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observatório ecopolítica

Ano V, n. 115-116, agosto de 2022

 

Haiti: das revoltas à produção de pacificações


1791-1804

 

Conhecido, no passado, como pérola das Antilhas e Saint-Domingue, o Haiti foi e continua sendo palco de revoltas, apropriações, autocracias, missões de pacificação e constantes ajudas humanitárias. Segundo a ONU, ONGs e muitos especialistas das humanidades, trata-se de um território que carece de segurança e desenvolvimento sustentável, ideia fixa que norteia as condutas das autoridades estatais e, também, dos ativistas e formuladores de políticas voltadas à integração regional.

 

Destino de aproximadamente um terço das pessoas escravizadas na região, o Haiti foi uma colônia "frutífera" aos conquistadores e às incipientes relações de produção capitalista no "Velho Mundo". Remessas expressivas de tabaco, batatas, café, algodão e, principalmente, açúcar abasteciam o comércio europeu. Fomentava-se, inclusive, o consumo de alguns desses produtos – como o café – por parte dos operários e operárias. As longas e exaustivas jornadas de trabalho exigiam a ingestão de estimulantes, uma vez que a disciplina deveria ser mantida ao longo de 12, 15, 16 horas.  

 

Ao menos desde 1791, período marcado por inúmeras revoltas na parte ocidental da ilha, o território apropriado pelo Reino de Castela – em 1492 – e, mais tarde, pelo Estado francês – no final do século XVII – passou a ser visto pelos Estados europeus e proprietários de terra do "Novo Mundo" como um ambiente no qual prevalecia a desordem, o caos, o perigo. Um "péssimo" exemplo para as existências cujos corpos estavam marcados, mutilados e alanceados devido ao trabalho escravo. Uma chama de fogo que poderia se estender para as regiões vizinhas, atiçando os que estavam encarcerados nas propriedades senhoriais e potencializando insurgências que já preenchiam a paisagem da América Latina, como quilombos e levantes de escravizados. 

 

As revoltas em meio à Revolução Haitiana, acontecimento que estremeceu as terras do continente americano, estiveram voltadas ao combate a uma situação que havia se tornado insuportável. Foi uma recusa às mutilações, aos acorrentamentos em troncos de madeira, ao trabalho escaldante nas fazendas de engenho. Os corpos dos revoltosos, ao menos nos momentos nos quais destruíam as grandes plantações de cana-de-açúcar e parte da infraestrutura local, deixaram de ser propriedades absolutas, seja do Estado francês ou dos senhores de engenho.  

 

Nesse período, diferentes Estados intervieram no território do Haiti, como Espanha, Inglaterra e França. Isso se deve, entre outras coisas, ao fato de que o país era o responsável por 45% das exportações de açúcar. Era a colônia francesa mais rentável e um dos principais exportadores de café e de açúcar do planeta, fazendo com que parte expressiva das comercializações relativas a ambos os produtos na Europa envolvessem a França, que havia se tornado a principal comercializadora dessas matérias-primas no continente europeu. Era um território cobiçado. Além disso, desde 1793, momento no qual vigorava a República jacobina, Espanha e Grã-Bretanha estavam em conflito com o Estado francês devido ao desmantelamento do Antigo Regime e à possibilidade da eclosão de revoltas em outras partes do continente. Não demorou para que esses embates se estendessem para a pérola das Antilhas, que se tornou um cenário marcado por confrontos entre diferentes exércitos.

 

Muitos dos revoltosos, inicialmente, alinharam-se aos exércitos estrangeiros, como foi o caso de Toussaint Louverture, que havia combatido ao lado das tropas francesas. O temor em relação aos possíveis rumos das revoltas iniciadas em 1791 e o apoio momentâneo por parte de alguns insurgentes levou a Assembleia Nacional da França a conceder direitos políticos e sociais aos negros livres, uma vez que, todavia, não eram considerados cidadãos. Três anos mais tarde, em 1794, o Estado francês decretou a abolição da escravatura em todas as suas colônias. Relembrando: abolição da escravatura ocorreru no Brasil quase 100 anos depois, em 1888.

 

Com o apoio das forças francesas, as tropas encabeçadas por Louverture foram capazes de expulsar os soldados vinculados à Coroa Espanhola e, posteriormente, à Grã-Bretanha. Não obstante, as divergências em relação às pretensões dos franceses fizeram com que houvesse um distanciamento imediato entre o novo governo haitiano e o Estado francês, cujo objetivo era retomar sua influência sobre a política e a organização da economia local, sobretudo a produção açucareira.

