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observatório ecopolítica

Ano V, n. 117-118, setembro de 2022.

 

internet e o crescimento acentuado de suicídios entre indígenas, crianças, jovens e mulheres


jogos macabros

 

Em 1º de outubro de 2020, um menino de 11 anos se jogou do 11º andar de sua casa, em Nápoles, na Itália. Sua carta de despedida foi uma mensagem enviada por meio de um aplicativo para seus pais. Dizia não ter mais tempo, seguiria o homem de capuz preto e pedia perdão. O homem de capuz preto ficou conhecido como Jonathan Galindo ou Homem Pateta, que enviava mensagens para crianças pelo Instagram, TikTok, Facebook ou WhatsApp propondo-lhe alguns desafios, e como último estágio o suicídio.


Em 2016, foi lançado o jogo russo Baleia Azul. Sua dinâmica era um desafio de 50 dias que começava com mutilações. Para zerar o game era preciso se suicidar. Centenas de crianças se mataram no Brasil, China, Armênia, Bangladesh, EUA, Índia, Itália, Tunísia, Rússia, Ucrânia, Bielorrússia, Azerbaijão...

No começo do ano de 2017, os suicídios foram praticamente diários nas regiões da Rússia e Ásia Central. Ao todo são 50 tarefas diárias que duram 50 dias. A primeira tarefa começa com riscar no próprio corpo um símbolo e a partir daí são tarefas de automutilação e, caso a criança pense em desistir, recebe as mais diversas ameaças que incluem a exposição de seus segredos e dados armazenados na internet. Zerar o jogo e ser vitorioso é provar que seguiu as 50 tarefas com lealdade e cometer um ato final: o suicídio.

O Desafio Momo, de origem incerta, mas cuja imagem da personagem é japonesa, foi lançado em 2018. Por meio do WhatsApp ou aplicativo de mensagem semelhante, as crianças eram desafiadas e, caso recusassem, além de ameaças, recebiam imagens de automutilação. O fim do desafio também era o suicídio. No Momo, as crianças eram recrutadas por meio de vídeos disponíveis no YouTube da personagem de desenhos infantis Peppa Pig, frequentemente acessados pelos pais em seus iPads e Tablets para as crianças assistirem, ficarem quietas e entretidas com a personagem rosa. Há relatos de desafios realizados em ao menos 31 países.

Em 2018, o TikTok foi baixado 18 milhões de vezes no Brasil. Em fevereiro de 2019, um jovem influencer de Curitiba transmitiu seu suicídio pelo aplicativo desta rede social. Foi seu último vídeo na tentativa de atrair um número maior de seguidores. O escritório do TikTok no Brasil excluiu rapidamente o vídeo para não ter sua imagem vinculada ao suicídio e, 5 horas depois, chamou uma ambulância para socorrer o jovem. Em setembro de 2021, no Paquistão, um jovem ateou fogo no próprio corpo e se matou depois que seu pai o proibiu de usar o TikTok. Em 2022, uma menina de 14 anos se suicidou após ver vídeos de pessoas se mutilando no Instagram e no TikTok.

No início de abril de 2022, Archie Battersbee foi internado no Hospital Real de Londres com danos cerebrais irreversíveis. O garoto de 12 anos passou quatro meses em coma e, após diagnóstico de morte cerebral, foi eutanasiado pelo Estado britânico, depois de idas e vindas de processos empreendidos pela família, contrária à decisão da justiça. O menino participou de um "desafio do blackout": apertou a própria garganta para se autosufocar. Foi encontrado desacordado pelos pais. O "Blackout Challenge" consiste em comprimir o próprio pescoço até ficar inconsciente, aproximando-se do limiar vital, e "voltar vitorioso". Postar a vitória é fundamental para aumentar o próprio score em meio aos variados jogos macabros das redes sociais digitais. Dentre os vídeos que influenciam essa disputa há os que utilizam cintos, cordas, tecidos amarrados ou as próprias mãos para se autoasfixiar. 

 

Em maio de 2022, um novo desafio figurou nas postagens no TikTok: o #LabelloChallenge. Supõe-se que, de início, o desafio é adivinhar o cheiro do protetor labial da outra pessoa da marca Labello. Entretanto, a sua versão mais conhecida é remover o protetor labial com os dentes toda vez que se sentir triste. Quando o protetor labial acabar, se a tristeza ainda permanecer, a única saída para finalizar o desafio é o suicídio.

