte, já se contabilizavam cinco mortes e três desaparecidos. Ao longo do mês que decorreu entre os dois episódios de desbarrancamentos, a orientação das autoridades permaneceu a mesma: sair das “áreas de risco” e ir para “locais seguros”, entrar em contato por telefone com o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil em caso de emergência, procurar um dos 19 pontos de “apoio” e “abrigo”.

 

Desde a semana de 21 de março, momento da segunda leva de deslizamentos de terra, não se noticia mais esse assunto. Nada mais foi dito.

 

Desaparecem, rapidamente, as manchetes, capas de jornais e reportagens televisivas que apelavam para o registro do sofrimento popular. Acabam, simultaneamente, os compartilhamentos nas redes sociais, as vaquinhas virtuais para arrecadação de dinheiro, os postos físicos para coleta de doações e os negócios sociais de pequenas, médias e gigantes empresas, ONGs, startups, empresários filantropos, igrejas, celebridades, influencers...

 

A algaravia sobre a falta de políticas públicas, de plano diretor, de medidas estatais, de saneamento básico, de moradia popular...de Estado estancou. Para ser requentada mais tarde, e, novamente, reproduzida frente ao próximo episódio, de causas “naturais” ou não, a afetar os contingentes mais pobres e miseráveis da população, ditos “vulneráveis”. Ou requentada nas campanhas eleitorais, interligadas à defesa de políticas de identidade, uma vez que a maioria dos mortos nos “desastres naturais” são pretos, mulheres e crianças com ou sem os direitos ambientais, envolvidos na atualização e ampliação dos ditos “crimes ambientais”.

 

Junto às lamúrias sobre a falta, somou-se a comiseração diante do que muitos consideram inevitável: pelas catástrofes que “acontecem”, pela realização da vontade divina manifesta como provação pelos mortos e pelas perdas materiais e graça pela sobrevivência. Quase nada se falou além de breves menções às mudanças climáticas, provável causa das tempestades avassaladoras e em volume de água surpreendente. Colocadas como pobres e sofredoras, nada foi questionado sobre a forma como as pessoas que vivem nestes lugares se relacionam com a mata, o relevo, os córregos que ali existem. Há, também, um desmatamento dessas localidades para a construção das casas erguidas sem considerar o solo e o entorno, que se soma às devastações de matas e florestas em áreas muito maiores, reduzidas a negócios de propriedade, também muito maiores.

 

A questão da propriedade segue intocada. Quando apareceu, foi restrita ao que classificam como questões de moradia e habitação. As pessoas que se negaram a sair de suas casas, mesmo após os deslizamentos, ou que voltaram aos destroços para salvar pertences e bens, figuraram em notícias, postagens e comentários como gente que não queria “perder o pouco que conquistou” ou “tudo que tem”.

 

A desconsideração dos elementos que compõem o espaço, o relevo e o solo sobre os quais casas são construídas não é exclusivo de pessoas pobres e “sem condições”. Na noite de ano novo de 2010, fortes chuvas atingiram os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. As tempestades na região do Vale do Paraíba paulista afetaram especialmente as cidades de São Luiz do Paraitinga, Guararema, Cunha e Araçatuba provocando alagamentos graves e a destruição da cidade de São Luiz do Paraitinga. Entre RJ e SP, ao menos 75 pessoas morreram. No Rio, houve o maior número de mortos, mais de 50, após deslizamentos em morros e encostas das cidades litorâneas de Angra dos Reis e Ilha Grande. Diferente das regiões onde recentemente ocorreram os deslizamentos, daquela vez, propriedades hoteleiras e turísticas foram soterradas. Alguns foram atingidos por desabamentos na praia, na faixa costeira. Um relatório elaborado pelo Projeto de Proteção da Mata Atlântica (PPMA) em parceria com o Instituto Estadual de Ambiente (Inea), em 2007, referente à primeira fase do Plano de Manejo do Parque Estadual da Ilha Grande, alertou para o “risco” das construções “irregulares” na praia do Bananal, local onde ocorreram a maioria das mortes nesta região. Neste caso, a “irregularidade” não provinha de construções realizadas com baixos recursos. No âmbito jurídico, alegou-se que um dos empreendimentos destruídos pelo desabamento, a Pousada Sankay, não possuía licença ambiental. Mas a questão não é o trâmite burocrático. Geólogos e geotécnicos destacaram que o relevo local, tanto da ilha quanto do continente, possui inclinação elevada. As praias possuem uma “capa de solo” bastante estreita, cujo material rochoso subterrâneo é repleto de fendas, resultando em grande instabilidade. Segundo o pesquisador Maurício Ehrlich, “o acúmulo de chuvas intensas satura a camada de terra, o que diminui a resistência do contato solo-rocha. Gera-se uma ruptura da base e a parte de cima da montanha desce junto. Além disso, as fendas das rochas são um depósito de água, o que exerce pressão elevada”.