 

Isso provocou uma reação por parte dos franceses e de seus apoiadores locais. Os desdobramentos do processo revolucionário francês também incidiram nos rumos da Revolução Haitiana. O fim da República jacobina e a ascensão de Napoleão Bonaparte, em 1799, acirraram as tensões entre os revolucionários haitianos e o Estado francês. Não demorou para que Bonaparte, em 1801, enviasse cerca de 20.000 mil soldados e 20.000 mil marinheiros para o território haitiano. Havia a pretensão de restaurar a escravidão na ilha. As aspirações dos antigos colonos, contudo, não foram atingidas.

 

As batalhas envolveram inúmeras deserções e delações, como quaisquer conflitos entre forças de segurança estatais. Isso culminou no sequestro e na prisão de Louverture, que passou seus últimos dias no Châteu de Joux, forte localizado nas montanhas do Jura. Ele faleceu em 1803, um ano antes da Proclamação da Independência.

 

Os militares franceses, no entanto, sofreram sucessivas derrotas. Além disso, muitos adoeceram devido à febre amarela. Estima-se que milhares de soldados morreram por conta da disseminação do vírus. As forças haitianas, por fim, derrotaram os invasores estrangeiros. As pretensões vingativas produziram desdobramentos similares às demais revoluções políticas. Os revolucionários haitianos assumiram a punição como uma tarefa "essencial" após o triunfo da revolução, considerada necessária para a consolidação de uma República independente comandada pelos antigos escravizados. Isso culminou na reprodução de relações de mando e obediência ao inverso, como havia ocorrido na Revolução Francesa. 

 

Em 1804, no dia 1º de janeiro, Jean-Jacques Dessalines se tornou governador e, mais tarde, imperador. O novo soberano do Haiti não demorou para implementar punições aos homens brancos, culminando na morte de, aproximadamente, 3 mil pessoas. Esse processo ficou conhecido como "Massacre do Haiti". Esses atos ocorreram entre janeiro e abril de 1804. Decretou-se que todos os indivíduos que tivessem colaborado de alguma maneira com os exércitos estrangeiros seriam executados. Ao longo dos meses mencionados, militares haitianos se dedicaram a invadir domicílios e a executar quaisquer suspeitos. Os inimigos da pátria, segundo eles, deveriam ser punidos e, por conseguinte, eliminados. Os alvos eram homens, mulheres e crianças brancas. Muitos fugiram para os Estados Unidos, sobretudo para as cidades localizadas nas costas. Isso, evidentemente, contribuiu para a proliferação desses relatos na sociedade estadunidense, reforçando preconceitos e os interesses dos proprietários de terras e de escravizados nos estados do Sul.  

 

As reações ultrapassaram múltiplas fronteiras. O Brasil passou a limitar, nas primeiras décadas do século XIX, o percentual de escravizados em 40%. Considerava-se que um contingente acentuado de pessoas nessas condições poderia culminar na eclosão de revoltas ameaçadoras, colocando em risco a manutenção das vastas propriedades de terra centradas na exportação de matérias primas. Países como os Estados Unidos, França, Inglaterra etc. romperam quaisquer relações diplomáticas com o Haiti. Buscava-se isolá-lo política e economicamente, inviabilizando a construção de uma estabilidade interna e externa para a nova ordem vigente.

 

Isso se deve ao fato dos desdobramentos da Revolução Haitiana incidirem fortemente nessas localidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, houve um aumento significativo no número de revoltas de escravizados. Temia-se que a destruição de plantações e de propriedades proliferasse pelo território estadunidense, como também pelas colônias britânicas. A reação foi imediata. Thomas Jefferson, então presidente estadunidense, suspendeu quaisquer relações comerciais e introduziu bloqueios econômicos ao Haiti. Essa iniciativa derivou das pressões exercidas pelos derrotados nas batalhas que aconteceram na ilha: a França e a Grã-Bretanha.  A primeira, provavelmente, foi a maior afetada pelo triunfo da Revolução Haitiana, uma vez que havia perdido os frutos gerados pela sua colônia mais rentável.