 

Em 25 de agosto de 2022, em Belo Horizonte, o corpo de um menino de 10 anos foi encontrado por sua mãe, dentro do armário. Ele teve uma parada cardiorrespiratória após inalar o aerossol de um frasco de desodorante. O garoto participava do "desafio do desodorante": competição de quem aguenta inalar a maior quantidade do gás presente na embalagem por um maior período. Para provar que ganhou o game, é preciso filmar-se e postar para os outros competidores. Não foi o primeiro caso. Em fevereiro de 2018, na Grande São Paulo, uma menina de 7 anos foi encontrada morta em situação semelhante.

 


resultados parciais

 


Dados coletados pelo governo japonês em 2021 apresentaram um aumento de 25% de suicídios entre crianças e jovens no país. Não foram contabilizadas as tentativas frustradas. Em 2018, a taxa de suicídio de crianças e jovens atingiu o maio patamar em 3 décadas no país. Entre abril de 2016 e março de 2017, 250 estudantes da escola primária até o Ensino Médio tiraram suas vidas. O maior número registrado desde 1986 - e cinco vezes maior que o registrado um ano antes. Os EUA também declaram crescimento nos índices de suicídio entre jovens: aumento de quase 40% nos últimos 10 anos. Os jovens que mais se matam são moradores do Alaska e descendentes de indígenas. No Brasil, os dados não são sistematizados, entretanto, de acordo com a análise de dados realizada por uma startup de seguros, de 2014 a 2019, os suicídios entre crianças e jovens dobraram no país. Não há compilação desses dados no período da chamada pandemia.

 

Ao menos desde 2016, circulam pelas redes sociais e pelo YouTube vídeos que impelem crianças e jovens à intoxicação. Alguns fazem menção a substâncias catalogadas como "ilícitas", induzindo a inalar "como se fosse lança-perfume".

 

A composição, tanto dos aerossóis de desodorante quanto dos lanças ou lolós, apresenta substâncias químicas como ácido clorídrico, cloreto de etila, clorofórmio, éter, essências perfumadas e, por vezes, fluidos de isqueiro como o B-25 e solventes como thinner. Após inalados, esses gases vão dos pulmões para a corrente sanguínea e podem ocasionar paradas cardíacas e respiratórias, danos cerebrais e asfixia decorrente de reação alérgica a essas substâncias.

 

Algumas crianças, após assistirem aos vídeos que estimulam esse desafio, disparam o spray de desodorante diretamente na boca e/ou no nariz. Há casos de queimadura grave dos que seguem esses influencers que orientam a apertar o aerossol até "sentir a pele gelar".

 

A combinação fatal entre o proibicionismo e os desafios chamou atenção nos EUA, em plena disseminação da Covid-19. Neste momento, no decorrer do ano de 2020, o "Benadryl Challenge" foi compartilhado no TikTok. Impele crianças e jovens a tomarem altas doses de anti-histamínicos/ antialérgicos – em torno de 10 ou 14 comprimidos – e se filmarem sob os efeitos da droga farmacêutica que, nessas quantidades, pode produzir alucinação. Em setembro de 2020, uma garota estadunidense de 15 anos morreu em decorrência da overdose de remédios durante o desafio.

 


processos, legalidades e a inteligência artificial da censura



Nos EUA, desde o início de 2022, há processos contra a empresa dona da plataforma TikTok, a chinesa ByteDance. Os primeiros foram abertos após três meninas, de 7, 8 e 10 anos de idade, morrerem durante o "desafio do apagão". Os pais alegam que a empresa não atua para controlar a divulgação desses desafios. Além de não censurar tais conteúdos, de acordo com esses pais de filhos que foram induzidos ao suicídio, o algoritmo do TikTok funciona com a tag #desafio e não filtra sua aparição em perfis de menores de 18 anos. Procuram um culpado pela morte prematura de seus filhos. Procuram punir e condenar a internet, sites e redes sociais digitais que tanto usaram para entreter seus filhos enquanto estavam ocupados.