 

Outro ponto da cidade de Angra dos Reis em que os deslizamentos acarretaram mais mortes foi o Morro do Carioca. Neste local, apesar da topografia frágil, foi determinante o boom populacional que acarretou desgaste do solo e acúmulo de lixo. O crescimento da população angrense remete às usinas nucleares, fundadas nos anos 1970, e que demandaram grande mão de obra na área da construção civil. As usinas nucleares, que dispensam maiores comentários sobre sua nocividade à vida na Terra, produziram também um adensamento urbano concentrado em moradias irregulares, cujos efeitos imediatos foram a impermeabilização do solo e o desmatamento.

 

Nos primeiros dias de abril de 2022, as chuvas intensas nas cidades de Angra, Ilha Grande e Paraty levaram aos deslizamentos que soterraram, ao menos, 18 pessoas. Nos primeiros dias de fevereiro de 2022, fortes tempestades alagaram cidades na região metropolitana da Grande São Paulo. Bairros em morros, localizados em cidades pobres como Franco da Rocha, desabaram matando, ao menos, 34 pessoas. Em um mês, somente nesta região de São Paulo, ocorreram mais mortes por soterramento do que as registradas, pela mesma causa, em todo o ano de 2021 (23 óbitos). Mas não é de hoje que, todo ano, morre gente arrastada ou soterrada pelo deslizamento de morros onde residem em casas de alvenaria e concreto ou em barracos.

 

Não é somente o saber específico de geólogos e geotécnicos que pode propiciar uma outra maneira de se relacionar com o solo, o relevo, o espaço ao redor de onde se pretende erguer uma morada. Há saberes muito antigos, não-discursivos, presentes em diferentes culturas, como as construções adobe feitas a partir de terra compactada com materiais orgânicos (milho, feno e esterco animal, por exemplo). Hoje, à técnica do adobe, acrescenta-se a cal e a mistura – de cal, terra e materiais orgânicos – é ensacada em polipropileno; tem-se assim o chamado superadobe. Considerado de baixo custo e ecológico, o superadobe não é destruído por terremotos, como se verificou em 2015, no Nepal e em Porto Rico. Durante os terremotos que atingiram o México em 2017, moradores de casas superadobe notaram que “ela balança com o movimento da terra”; não desabaram. O chão dessas casas é cuidadosamente nivelado à superfície do solo e, em geral, seus tetos são ovalados, cupulares. Procura-se estabelecer uma outra relação com o espaço e da construção com o meio, desde a sua composição até as formas pelas quais interage com o solo, o entorno, considerando possíveis intempéries.

 

as lutas nos campos e nas florestas

 

A região Amazônica não é somente a maior emissora de gases do efeito estufa, é também uma das mais violentas, de acordo com os documentos “Cartografias das violências na região Amazônica”, divulgado em 2021, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto Clima e Sociedade (ICS), o Grupo de Pesquisa Territórios Emergentes e Redes de Resistências na Amazônia (TERRA) e a Universidade do Estado do Pará (UEPA), e “Conflitos no Campo Brasil 2021”, divulgado em 2022, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que assina o relatório. Os dados aqui cotejados estão apresentados nestes dois materiais e são referentes aos levantamentos realizados pelos organizadores. Indicam um panorama geral do contexto amazônico e das execuções recorrentes nesta região. Todavia, é importante salientar que não se pretende, com a exposição destas estatísticas, afirmar uma verdade exata e inquestionável. Há muitas outras histórias e lutas para além do que as cifras oficiais e extraoficiais calculam e precisam.

 

Desde 2018, as mortes catalogadas como violentas crescem na localidade, com maior acentuação no interior. Diferente das demais regiões do país, lá se executa mais em municípios rurais e intermediários amazônicos e há queda nos índices dessas mortes nos centros urbanos – que ainda assim permanecem elevadas –, na contramão das urbes brasileiras. De 1980 a 2019, as taxas de mortalidade por “homicídio” cresceram 85% no Brasil. Houve decréscimo apenas no Sudeste.

 

Em 2020, foram registradas oficialmente 8.729 mortes violentas intencionais (“homicídio doloso”, “latrocínio”, “lesão corporal seguida de morte” e “mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora”) na Amazônia Legal, região que abrange os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins, Pará e Maranhão. Como nos outros estados brasileiros, o maior número de executados foi de homens, pretos e jovens.