 

O reconhecimento diplomático por parte do Estado francês ocorreria, apenas, em 1825, momento no qual o presidente do Haiti, Jean-Pierre Boyer, assinou um acordo com Carlos X, então monarca da França. Os danos gerados às propriedades dos antigos colonos não haviam sido esquecidos. Exigiu-se que a ilha caribenha reduzisse as tarifas sobre os produtos franceses e se comprometesse a indenizar os proprietários de terra. O reconhecimento da independência custou, aproximadamente, 150 milhões de francos, o equivalente a US$ 21 milhões nos dias de hoje. O Estado "independente" se tornou dependente da dívida.   

 

Para além dos desdobramentos mencionados, pode-se dizer que a potência das revoltas que ocorreram na ilha não se deve, evidentemente, à conservação do princípio de soberania e à continuidade do Estado enquanto uma nova República, independentemente da classe no comando. Reside, ao contrário, na recusa à condição de escravo que era naturalizada por muitos.

 


século XXI

 


No século XXI, mais de 200 anos após esse acontecimento, o discurso humanista se metamorfoseou, mas continua presente nas recomendações e nas ações dos Estados e de Organizações Internacionais.

 

Essas ações e recomendações se orientam pelo conceito de Segurança Humana, que ao enfatizar as diversas dimensões da segurança, em sua conquista e manutenção, produzem formas de compartilhamento de governo que envolvem agências estatais e não estatais, operando, pelo que veio a ser chamado de governança, uma forma de gestão compartilhada pelos vivos no planeta.

 

No caso do Haiti, enfatiza-se, sobretudo a partir do início da MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), em 2004, que a "insegurança" deve ser respondida pela comunidade internacional por meio de ajudas humanitárias oferecidas por Estados, organismos multilaterais e, também, setores da sociedade civil organizada projetada planetariamente.

 

No início do mês de agosto, a secretária-geral da OEA, Luís Almagro, argumentou que as iniciativas levadas adiantes pela comunidade internacional, ao longo das últimas duas décadas, fracassaram no Haiti. Ainda de acordo com ele, em nota publicada pela organização, incursões voltadas à pacificação do país não foram capazes de construir instituições "fortes", garantir a segurança interna e oxigenar a econômica local. As saídas apontadas pela Organização dos Estados Americanos, como não poderia ser diferente, seguem envolvendo o chamado protagonismo por parte da comunidade internacional, considerada fundamental para a abertura de um diálogo entre as diferentes forças políticas e as organizações armadas locais e a realização de eleições limpas. São, segundo as chamadas autoridades internacionais, medidas necessárias para a securitização da ilha.

 

Esse discurso remete ao início do século XXI. Em 2004, após a deposição do governo encabeçado por Jean Bertrand Aristides e a continuidade da guerra civil, noção utilizada incessantemente por parte expressiva da literatura política, a MINUSTAH foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU. A operação contou com a presença de tropas dos seguintes países: Brasil – cujas tropas lideraram a incursão – Equador, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru, Guatemala, Argentina, Japão, Nepal, Jordânia, Coreia do Sul, Siri Lanka e Filipinas.

 

Identificado como um país habitado por uma população, considerada (sugestão, majoritariamente, "vulnerável e, ao mesmo tempo, "carente" de segurança, ativou-se técnicas que visavam o gerenciamento da miséria local por meio de ajudas humanitárias, atendimento médico e odontológico, reconstrução e administração de escolas, distribuição de alimentos. Em consonância com a gestão dos acontecimentos que atravessavam a vida dos habitantes locais, ativou-se o racismo enquanto dispositivo de governo, uma vez que seria necessário pacificar as zonas do território classificadas como perigosas, como as favelas localizadas nas principais cidades, sobretudo em Porto Príncipe. Apontava-se que seria necessário conter as organizações armadas.

 

Em 2007, por exemplo, concretizou-se a operação de pacificação na favela de Cité Solei, habitada por, aproximadamente, 500 mil pessoas e considerada pela comunidade internacional como um dos principais redutos de criminosos. Naquele momento, outras localidades, como as favelas de Bel-Air e Cité Militaire, encontravam-se sob o domínio das forças militares. O temor em relação a essas regiões se deve ao fato de que são locais nos quais as revoltas populares costumam ser intensas, de difícil controle.