 

A empresa chinesa, por sua vez, defende-se citando os dados do Centers for Disease Control and Prevention (Centro de Prevenção e Controle de Doenças) dos Estados Unidos da América que em 2008 estimou haver, entre 1995 e 2007, muito antes do lançamento da rede social digital, ao menos 82 crianças mortas em decorrência do "Blackout Challenge", também conhecido como "Choking Game" (jogo de sufocar) e "Passout Challenge" (desafio do desmaio). As crianças e jovens mortos neste período tinham entre 6 e 19 anos.

 

A ByteDance alega ainda deixar evidente nas Diretrizes da Comunidade TikTok que "conteúdos dessa natureza são estritamente proibidos e proativamente removidos, assim como são bloqueados quaisquer conteúdos ou hashtags que promovam desafios perigosos, por meio de uma combinação de moderações tecnológicas e humanas". Ou seja, censura com inteligência artificial programada por seres humanos. Entretanto, a internet não é estática. Em seu constante movimento tags são produzidas para os mais diversos assuntos. Com a proibição da tag suicídios, os desafios passaram a ser divulgados de outras formas, com:  #inalive (não vivo). E, em alemão, é possível encontrar "Freitod" (morte livre) e "Selbstmord" (auto-assassinato). Novas tags aparecerão até serem censuradas e outros termos passarão a ser usados. Eis a inteligência artificial das redes sociais digitais.

 

Em outubro de 2021, o processo contra o Facebook ganhou repercussão midiática internacional o processo contra o Facebook devido aos impactos da rede homônima e do Instagram, pertencente à empresa Meta, na "saúde mental" de crianças e jovens. A audiência com uma ex-gerente de produtos do Facebook, no Senado estadunidense, repercutiu alardeando os efeitos óbvios das redes sociais digitais nas relações e na vida de crianças e jovens. Estes efeitos da comunicação instantânea, da superexposição de imagens, da produção de conteúdos e perfis do que cada usuário "é", ou anuncia "ser", foram classificados pelas autoridades estadunidenses como "tóxicos". O mesmo termo é contemporaneamente utilizado para relações amorosas/afetivas/sexuais atravessadas por violências, tanto as físicas quanto os acossamentos.

 

A ex-gerente, Frances Haugen, depôs: "acredito que os produtos do Facebook prejudicam as crianças, alimentam a divisão social e enfraquecem nossa democracia". Haugen, além de comparecer ao tribunal, entregou uma prova: documentos internos da empresa vazados para um jornal e que apresentam os resultados de pesquisas internas que confirmam, segundo a acusação, que a administração do Facebook é ciente dos "efeitos negativos" na "saúde mental, especialmente de menores de idade".

 

À "negligência" da empresa com crianças e jovens, acrescentou-se a disseminação de "fake news" e conteúdos classificados, de acordo com as diretrizes da própria plataforma, como violentos. O discurso de Haugen, como de senadores democratas, defende uma rede social "mais segura e que respeite a liberdade de expressão", ou seja, um espelho nas telas do que se reivindica socialmente. Ou vice-versa. Provam que já não há mais distinção entre on-line e offline e as reivindicações por direitos e punições cabem às duas esferas.

 

Segundo a ex-funcionária, a prioridade da empresa são as viralizações, o que era "perigoso para a segurança nacional". E em segurança nacional compreende-se também outros conteúdos que precisam ser sumariamente banidos e censurados. Um dos exemplos recentes foi o imediato bloqueio de postagens, no Facebook e Instagram, contendo as palavras janes revenge, após a revogação da política nacional do direito ao aborto nos Estados Unidos. Rapidamente, a inteligência artificial foi orientada a vetar qualquer termo que tivesse relação com essas tags.

 

 

o que a inteligência artificial lucrativa permite é determinado pelo humano.

 

 

Não se permite a propagação das ações diretas incógnitas sob o nome janes revenge nas plataformas da empresa. Como também não se permitiu que a origem do mundo de Gustave Courbet fosse reproduzida nas redes sociais. Pouco importa o número de compartilhamentos, curtidas, comentários ou uma possível viralização. Há a seletividade do que se pode postar, compartilhar e curtir. Postar "morte ao Islã" é permitido pela inteligência artificial. Vale lembrar que toda inteligência artificial é programada por um ser humano e extremismo é considerado ameaça à segurança nacional, à democracia e à propriedade.