 

De acordo com o Imazon, em 2020, a maioria dos assassinatos ocorreu em áreas classificadas como desmatadas (36%) e não-florestais (33%). Os municípios onde mais se matou foram os classificados como “sob pressão de desmatamento”, seguidos pelos desmatados, os não-florestais e, por fim, os florestais. Em todo o território brasileiro, os seis biomas são desmatados crescentemente. Na Amazônia a situação é ainda mais grave. Tanto em relação à devastação ambiental quanto em relação aos “conflitos no campo”. Em 2020, na Amazônia Legal, registrou-se 62,4% de todos os “conflitos por terra” no país.

 

O relatório do FBSP enfatiza as disputas entre “organizações criminosas”, especialmente do “narcotráfico”, como o agravante da violência local. Enumeram também: “exploração ilegal de recursos naturais, conflitos fundiários pela posse e titularidade de terras, pela construção de grandes empreendimentos – tal qual a construção da usina de Belo Monte, no Pará –, bem como pelo desenvolvimento de outras atividades ilícitas como o contrabando de animais silvestres, tráfico de entorpecentes, dentre outros”. Alegam falta de segurança pública e indicam como causa da incidência de violências o reduzido contingente policial (quando comparado aos demais estados). As Operações da Força Nacional de Segurança Pública e/ou de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) são consideradas “pouco efetivas” sobre a letalidade violenta. Entre 2018 e 2021 foram perpetradas 108 operações da Força Nacional e 5 de GLO na Amazônia. No que situam como “outro lado”, elencam as “facções criminosas” atuantes na Amazônia Legal: Bonde dos 13 (B13); Bonde dos 40 (B40); Comando Vermelho (CV); Equipe Rex; Família do Norte (FDN); Família Terror do Amapá (FTA); Irmandade, Força Ativa e Responsabilidade Acreana (IFARA); Primeiro Comando da Capital (PCC); Primeiro Comando do Maranhão (PCM); Primeiro Comando do Panda (PCP) e União Criminosa do Amapá (UCA).

 

Todas as “facções” nomeadas no relatório estão envolvidas, principalmente, com o tráfico de substâncias catalogadas legalmente como drogas. No documento inexiste maiores detalhes sobre o tráfico de pessoas, animais e plantas. Assim como não menciona a caça, o garimpo, a mineração, os madeireiros, os latifundiários. Dispostos enquanto polos opostos, as organizações do tráfico de drogas e as forças de segurança negociam entre si, não só os entorpecentes, mas dinheiro, armas, circulação em territórios. A presença de milícias/agromilícias e de igrejas neopentecostais, ignoradas pelo FBSP, também estabelecem acordos com essas forças. O exemplo mais descarado da atuação das milícias, possivelmente, é o “caveirão rural” usado para atacar guarani-kaiowá, em Dourados, Mato Grosso, com balas de borracha, gás e armas de fogo. Assim como não é à toa a entrada de cultos pentecostais em Terras Indígenas (TIs) e aldeias. É conhecido o respeito de organizações do tráfico de drogas com tais igrejas. Uma das poucas maneiras de sair do Partido é entrar, comprovadamente, para a igreja e, preferencialmente, empreender-se como pastor.

 

É insustentável o argumento da instituição relatora do documento de que o problema na região amazônica advém da falta de polícia. Pelo contrário, operando por espelhamento, todas as organizações elencadas como facções agem de forma semelhante às polícias oficiais com suas execuções, torturas, tribunais. São elas próprias indissociáveis da lei, do proibicionismo e da criminalização de certas substâncias e plantas definidas como drogas. Mais uma vez, explicita-se que o ilegal inexiste sem o legal, e vice-versa, e que os ilegalismos não são somente dos outros. A atuação de tais forças não se restringe ao território nacional. Tal qual as grandes empresas que fomentam os garimpos e a mineração no Brasil, não se restringem aos países vizinhos e à América Latina. Os negócios envolvem países ricos, signatários da ONU, do Pacto Global, sustentáveis, com leis trabalhistas “dignas”, paridade de gênero, menores índices de corrupção e violências letais...

 

Em 18 de abril de 2022, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou o último número de sua publicação anual, “Conflitos no Campo Brasil”, apresentando dados referentes ao ano de 2021. Realizado na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília, o evento foi composto por uma mesa que contou com a participação de representantes da CPT, da CNBB, da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA); do Conselho Indigenista Missionário (Cimi); do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT); da guarani-kaiowá, Jaque Kuña Aranduhá; de Geovane da Silva Santos, pai de Jonatas, menino morto a tiros em fevereiro deste ano na Zona da Mata de Pernambuco. Apesar de não contar com palestrantes, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi um dos articuladores e organizadores do evento. A fala do Secretário Executivo do Cimi evidenciou a presença policial letal na região, inclusive em Terras Indígenas, mencionando a execução de quatro chiquitano e de Isac Tembé por balas disparadas por oficiais fardados, às quais acrescentou a violência de milícias nas TIs Yanomami e Munduruku.