 

Execuções e violências sexuais – praticadas por militares e, também, agentes humanitários – foram relatadas diariamente por habitantes locais, alguns jornalistas e organizações vinculadas ao terceiro setor, que exigiam a abertura de investigações por parte da comunidade internacional. Eles argumentavam que, de acordo com as autoridades, a operação tinha como foco a redução da miséria e a reconstrução da institucionalidade, de modo que a repressão deveria ser utilizada de acordo com a legalidade. Ignorava-se, propositalmente ou não, não haver legalidade que não esteja condicionada às vontades dos mais fortes, uma vez que as pacificações estão diretamente atreladas à guerra. A paz envolve a introdução de novos direitos, como político, econômico, civil etc., condicionados aos interesses e às vontades das forças vencedoras dos combates. Os pacificadores, dessa maneira, são conquistadores, forças que prevalecem pelo triunfo e pela submissão das forças derrotadas, conquistando territórios e abrindo possibilidades para a eclosão de guerras futuras diante das assimetrias nas relações de poder. Assim, guerra e segurança, paz e pacificação, conquista e libertação, se metamorfoseiam em processos sempre inacabados, fazendo com que disputas territoriais, como as no Haiti, conectem controles planetários.

 

Vale ressaltar que a produção de mortes não esteve circunscrita às munições dos agentes das forças armadas, uma vez que as bactérias trazidas pelos conquistadores também incidiram na eliminação de muitas vidas, sobretudo dos habitantes das periferias dos maiores centros urbanos. Destaca-se que o surto de cólera que afligiu os habitantes esteve vinculado ao esgoto dos soldados que provinham do Nepal, propelido no Rio Artibonite, o maior do país. Isso despertou uma forte inquietação por parte da população, pois o Haiti não registrava casos de cólera há mais de cem anos. Muitos haitianos, inclusive, saíram às ruas contra a presença dos soldados nepaleses devido à proliferação de infecções intestinais. Além disso, os danos gerados pelo terremoto de 2010 agudizaram a situação, levando a um aumento exponencial de casos devido às condições de moradia, saneamento etc. De acordo com informações divulgadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Haiti registrou 734 mil casos e mais de 8 mil mortes devido à cólera. 

 

Essas estratégias de pacificação foram frutíferas para algumas companhias que almejavam se estabelecer no território haitiano, sobretudo devido aos baixos custos da mão de obra e à ausência de concorrentes locais. Muitos, inclusive, aproveitaram-se dos danos causados em meio aos tremores de 2010, uma vez que parte considerável da infraestrutura local foi destruída. Abriam-se possibilidades de investimentos voltados à "reconstrução" do país. A miséria, mais uma vez, mostrou-se fundamental para a produção e acúmulo de riquezas por parte de grandes empresas.

 

Em 2012, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) organizou um fórum com o objetivo de atrair empresários e, por conseguinte, investimentos. A Digicel, empresa que se dedica à prestação de serviços de telefonia móvel, tornou-se a maior investidora e empregadora da história do país, aproveitando-se dos baixos salários e "democratizando" o acesso aos smartpfones. Ao menos até aquele ano, a empresa já havia injetado mais de US$ 600 milhões de dólares na economia local, ampliando sua presença no mercado latino-americano.

 

Anunciou-se, também, a instauração do Parque Industrial de Caracol (CIP). A iniciativa faz parte de um conjunto de investimentos iniciados pelo Estado haitiano com a finalidade de criar centros de desenvolvimento econômico apartados da capital. O parque diz respeito a um empreendimento público-privado levado adiante pelo Estado haitiano em conjunto com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Estado estadunidense e a SAE-A, maior empresa sul-coreana dedicada à produção de vestuários e que possui plantas industriais em outros países da região, como Nicarágua e Guatemala.

 

Essa empreitada, assim como muitos outros investimentos dessa envergadura, resultou na apropriação das terras de pequenos produtores rurais da região, cuja atividade estava voltada ao cultivo de batatas, mamão, mandioca etc. Muitos foram absorvidos pelos empregos gerados pelo complexo industrial, tornando-se parte de um contingente expressivo de trabalhadores de baixo custo e que seguem produzindo produtos que abastecem grandes marcas internacionais, como Nike, Victoria's Secret, Old Navy etc.

 

Execuções, apropriações e distribuição de recompensas são alguns dos "legados" da MINUSTAH, que permaneceu no país até 2017. Criou-se um cenário no qual muitos puderam investir, apropriar-se de mercados e lucrar no país. Isso envolveu, direta ou indiretamente, as organizações armadas ou organizações criminosas. Afinal de contas, mesmo não sendo um produtor de munição e de armas, houve um aumento significativo na circulação desses materiais no Haiti, levando a um fortalecimento dessas organizações.