 

No ano de 1985, durante a chamada abertura da ditadura civil-militar no Brasil, estreou o filme Brazil, de Terry Gilliam. Em um futuro tétrico mergulhado em burocracia, pessoas orientadas pelas suas imagens realizam cirurgias plásticas, consomem serviços e produtos, preenchem formulários sobre suas rotinas e são vigiadas incessantemente pelo Serviços Centrais, uma empresa vinculada ao governo cujo objetivo é controlar como, o que, onde cada um consome, deseja e faz.

 

O despotismo da papelada não foi o futuro alcançado. E nem mesmo há os terroristas do filme para destruírem as centrais de vigilância no presente. Entretanto, o filme anunciava que o monitoramento é para todos, e que seu processamento é seletivo. Em nome da segurança, há os alvos preferenciais, como em Brazil, quando os dados de um jovem apolítico cruzam com os de uma moça identificada como terrorista. Até então, pouco importava sua rotina e questionamentos; ele se tornou perigoso e alvo da inteligência somente quando seu perfil se cruzou com outro.
Algoritmos e a Inteligência artificial orientam e orientarão cada vez mais o acesso à internet e cada vez mais o que deve ser processado em meio a tantos monitoramentos.

 

Crianças e jovens se mutilando, atingidos pela produção infinda da chamada classificação de transtornos mentais, se matando ― intencionalmente ou não ― pouco importa a essas empresas. Não interferem na ordem, não ameaçam essa sociedade, não atingem os lucros, não produzem contestações radicais. Fazem parte da produção das subjetividades contemporâneas, dos divíduos da sociedade de controle, de efeitos na nova forma de educar crianças e jovens.

 

As viralizações, ou o número elevado de visualizações, provocadas pelos desafios são lucrativos às empresas que administram as plataformas de redes sociais digitais. Eles são mais um atrativo para se manter a conexão, seja para entrar no desafio ou para ver depois o que aconteceu com alguém que se desafiou.

 

Em 2014, figurou nas timelines do Facebook e do Instagram o "desafio do balde de gelo" ou "Ice Bucket Challenge", que consistia em, de forma literal, virar um balde com cubos de gelo sobre a própria cabeça, filmando-se. Diferente dos desafios que induzem crianças e jovens a se matarem, este foi um desafio "do bem" que procurou, além de gerar milhões de visualizações, convocar à doação de dinheiro.

 

A campanha teve como beneficiários entidades de pacientes com esclerose lateral amiotrófica, conhecida pela sigla ELA, e pesquisadores voltados ao estudo desta doença. O físico Stephen Hawking era portador dessa esclerose. Também em 2014 estreou o filme A teoria de tudo, que narra sua biografia. Em um mês e meio foram mobilizados: 115 milhões de dólares nos EUA, 7 milhões de libras no Reino Unido, 296 mil reais no Brasil...

 

Quem inovou com esse desafio "do bem" foi o estadunidense Anthony Senerchia, também diagnosticado com ELA. Hoje, no Museu da História Americana, é possível contemplar o primeiro balde usado no primeiro vídeo do "Desafio do Balde de Gelo". Celebridades e milionários de todo o planeta, incluindo Mark Zuckerberg e Bill Gates, aderiram ao desafio e compartilharam seus vídeos derrubando em si mesmos – apenas literalmente – um balde de gelo.

 

No mesmo mês de outubro de 2021, quando ocorria o mencionado processo contra o Facebook, houve um "bug geral" no acesso ao Facebook, Instagram e WhatsApp, todos esses produtos pertencentes à empresa do estadunidense Mark Zuckerberg. No decorrer de um dia, mas sem atingir 24 horas fora do ar, os milhões de usuários dessas plataformas em todo o planeta ficaram sem acessá-las. Houve impacto direto e imediato no mercado de ações. Funcionários em cargos de chefia na empresa e em cada um de seus produtos, desculparam-se via Twitter. O que ocasionou a "falha" não foi publicamente revelado, alegou-se ser "desconhecida"... há quem diga que o blackout das três redes foi uma prova de sua utilidade veloz no funcionamento do tecnomundo ― que não se aparta do que ocorre, circula, se produz e consome fora das telas e dessas plataformas.