 

Em 2022, centenas de casas desabaram em regiões pobres no Sudeste do país, com reincidência da tragédia anunciada. As autoridades deixaram que as moradias deslizassem junto aos morros. Em 2021, no campo, em todas as regiões do Brasil e em comparação ao ano de 2020, houve aumento de despejos e ameaças de despejo (12% e 13%), expulsões (18%), destruição de casas, bens e roças por agentes de segurança ou com a anuência deles (215%, 88% e 43%); pistolagem (80%) e invasões (11%). Os alvos preferenciais foram as TIs e os acampamentos sem-terra. Aldeias e casas habitadas por indígenas de diversas etnias, assim como casas de reza, foram as mais queimadas.

 

O documento reitera o aumento da violência na Amazônia Legal. No último ano, dentre os cinco estados que reportaram maiores números de “conflitos por terra”, quatro estão nesta região (Pará, Maranhão, Bahia, Mato Grosso e Rondônia). A Pastoral da Terra elenca, como fatores decisivos para o crescimento da violência letal, o desmatamento, a pastagem e monocultura de soja, os saques de minérios, a grilagem e as inúmeras violências perpetradas contra povos tradicionais e em suas terras (expulsão, pistolagem e execuções). Em 2021, a Amazônia somou 52% do total dos “conflitos por terra” no Brasil. Lá o percentual de expulsões e ameaças de expulsão foi bem mais elevado que a média nacional (87% e 64,5%), assim como da pistolagem (69%) e das invasões (82%). Houve 63% de contaminações e envenenamentos por agrotóxicos, 78% de desmatamentos ditos ilegais e 81% de grilagens. Contudo, em 2021, aumentaram as ações de retomadas e ocupações de terras. Foram 50 ações e 4.761 famílias envolvidas em 2021, em relação à 29 e 1.391 famílias em 2020. A maior incidência de ações deste tipo ocorreu no Sudeste do Brasil.

 

Em 2021 foram registrados, oficialmente, 35 assassinatos decorrentes de “conflitos por terra”. A CPT considera que ocorreram dois massacres (execução de 3 pessoas ou mais). Na TI Yanomami, em Roraima, foram mortos três indígenas “isolados”, os moxihatëtëa. No Acampamento Ademar Ferreira, em Rondônia, três sem-terra foram assassinados. Contabilizaram 109 óbitos em “decorrência dos conflitos”, 132 ameaças de morte e 27 tentativas de assassinato. Foram registradas oficialmente 75 agressões físicas e 13 torturas praticadas por capatazes de fazendeiros.

 

Na publicação “Conflitos no Campo Brasil 2021”, pela primeira vez, reporta-se violências praticadas contra pessoas LGBTI+: 5 pessoas, quatro sem-terra e um indígena. A liderança indígena foi detida durante ocupação na TI Potyguara Lagoinha, no Ceará. Ele apanhou e foi ameaçado pelos policiais antes de ser liberado. As forças de segurança também torturaram e detiveram uma lésbica sem-terra em fevereiro de 2021. Considera-se provável que as mãos fardadas mataram Fernando dos Santos Araújo, homem gay que escapou do massacre de Pau D’Arco. Na época, a polícia dizimou dez pessoas que viviam no Acampamento Nova Vida, dentro da Fazenda Santa Lúcia. Um dia antes de Araújo ser morto, o advogado das pessoas massacradas, José Vargas, foi solto após ficar um mês detido sem justificativas. Ainda que a vida e a morte de Araújo estivesse reduzida e catalogada como de LGBTI+, também era testemunha ocular da operação policial em Pau D’Arco.

 

Em 2021, a polícia invadiu acampamentos sem-terra e prendeu dezenas de pessoas, inclusive crianças. No Acampamento Escurão, em Pimenta Bueno, levaram 30 pessoas. As casas e barracos foram destruídos, motosserras e outros equipamentos foram roubados, e quem não foi detido foi espancado pelos agentes de segurança. No Acampamento Boa Esperança, também em Rondônia, 14 camponeses foram presos.

 

Depois de Rondônia, os estados do Maranhão, Roraima, Tocantins e Rio Grande do Sul foram os que contabilizaram mais execuções em 2021. Os maiores alvos foram: indígenas, sem-terra, posseiros, quilombolas, assentados, pequenos proprietários, quebradeiras de coco babaçu e um “aliado”. A maioria das mortes catalogadas como “em consequência dos conflitos pela terra” foram de yanomami: 101 das 109 computadas.