 

Esses grupos são os responsáveis pelo controle de diferentes regiões das cidades haitianas. Alegava-se, desde o início da MINUSTAH, que um dos objetivos da operação era conter essas organizações. Os agrupamentos mencionados, no entanto, cresceram de maneira expressiva desde o início do século. A massiva importação de armas e munições abastecem indústrias voltadas à produção de armamento, Estados e organizações que operam com o tráfico de armas. Há uma dependência recíproca entre as atividades classificadas como legais e ilegais. Segundo o Instituto para a Paz de Estocolmo, entre 2016 e 2020, os Estados Unidos da América elevou a sua participação no mercado internacional de armas, exportando equipamentos para mais de 90 países, incluindo o Haiti. Estima-se que 36% dos equipamentos exportados provenham dos EUA. Outros países, como Rússia, China, Alemanha e França, também têm destaque nessas comercializações, porém em níveis significativamente inferiores.

 

Sabe-se que as organizações criminosas têm forte influência em muitas territorialidades dos grandes centros urbanos ao menos desde a década de 1990. Foram, durante muitos anos, apoiadas por famílias locais que detêm o controle sobre grandes comércios. Um dos objetivos era garantir a segurança do monopólio sobre segmentos comerciais. Não demorou, no entanto, para que elas adquirissem cada vez maior projeção, aproximando-se de grupos políticos locais e servindo-os como forças de segurança paralelas. A proliferação dessas organizações e o controle cada vez mais acentuado dos subúrbios, rodovias e portos fez com que elas adquirissem maior independência. Hoje, operam, em conjunto com o Estado, como reguladoras da circulação de pessoas, mercadorias, prestação de serviços nas comunidades, administração das zonas portuárias, atividades humanitárias.

 

Alguns desses grupos se organizam em torno do que denominam de federaciones. O mais conhecido é o G9 an fanmi eye, constituído, também, por antigos integrantes da Unidade de Manutenção da Ordem (UDMO) – órgão vinculado à Polícia Nacional. Essas organizações atuam como forças pacificadoras de muitas localidades do país. Locais que haviam sido alvo dos soldados da MINUSTAH e dos agentes da ordem do Estado haitiano, como as regiões de Bel-Air e de Cité Soleil, encontram-se, agora, sob o domínio dessas federaciones. Suas fontes de renda são variadas, envolvendo, sobretudo, sequestros – principalmente de crianças e estudantes – e tráfico de drogas, contrabando de combustíveis.

 

A G9, desde a sua formação, em 2020, tornou-se um dos grupos mais fortes do Haiti. Está constituída por diferentes organizações criminosas que detêm autonomia financeira. A federação tem como objetivo fortalecer a atividade e o controle de cada grupo que a integra sobre suas respectivas regiões. Há apoio recíproco entre as partes federadas em situações de sequestros, uma das principais fontes de renda das gangues armadas.  A proximidade com autoridades nas diferentes instituições que compõem o Estado Haitiano, como Judiciário, Executivo e a Polícia Nacional, facilita o acesso ao armamento que ingressa no país por meio dos portos, controlados por esses agrupamentos.

 

Uma outra organização que está se apropriando de novos mercados é a 400 Mawozo, responsável pelo sequestro dos 21 missionários em 2021. O grupo, fundado em 2016, adquiriu o controle de uma zona estratégica na geografia local: o departamento de Coix-des-Bouquets. A maior rodovia que liga o Haiti e a República Dominicana encontra-se nessa região. O grupo, além se dedicar aos sequestros e à extorsão dos comerciantes dessa zona, controla grande parte da infraestrutura agrícola do departamento, cuja atividade econômica está centrada na agricultura.  As trocas entre campo e cidade, dessa maneira, estão condicionadas às atividades das organizações, as novas proprietárias das estradas do país.

 

A consolidação do controle dessas territorialidades significa, por conseguinte, a monopolização do mercado relativo às necessidades imediatas das populações que vivem nesses bairros. Em conjunto com autoridades públicas aliadas, gerencia-se a miséria por meio da violência armada e iniciativas filantrópicas, como distribuição de alimentos, prestação de serviços etc. Em meados de 2020, por exemplo, integrantes da organização G9 realizaram, em conjunto com a Polícia Nacional, campanhas com a finalidade de distribuir alimentos em áreas classificadas como carentes no distrito de Delmas.