 

Ainda em outubro de 2021, o bilionário Zuckerberg anunciou a mudança de nome da sua empresa de Facebook para Meta, "uma empresa de tecnologia social". Além dos já mencionados Facebook, Instagram e WhatsApp, pertence à Meta o Oculus Quest, um dispositivo headset voltado para a "realidade virtual", em outras palavras, óculos de realidade virtual. O próprio nome, Meta, faz referência ao que nomeiam de metaverso, "realidade virtual" tida como o futuro em que será possível fazer quase tudo em um ambiente virtual onde cada um terá o seu avatar. Para além da internet e das redes sociais como a conhecemos agora, o metaverso pretende ser a transposição do mundo para o virtual. Grandes empresas já estão montando suas lojas no metaverso e na área da educação já promovem encontros e debates de como transpor a escola, faculdade e pesquisas acadêmicas para lá.

 

Agora sob nova alcunha, em junho de 2022 a Meta acumulava oito processos em tribunais estadunidenses. Todos relacionados aos efeitos do Instagram e do Facebook na "saúde mental", especificamente em casos de suicídios, tentativas suicidas, distúrbios alimentares e outros transtornos mentais. Há quem processe a Meta por ser "consciente" das "características viciantes" de seus produtos. De novo, há depoimentos e provas fornecidos por ex-funcionários da empresa. A empresa declara "estar melhorando as ferramentas" para que os pais ou responsáveis possam monitorar os usos que seus filhos fazem nas plataformas.

 

 

monitoramentos por mediadores e moderadores de conteúdos

 

 

Como mais uma medida de segurança, Facebook, Instagram e TikTok ― Meta e ByteDance ― contratam empresas terceirizadas para monitorar e avaliar os conteúdos denunciados por usuários das plataformas ou rastreados por inteligência artificial. Em geral, as denúncias reportam postagens classificadas como: automutilação, exploração infantil, suicídio, "extremismo", nudez.

 

Pessoas que trabalharam como moderadoras de conteúdo relatam que muitos posts e lives exibem pessoas – em sua maioria crianças – e animais sendo violentados, torturas, mutilações, decapitações, execuções brutais. Uma das cláusulas do contrato dos moderadores é que não podem comentar o que veem nos milhares de vídeos que assistem semanalmente. Nas empresas, não podem trabalhar portando seus smartphones. Alega-se que divulgar os conteúdos e diretrizes internas de segurança pode "incentivar" os usuários, em vez de conter a produção de tais postagens.

 

Empresas como a Majorel (antiga Arvato), localizada em Berlim, recrutam jovens imigrantes para prestar serviços de "moderação de conteúdo". Há outras empresas sediadas também em cidades cosmopolitas como Barcelona, Lisboa, Nova York. Os contratados para esses cargos devem ter um conhecimento mínimo de inglês (em geral monitoram conteúdos em suas línguas natais e dentro dessas empresas, cada língua é considerada um mercado), adorar redes sociais e assistir vídeos; além de acreditar terem dado certo por servirem à segurança de grandes empresas de tecnologia e seus usuários...

 

O emprego de moderador de conteúdo nas redes sociais é fonte de processos contra a Meta que, em 2020, fechou um acordo para indenizar prestadores de serviço estadunidense que foram diagnosticados com transtornos mentais em decorrência do emprego com atuação de "monitor humano" a assegurar as políticas e diretrizes de segurança das plataformas da empresa. Foram 52 milhões de dólares em indenização.

 

No caso da alemã Majorel, um dos benefícios ofertados pela empresa é o atendimento psicológico no próprio local de trabalho, disponível 24 horas por dia. O serviço de moderação de conteúdo é realizado em tempo integral, todos os dias da semana. Também oferecem "pausas e cursos de bem-estar" e investem em "várias formas de treinamento de resiliência" para que seus funcionários suportem assistir a incontáveis vídeos, postados de IPs em diversos lugares do planeta, que exibem pessoas sendo violentadas, torturadas, espancadas, mutiladas, decapitadas, baleadas... Uma ex-funcionária descreve um dos vídeos que mais a impressionou: um adulto arremessava um bebê seguidas vezes contra as paredes do imóvel onde estava.

 

Dentre os conteúdos produzidos no Brasil, há nichos específicos de polícias, milícias e facções que publicam os exemplos dos castigos aplicados contra quem os desobedece, desrespeita, trai, atrapalha seus serviços ou, simplesmente, foi escolhido para ser executado, torturado, violentado.