 

Como não poderia ser diferente, há destaque no documento para as violências perpetradas na TI Yanomami, habitada por yanomami, ye’kwana e, ao menos, oito povos “isolados”, dentre eles os moxihatëtëa. Em 2020, havia 206 mil hectares usurpados para o garimpo, atividade ocasionadora da maior devastação da TI e dos seres que a habitam. Em setembro de 2021, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) indicou um aumento de 3.224 hectares na área de garimpo. Dentre as 101 mortes tidas como “consequentes”, a maioria foram assassinatos por tiros disparados por garimpeiros, mas há o afogamento de crianças yanomami sugadas por dragas dos garimpeiros e um atropelamento por avião. Edgar Yanomami foi atropelado dois dias depois da ONU cobrar do governo federal um posicionamento a respeito da escalada de violências contra indígenas.

 

De acordo com alguns yanomami, os moxihatëtëa executados haviam atacado o garimpo Faixa Preta. Uma flecha lançada contra os garimpeiros por um moxihatëtëa foi coletada pelos yanomami e apresentada ao Ministério Público Federal, como prova na solicitação de investigações...

 

Inexiste conflito no campo. Há, na realidade, um massacre conduzido por forças variadas e brutalmente armadas. São proprietários ou seus serviçais. Estão em aliança entre si e gozam de proteção oficial dos agentes de segurança e das autoridades. A seletividade penal opera a seu favor. O mercado e os negócios internacionais, também.

 

O documento apresenta dados parciais das execuções no campo em 2022: 14 assassinatos até março. Em janeiro, na cidade de São Félix do Xingu, segunda maior emissora de gases do efeito estufa do país, uma família foi dizimada. O Zé do Lago, Márcia Nunes e a filha deles, Joane Nunes, foram encontrados  em estado de decomposição, na casa em que viviam, às margens do Xingu. Foram executados a tiros. Eles realizavam trabalhos de preservação da floresta, mantinham um projeto de reprodução de tartarugas e tracajás que eram soltos nas águas do Xingu para repovoá-lo. Residiam em uma Área de Preservação Ambiental (APA), Triunfo do Xingú. A execução dos três foi muito pouco noticiada. Nada mais foi dito.

 

Zé do Lago e sua família viviam em uma área reivindicada pelo irmão do prefeito da cidade e pecuarista, Francisco Torres de Paula Filho. Bem próximo à casa de madeira habitada pelo ambientalista, estão as fazendas dos irmãos Torres. A propriedade rural do prefeito João Cleber de Souza Torres (MBD) é vizinha à terra em que vivia Lago. Os irmãos são conhecidos na região por comandarem invasões e grilagens. Além de seus latifúndios, são proprietários da madeireira Impanguçu Madeira e Maginga. Em 2014, foram encontrados três trabalhadores escravizados em sua fazenda. Antes de ser reeleito, ele foi investigado por lavagem de dinheiro e desvio de recursos públicos.

 

De acordo com as atualizações e levantamentos da Pastoral da Terra, até junho de 2022, 22 pessoas foram mortas em “conflitos no campo” no Brasil; 18 delas, na Amazônia Legal. Nos meses recentes, alguns casos vieram à público – com repercussão baixa ou um pouco maior. No dia 21 de maio, o guarani-kaiowá Alex Recarte Vasques Lopes, de 18 anos, saiu com outros dois jovens para buscar lenha na vizinhança de onde morava, na TI Taquapery. O corpo de Alex foi encontrado com cinco perfurações de bala. A terra guarani e kaiowá se encontra cercada por fazendeiros. Os parentes do jovem, após sua morte, retomaram a Tekoha Jopara, em um local expropriado por uma fazenda. No dia 13 de maio, Sarapó Ka’apor, integrante dos Tuxa Ta Pame – guarda de autodefesa Ka’apor – foi morto. Um morador não-indígena da região lhe ofereceu um peixe envenenado.

 

No dia 17 de junho, Wesley Flávio da Silva foi baleado nas costas, dentro da sede do Projeto de Assentamento Nova Floresta, em Campo Novo de Rondônia. Ele e sua família, recentemente, haviam mudado de cidade devido às crescentes ameaças de fazendeiros e seus serviçais. O Assentamento Nova Floresta existe desde os anos 1990, visando a ocupação de um antigo seringal, desativado na época, mas, rapidamente, usurpado pela grilagem da Fazenda Marechal Rondon, propriedade do político Ernandes Amorim. No dia 24 de junho, o guarani-kaiowá Vito Fernandes foi executado por tiros disparados por policiais do alto de um helicóptero. Junto com outros indígenas, ele esteve na retomada das terras Guapo’y, confiscadas como propriedade de um fazendeiro, em Amambai, Mato Grosso do Sul. Eles foram atacados com armas de fogo por seguranças privados, capangas e capatazes do fazendeiro e, no dia seguinte, pela polícia do Estado. Nove guarani-kaiowá ficaram feridos pelos tiros disparados pelas forças de segurança.