 

Há um gerenciamento compartilhado da miséria em conjunto com as chamadas lideranças comunitárias, igrejas e autoridades políticas. As principais estradas do país estão sob a operação das mais de 100 organizações criminosas, responsáveis pelo fluxo de mercadorias, combustível e alimentos que ingressam no país. O abastecimento das cidades e do campo, dessa maneira, estão condicionados às vontades e aos interesses desses agrupamentos. 

 

Muitas dessas localidades são consideradas por esses grupos e, também, pelas autoridades públicas como perigosas devido ao histórico de revoltas. O G9, por exemplo, foi um forte aliado do ex-presidente Jovenal Moïse, executado em 2021, provavelmente por alguma organização opositora. O governo de Moïse não foi diferente de mandatos anteriores exercidos por outros governantes. Foi marcado por sucessivos e inúmeros protestos de rua. As revoltas no Haiti, geralmente, começam em regiões como Bel-Air e Cité Soleil. Em 2018, no acontecimento que ficou conhecido como Massacre de Porto Príncipe, massivos protestos contra o governo vigente eclodiram na favela La Saline. Integrantes das gangues armadas, vestidos com uniformes policiais e equipados com veículos e armamentos da polícia, reagiram imediatamente, executando aproximadamente vinte moradores. O objetivo, assim como de quaisquer forças de segurança, era conservar a ordem.

 

Em 2019, o mesmo ocorreu em Bel-Air. O bairro, assim como em outros momentos de sua história, foi tomado por barricadas e bloqueios de ruas. A resposta por parte das organizações foi imediata. Executaram mais de vinte pessoas. Mais uma vez, o objetivo era claro: conservar a manutenção da ordem.

 

As milícias atuam, em conjunto com a polícia, como forças de segurança do próprio Estado. Em momentos nos quais os habitantes desses bairros saem às ruas contra as forças políticas alinhadas às chamadas organizações criminosas, estas inviabilizam a circulação de pessoas nessas regiões por meio de bloqueios. Tudo para manter a ordem, o controle e a "estabilidade" de suas respectivas regiões. Trata-se de uma gestão compartilhada de cada território entre as federaciones e as forças políticas, que, por sua vez, disputam o controle sobre outras territorialidades com outras organizações criminosas e autoridades políticas.

 

Nas últimas três décadas, o Haiti foi palco do que se convencionou chamar de intervencionismo humanitário. Por mais que documentos publicados pelos organismos multilaterais e por associações em defesa dos direitos humanos ressaltem que operações como a MINUSTAH não foram capazes de recuperar a "estabilidade" política no Haiti, segue-se enfatizando que, por ser considerado um Estado falido, o país necessita de um escopo de Estado melhor, constituído por instituições democráticas, transparentes e responsivas social e ambientalmente. Ao conceberem o Estado enquanto categoria do entendimento, não dizem, propositalmente ou não, que não há organizações criminosas – constituídas por muitos agentes da polícia –, tráfico de drogas e apropriações de terras por parte de grandes companhias privadas sem a participação direta do Estado. Há relações entre as partes.

 

Do período colonial aos dias de hoje, o que não falta para o Haiti é Estado, seja externo ou interno. No entanto, não se trata de um continuum. No período colonial entre guerras de independência e revoltas de pessoas escravizadas, a distribuição da violência pendulava entre guerra (de Estados) e revoluções (disputando o controle do Estado). Hoje, a distribuição assimétrica da violência se faz em nome da busca por segurança (em suas várias dimensões) com democracia e desenvolvimento sustentável para a melhoria de todos e todas, não só no Haiti, mas no planeta. Das favelas de Cité Soleil aos grandes enclaves estatais e suas proveniências internacionais, todos desejam segurança (alimentar, societal, ambiental) e democracia. Se no período colonial as revoltas de escravizados na ilha do Caribe despertavam a reação defensiva dos Estados receosos que os ecos dos insubmissos fossem ouvidos em seu território, hoje é a partir da ajuda humanitária ao Haiti que se conectam fluxos legais e ilegais de violências e lucratividades, como se a ilha fosse a favela das Américas controlada por chefetes locais em negociações com lideranças planetárias, sem revoltas, pois um dia, entre execuções, chacinas e doenças, a ajuda humanitária trará aos hoje cidadãos e cidadãs livres a democracia e segurança almejada por eles. É por isso, que já nos anos 1990, o poeta cantou que o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui. Porque aqui não é o Haiti, mas é.

 

 

R A D. A. R

 

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O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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