 

Em âmbito internacional, há o nicho das cenas de "atentados terroristas" e guerras, conteúdos mais frequentemente postados de IPs localizados na África, na Ásia, no Leste Europeu e no Oriente Médio. Colômbia e Venezuela também figuram nestes nichos de mercado.

 

Muitos dentre os que foram contratados como moderadores de conteúdo acabam diagnosticados com transtornos mentais, medicalizados, acometidos por surtos durante o expediente. Não são poucos os que se suicidam. Pessoas que foram contratadas para, entre outras coisas, "evitar suicídios"... Ou melhor, evitar que sejam transmitidos ao vivo em lives; censurar o que não deve ser visualizado, não nessas plataformas da surface web. Lembrando que na chamada deep web esses conteúdos, assim como os variados nichos de tráfico, são a força motriz entre os usuários, consumidores, comerciantes...

 

 

crianças e jovens em busca de cares

 

 

Em agosto de 2022, foi divulgada uma pesquisa da TIC Kids Online Brasil que estima haver um terço das crianças e jovens ― de 11 a 17 anos ― e com acesso regular à internet no país que já buscaram "apoio emocional" por este meio. São meninas, em sua maioria, entre 15 e 17 anos. Esta foi a primeira vez que a pesquisa, voltada aos usos que pessoas nessa faixa etária fazem da internet, incluiu questões de "saúde mental". Um efeito do isolamento social decorrente da disseminação da Covid-19.

 

Hoje, 7% das crianças e jovens entre 9 e 17 anos que vivem no Brasil não possuem acesso à internet; destes, 87% vivem no Norte do país. Dentre os mais pobres, o dispositivo mais usado para utilizar a internet é o smartphone. Entre os que já usavam a internet cotidianamente, o acesso às redes sociais aumentou 10% após a chamada pandemia. Calcula-se que, do total de crianças e jovens na faixa dos 09 aos 17 anos, 88% tenham perfis em redes sociais ― WhatsApp, Instagram e TikTok são as mais usadas. Cresceu também a busca por jogos online e as compras efetuadas por pessoas com menos de 18 anos. A maioria dos entrevistados consome internet para assistir vídeos, séries ou filmes online (84%), seguida dos que utilizam aplicativos de mensagens instantâneas (79%), notadamente o WhatsApp.

 

 

outros efeitos

 

 

Os efeitos da chamada pandemia de Covid-19 ampliaram não somente os mercados virtuais e as transações econômicas digitais. Tampouco levaram somente ao crescimento no número de diagnósticos dos chamados transtornos mentais.

 

Houve aumento considerável nas taxas de suicídio, notadamente em segmentos da população classificados como "mais vulneráveis": crianças e jovens, idosos, mulheres, pessoas LGBTQIA+, indígenas.

 

Enquanto nos EUA os jovens que mais se matam são moradores do Alaska e descendentes de indígenas, no Brasil, quem mais dá fim à própria existência são os indígenas. Estima-se que, proporcionalmente, os indígenas se matam três vezes mais do que o restante da população (pretos, quase pretos, amarelos e brancos). Explicita-se mais um dos efeitos devastadores do contato com o homem branco e sua sociedade, seu modo de vida, suas doenças e suas drogas ― legais e ilegais ―, o capitalismo e o Estado criados por ele.

 

Uma pesquisa recente realizada pela UFRGS a partir do banco de dados DataSUS mostra que, somente em 2020, contabilizou-se oficialmente 11.334 suicídios. A região Norte registrou o maior índice de mulheres e pessoas com mais de 60 anos que se mataram. Em relação aos menores de 19 anos, ficou atrás apenas do Centro-Oeste.

 

A pesquisa cruza os dados de suicídios de mulheres com as estimativas do que classificam como "violência doméstica": 1 a cada 4 mulheres no decorrer do primeiro ano de "pandemia". Já em relação aos velhos, o isolamento social mais restrito e os altos números de óbitos são as hipóteses levantadas pelos pesquisadores.