 

Em 05 de junho, o Dia do Meio Ambiente, duas execuções ganharam especial atenção em meio à imprensa, opinião pública, organizações de direitos humanos, diplomatas, políticos...O indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips foram mortos a tiros enquanto navegavam pelo rio Itaquaí, no Vale do Javari. Pereira foi um dos principais articuladores de uma rede de autodefesa indígena, na qual ensinou alguns matise, kanamari, mayoruna e marubo a utilizarem aparatos eletrônicos de monitoramento para monitorar as terras indígenas e os Santuários do Vale do Javari. Somados aos saberes de cada um desses povos e seu conhecimento sobre as florestas, o objetivo era coletar material, especialmente imagens e dados georreferenciados, para servirem como “provas” a serem entregues à polícia e expostas em denúncias. Os alvos eram os caçadores e pescadores, que traficam animais – vivos e/ou mortos – e ameaçam a extinção de espécies como o pirarucu; os garimpeiros e madeireiros; quem destrói a vida existente nessas matas e rios, e os povos que habitam essas terras. Phillips realizava uma pesquisa sobre sustentabilidade na região amazônica e pretendia escrever um livro sobre o assunto, com fomento da Fundação Alicia Patterson. Ele era colaborador do jornal The Guardian. É inequívoco dizer que a execução dele levou à repercussão planetária do caso e atraiu maior atenção também no Brasil, onde as notícias sobre a morte dos dois permaneceram divulgadas e atualizadas.

 

O indigenista e o jornalista ficaram “desaparecidos” mais de 10 dias, e a hipótese de aparecerem vivos, desde o início, era muito baixa. Ambos eram ameaçados de morte e mantinham, constantemente, contato com suas esposas. Elas sabiam que um sumiço por tão longo período era indício de que algo havia escapado ao planejado. Pouco tempo depois, no dia 7 de junho, o primeiro “suspeito” foi detido: Amarildo da Costa de Oliveira, o “Pelado”. Na semana seguinte, um dos irmãos de Pelado, Oseney da Costa de Oliveira, o “Dos Santos”, foi preso acusado de participar no caso. Ele negou a participação. As autoridades dizem que Pelado confessou ter matado os dois somente no dia 14 de junho. Os restos dos corpos de Phillips e Pereira foram encontrados no dia 15 de junho – informação mantida em sigilo pelas autoridades por alguns dias. Um terceiro suspeito, que de acordo com a polícia, também confessou o “crime” foi Jefferson da Silva Lima, o “Pelado da Dinha”. Há ainda um quarto suspeito, que declaram ter se entregado à polícia na delegacia da Sé, região central de São Paulo, e confessado sua participação na execução e ocultamento dos cadáveres (há mais quatro suspeitos de terem atuado no esquartejamento, incineração e ocultação dos corpos). A motivação dos pescadores e caçadores, segundo os agentes de segurança, é que o indigenista atrapalhava seus negócios. Alega-se que ele trafegava pelos rios, próximo às embarcações dos pescadores, para afugentar os peixes.

 

Autoridades aventam que possa haver mandantes que encomendaram essas mortes, especialmente a de Pereira. A principal – e genérica – suspeita é o “crime organizado” e o “narcotráfico”. Na imprensa, algumas declarações oficiais sublinham que “um empresário” peruano, conhecido como “Colômbia”, financiava a pesca, classificada como ilegal, praticada por Pelado e comprava os peixes.

 

A atuação do indigenista junto aos indígenas incomodava muitas forças, até mesmo a Funai, órgão do qual foi afastado em 2019. Pereira chefiava a coordenação especializada em “índios isolados e de recente contato”. Foi então que ele passou a integrar a organização das equipes de vigilância, como parte de um projeto da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Desde o começo, a Univaja reportava suas atividades às autoridades, à Funai e ao Ministério Público Federal. O início do monitoramento e [da] fiscalização foi comunicado a estes órgãos em primeira mão. Na época, o coordenador regional da Funai, em Atalaia do Norte, era o tenente de reserva Henry Charlles Lima da Silva que colocou uma série de entraves para desautorizar as operações de vigilância. Quando todas as tentativas de impedir a Univaja foram exauridas, o tenente ainda mantinha as restrições ao “voluntário Bruno”. Ele deixou o cargo em novembro de 2021, após uma reportagem jornalística expor uma gravação na qual o tenente tentava induzir indígenas a “meter fogo” nos “isolados”. Somente no final de 2021, Pereira e outros indigenistas tiveram permissão da Funai para ingressar na TI do Vale do Javari com o propósito de auxiliar indígenas no monitoramento das atividades consideradas “ilegais”.