 

O Sul do país é onde pessoas não-brancas mais acabam com a própria vida. É nesta região onde os índices totais de suicídio ― considerando a população em geral e não grupos sociais ou minoritários específicos ― são mais elevados. Especialmente nas áreas rurais, encontrando possíveis conexões com as mudanças climáticas e seus efeitos no ciclo das plantações e da vida no campo, por vezes devastadores; com o uso de agrotóxicos em larga escala, incluindo despejo do alto de aviões e helicópteros do agronegócio; com as demais violências crescentes nessas regiões e vinculadas aos proprietários, latifundiários, empresários e seus sicários, às milícias, ao tráfico, às polícias e demais forças de segurança nacional. A alta frequência de diagnósticos de transtornos mentais e a farta distribuição de barbitúricos entre as populações rurais também estabelece uma conexão possível com os altos índices de suicídio.

 

Entre os indígenas, de acordo com profissionais da saúde, os suicídios estão relacionados à entrada nas aldeias do álcool e de outras substâncias catalogadas como drogas, com destaque para o crack. Entre eles, são os jovens os que mais findam a própria existência.

 

No Brasil, os dados sobre suicídios não são sistematizados. Segundo a análise de dados realizada por uma startup de seguros, de 2014 a 2019, o índice de crianças e jovens que se mataram no país dobrou. Em sua esmagadora maioria, são diagnosticados com os chamados transtornos mentais e, em grande parte, identificados como pessoas LGBTQIA+.

 

Não há compilação desses dados no período da chamada pandemia. Apenas análises como essas mencionadas que utilizam recortes de bancos de dados de óbitos e outras estatísticas.

 

O suicídio continua um tabu e há um silêncio sobre esta questão.

 

Deve-se acionar o CVV (Centro de Valorização da Vida) ou compartilhar campanhas como do "setembro amarelo: mês de prevenção ao suicídio", cujo slogan é: "a vida é a melhor escolha". Situar essa questão como uma escolha entre isso ou aquilo é tentar tratá-la como algo disposto nas prateleiras neoliberais. A campanha preventiva ocorre desde 2014 por meio de uma parceria entre a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM). Parte-se do pressuposto que "o suicídio é uma triste realidade que atinge o mundo todo e gera grandes prejuízos à sociedade".

 

Inverte-se a questão, não é um modo de vida e a sociedade que levam uma pessoa a decidir acabar com essa vida que não lhe faz sentido. Mas é a escolha dessas pessoas que pode prejudicar a coesão social... E repetem-se velhas teses sociológicas.

 

A estimativa mais recente da OMS (Organização Mundial da Saúde), de antes da "pandemia", indicou 700 mil suicídios no decorrer do ano de 2019. A entidade calcula que, para além destes números oficiais planetários, o total de pessoas que tiraram suas próprias vidas tenha sido em torno de 1 milhão.

 

No Brasil, onde não há atenção pontual e específica a estes casos, estima-se 14 mil ao ano; uma média de 38 suicídios por dia. No país, como nos EUA, a incidência de suicídios apresenta uma crescente, na contramão dos percentuais dos demais continentes nos quais o suicídio diminui, segundo a OMS. Na América Latina, Brasil, México e Colômbia são os países onde  as pessoas mais se suicidam.

 

Essa mesma organização é taxativa ao determinar: 100% de todos os casos de suicídio decorrem de problemas, transtornos ou doenças mentais não diagnosticadas, não tratadas ou tratadas inadequadamente. A estratégia preventiva é falar sobre o assunto, retirando-o do lugar de tabu (ao menos no que se refere ao silêncio tácito) e de estigma para divulgar informações sobre como identificar um potencial suicida e como tratar essa pessoa. Um exemplo desse modo de tratar a questão no intuito de prevenir o suicídio são as Diretrizes para Participação do Setembro Amarelo que vigoram desde 2017, no Brasil, e foram elaboradas pela ABP e CFM, seguindo os protocolos da OMS.

 

A vida estúpida que se coloca ao lado de tantos horrores, violências, produz sentimentos e incômodos que podem ser insuportáveis. Uma das formas que esse insuportável toma para algumas pessoas é o ato final: pôr fim à própria existência. Essa sociedade mata, suicida e adoece de inúmeras formas.

 

Essa vida estúpida leva a mortes macabras como crianças e jovens que seguem influencers nas redes sociais, como em uma brincadeira ou jogo, e acabam perdendo suas vidas. Assim como tantas sobrevivem em meio à educação para obediência, consumo, competições em desafios ou somente para se provar melhor do que os outros amigos de redes sociais digitais, castigos e violências que recebem e que reproduzirão em um futuro próximo... e continuarão a entreterem-se nas diversas interfaces do dia a dia até o momento que a vida digital se tornará penosa demais.