 

No dia 23 de junho, quando os restos dos corpos de Bruno Pereira e Dom Phillips foram liberados – esquartejados e incinerados – para serem velados, cerca de 200 indígenas, em sua maioria kanamari, que vivem no Vale do Javari protestaram em frente à Coordenação Regional da Funai, em Atalaia do Norte. No mesmo dia, outras manifestações ocorreram em Belém do Pará, Brasília e São Paulo. Servidores da Funai, em ao menos 18 sedes do órgão, paralisaram suas atividades. No dia seguinte, o funeral do indigenista teve também uma cerimônia xucuru, realizado pelos indígenas que entoaram cantos toré ao redor do caixão. Não houve muita repercussão ou desdobramentos dos protestos. Nessas manifestações, lembrou-se de Maxciel Pereira dos Santos, servidor da Funai, baleado com um tiro na nuca, em plena luz do dia, em uma rua movimentada do Vale do Javari, em setembro de 2019. O caso foi pouco noticiado e a família de Maxciel acabou levando adiante uma investigação à parte. Nada mais foi dito.

 

Nos últimos três anos, outras execuções acabaram tendo um pouco mais de repercussão por envolverem lideranças indígenas, mas nenhuma dessas mortes foi tão noticiada como a de Bruno Pereira e do inglês Dom Phillips. Em fevereiro de 2019, em Manaus, Francisco Pereira, liderança Tukano, foi morto a tiros dentro da comunidade Urukia. Homens mascarados dispararam seguidas vezes contra ele, na frente de sua mulher e filha. Em julho, no Amapá, Emyra Waiãpi foi executado por garimpeiros. Em novembro, dentro da TI Araribóia, no Maranhão, Paulino Guajajara, um dos guardiões da floresta, foi executado por madeireiros. No mês seguinte, em Jenipapo dos Vieiras, Firmino Silvino Guajajara e Raimundo Bernice Guajajara foram mortos a bala. Outros dois guajajara foram feridos, mas viveram. Em abril de 2020, já na chamada pandemia de Covid-19, na cidade de Tarilândia, Ari Uru-eu-wau-wau foi assassinado durante a madrugada. Ele era integrante do grupo de vigilância dos Uru-eu-wau-wau, fazia registros e encaminhava denúncias de atividades ilegais de madeireiras na região. Foi ameaçado por meses antes de ser executado. Em fevereiro de 2021, em Capitão Poço, Isak Tembé, após perseguições e ameaças, foi executado por policiais militares. No mês seguinte, no mesmo local, Didi Tembé foi baleado na cabeça, enquanto fugia de um ataque a tiros, em sua moto.

 

calibrando armas nos alvos do projeto civilizatório

 

Indígenas e não-indígenas envolvidos na articulação de formas de autodefesa contra as violências perpetradas por caçadores, garimpeiros, madeireiros, grileiros, fazendeiros e etc. são alvos constantes das perseguições, ameaças e execuções. Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips não foram exceções. Assim como no campo, as lideranças de acampamentos sem-terra são os focos principais dos assassinatos. Para além desses alvos mais cirúrgicos, quem “atrapalha” leva bala, quem questiona leva bala, quem está em lugar “indevido” leva bala. Em discurso para empresários em 29 de junho, o presidente do Brasil foi aplaudidíssimo quando identificou estas populações como prejudiciais ao país.

 

Há, também, frequentes envenenamentos por agrotóxicos, violências sexuais contra mulheres indígenas e o sequestro de crianças. As violências contra as florestas e os seres que nelas vivem são infindáveis, sangrentas e aplaudidas pelo empresariado.

 

Entre os dias 13 e 15 de junho, os ka’apor realizaram um encontro na TI Alto Turiaçu, nas Áreas de Proteção Ywyyahurenda e Ararorenda. Saudando a existência de Sarapó, caminharam pela floresta, entoando cantos, relembrando histórias e lutas, suas relações com a mata e os outros bichos. No dia 13 de junho, o Conselho Indígena de Roraima reivindicou o ataque incendiário a uma balsa de garimpo, na fronteira com a Venezuela, na TI Raposa do Sol. A ação foi levada adiante por indígenas que compõem um grupo de fiscalização contra os garimpos, que assolam também essas terras. Em ações anteriores, neste mesmo ano, os indígenas apreenderam materiais de garimpo e destruíram uma balsa no rio Maú.