 

 

jogos macabros e a atualização do perdedor radical

 

 

A virada do milênio foi marcada pelo chamado efeito Columbine: ataques em escolas e universidades perpetrados pelos perdedores radicais que fuzilam seus colegas e depois se matam. Eles estariam em oposição àquilo que sempre sonharam: querer ser ganhadores radicais, cuja imagem seriam as pessoas bem-sucedidas e populares que estão ao seu redor. Sem conseguir alcançar o ponto mais alto do pódio social, só lhe resta identificar o culpado: um grupo social que não o respeita é o responsável pelo seu fracasso. Só resta cumprir sua sede de punição executando-os e a seguir tirar a própria vida.

 

Esses covardes perdedores radicais, suas vontades de extermínio e seu reconhecimento sacramentado em sangue continuarão a matar e a se matar. E outros efeitos banhados de sangue emergem em meio ao sacrifício de crianças e jovens.

 

No Brasil, recentemente, em escolas particulares pululam ameaças de massacres por parte de estudantes. Viralizam entre as crianças e jovens pelas redes sociais, ou em aplicativos de mensagens instantâneas usados pelos pais, ou ainda são marcados a tinta nas paredes dos colégios. Disseminam medo, mais medidas de segurança, mais polícias e punições. Até agora, nenhum desses massacres agendados e comunicados online se concretizou.

 

Ao mesmo tempo, hikikomoris ― crianças, jovens e adultos reclusos em quartos para ficar jogando videogame incansavelmente e navegando na internet ― também continuarão a existir.

 

Enquanto isso, como medida educativa, na China, jovens hikikomoris são levados a campos militares para se livrarem do "vício" em internet e estarem aptos para servirem com sua força de trabalho ao Partido Comunista.

 

E, nas redes sociais digitais, crianças e jovens pelo planeta continuarão com seus desafios tanto para conseguir mais seguidores, como também para se provarem. Eles continuarão a se matar.

 

Há ainda aqueles tantos que se matarão pela vergonha em não serem como o influencer e/ou por não serem bem-sucedidos. Com a internet e para os amantes da exposição da vida, não há como se esconder dentro de casa e guardar suas vergonhas. Estar vivo é postar. Sem postagens de sucesso, não há motivo para seguir. E a ameaça da exposição de seus segredos, respaldada pela moral em que são educados, também abastece o consumo macabro destas vidas. Suas mortes alimentam e alimentarão diversos índices.  Além da vergonha e medo de certos jovens e adolescentes de verem descobertos em seus "segredos" na internet.

 

E outras tantas crianças e jovens se suicidarão por não aguentarem o chamado cyberbullying.

 

No Japão, os índices de suicídios entre crianças e jovens crescem exponencialmente. E o dia preferível para se matar é 1º de setembro, quando acabam as férias de verão, e é preciso voltar para escola, ou seja, quando o cyberbullying é complementado pelas constantes violências físicas. 

 

Cabe aos especialistas de plantão fazerem suas leituras, clamarem pela "responsabilidade das plataformas" e exigirem maior controle dos pais e políticas de governo. Tags como Momo Game, Baleia Azul e Jonathan Galindo, por exemplo, já são proibidas em muitas plataformas. Outras vêm e virão.

 

Os monitoramentos se ampliarão e as vidas de crianças e jovens permanecerão governadas por tudo quanto é saber que dirá como devem ser para alcançarem a verdadeira vida empreendedora de sucesso. Esta sociedade continuará criando seres dispostos a servir educados para o medo e para uma vida covarde.

 

Os suicídios, desafios e execuções continuarão a existir furando os controles e escancarando os jogos macabros do capitalismo. Enquanto isso, permanece a questão: ao que estamos sendo levados a servir?

 

 

R A D. A. R

 

The 'blackout challenge' explained - why is it so dangerous?

 

Facebook é acusado de prejudicar crianças e enfraquecer a democracia

 

Lembra do desafio do balde de gelo? Saiba o que aconteceu depois

 

Beira do colapso

 

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Setembro Amarelo

 


 

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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