 

Ações como estas, ou como as flechas lançadas pelos “isolados” contra os garimpeiros, explicitam que existências outras seguem vivas e em luta nas florestas amazônicas. Algumas vezes, buscam aliados em organizações burocráticas e estatais. Nem sempre. A existência desses povos é mais longeva do que a do Estado. Seus modos de existência são outros, fortalecem-se precisamente contra o Estado. Quando se aliam a forças do Estado são devorados pela burocracia, as identidades governamentais, as encenações burocráticas, o domínio do saber científico, as edificações de lideranças aos moldes ocidentais e acabam executados.

 

As violências do Estado, da Igreja, do mercado, dos brancos ditos civilizados persistem há séculos contra os indígenas nas Américas. Aos poucos, são tragados pelos governos e reduzidos a povos resilientes, como espera a ONU.

 

As armas e as tecnologias usadas para a devastação se aprimoram a cada dia, atualizando a desigualdade sempre maior entre as forças bélicas nesses embates. Mas os indígenas sabem o que os brancos e seus bancos de dados desconhecem. Escapam aos radares, drones e GPSs. Fogem da mira, seguem em movimento, atentos, guerreiros. Incógnitos e ingovernáveis, os “isolados” continuam vivos, apartados e livres da sociedade e de toda morte e mortificação que ela produz e consome.

 

Muitos indígenas sabem que a questão não é só de terras, proteção de meio ambiente e outros similares que embelezam ONGs, institutos e fundações da sociedade civil organizada; que não se trata de protagonismo, aliança com brancos civilizados e análogos. Sabem que continua em marcha o racismo do projeto civilizatório iniciado com os jesuítas: acabar com quem não tem lei, fé e rei.

 

R A D. A. R

 

Observatório 2030
https://observatorio2030.com.br

 

Pacto Global Rede Brasil
https://www.pactoglobal.org.br

 

Medo de novos deslizamentos atormenta moradores do Recife
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/06/medo-de-novos-deslizamentos-atormenta-moradores-do-recife.shtml

 

Chuvas em PE: Adolescente de 13 anos morre em deslizamento; número de óbitos sobe para 129
https://www.brasildefatope.com.br/2022/06/07/chuvas-em-pe-adolescente-de-13-anos-morre-em-deslizamento-numero-de-obitos-sobe-para-129

 

Petrópolis registrou 250 deslizamentos em 24 horas por causa da chuva
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-03/petropolis-registrou-250-deslizamentos-em-24-horas-por-causa-da-chuva

 

Petrópolis: protesto do Greenpeace Brasil homenageia vítimas da tragédia
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/petropolis-protesto-do-greenpeace-brasil-homenageia-vitimas-da-tragedia/

 

8 dos 10 municípios que mais emitem gases do aquecimento global no Brasil estão na Amazônia
https://g1.globo.com/meio-ambiente/aquecimento-global/noticia/2022/06/13/8-dos-10-municipios-que-mais-emitem-gases-do-aquecimento-global-no-brasil-estao-na-amazonia.ghtml

 

Estudo avisou sobre tragédia em Angra
https://oeco.org.br/reportagens/23228-estudo-avisou-sobre-tragedia-em-angra/

 

Em 1 mês, SP tem mais mortes por deslizamentos que em todo o ano de 2021
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/02/em-1-mes-sp-tem-mais-morte-por-deslizamento-que-em-todo-o-2021.shtml

 

Superadobe: o material de construção sustentável e resistente a terremotos que pode salvar vidas
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-47927317

 

Cartografias das violências na região Amazônica
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/11/cartografias-das-violencias-na-regiao-amazonica-sintese-dos-dados.pdf

 

Conflitos no Campo Brasil 2021
https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/6001-conflitos-no-campo-brasil-2021

 

Família de ribeirinhos morta morava em área reivindicada por irmão de prefeito no PA
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/02/familia-de-ribeirinhos-morta-morava-em-area-reivindicada-por-irmao-de-prefeito-no-pa.shtml

 

Sinal de Fumaça: monitor socioambiental
https://www.sinaldefumaca.com

 

Funai de Brasília barrou Bruno durante a primeira fiscalização com indígenas no Javari
https://apublica.org/2022/06/funai-de-brasilia-barrou-bruno-durante-a-primeira-fiscalizacao-com-indigenas-no-javari/

 

Sussuarana: tecendo lutas em defesa da terra e dos territórios em resistência
https://sussuarana.noblogs.org

 

 

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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