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observatório ecopolítica

Ano V, n. 119, outubro de 2022.

 

 

revolta no irã


Há mais de um mês, exasperados(as) tomam as ruas do Irã e instabilizam os rígidos costumes religiosos impostos pelo regime teocrático da República Islâmica.


As primeiras contestações de rua ocorreram em Saqez, no território do Curdistão, cidade onde nasceu a jovem Mahsa Amini, que em 13 de setembro de 2022, uma terça-feira, foi presa na capital Teerã. Soldados da polícia da moral detiveram-na sob a acusação de não usar adequadamente o hijab, conhecido no chamado Ocidente como "o véu islâmico". A jovem de 22 anos foi espancada e torturada pelos policiais.

Junto a outras mulheres, enfiadas em uma viatura, Amini questionou a detenção e enfrentou os agentes. Segundo relatos de algumas dessas mulheres, foi neste momento que um soldado com tamanha covardia acertou Amini socando sua cabeça contra a viatura, ferindo-a e levando-a, imediatamente, a passar mal. Estas mulheres dizem que Amini chegou ao posto da Segurança da Moral ainda consciente, mas visivelmente mal. As mulheres protestaram para que a socorressem e a levassem ao hospital. Foram acossadas e espancadas pelos policiais. Assim como Mahsa Amini que, novamente, foi surrada pelos agentes da ordem e caiu inconsciente. Somente neste momento, os policiais esboçaram algum socorro com massagens cardíacas e bombeamento de ar. Ela não voltou a si. Os soldados tornaram a desferir golpes contra as demais detidas e aproveitaram para roubar os smartphones de todas.

Seu irmão, Kiarash Amini, que havia tentado impedir a detenção e foi espancado pelos policiais, esperava por ela na delegacia. Passou duas horas tentando soltar sua irmã, enquanto ouvia os urros emanados do interior desse lugar destinado à tortura. Horas depois, Mahsa Amini foi internada no hospital Kasra, em coma.

Na sexta-feira, 16 de setembro, foi declarado seu óbito. A jovem Mahsa Amini foi executada pela polícia. A versão oficial, utilizando-se do domínio quase total dos meios de comunicação locais, forjou "provas" de que ela teria sofrido uma "parada cardíaca".

 

 

notícias anarquistas iranianas

 

 

A Federação da Era do Anarquismo, composta por libertárixs que vivem no Afeganistão e no Irã, divulga o que ocorre na região antes de Amini ser detida e hospitalizada. Antes mesmo de uma foto dela internada, em coma, vazar pelas redes sociais.

A despeito da causa de óbito e da versão oficial, há relatos de que exames foram divulgados após o ataque hacker, indicando que ela sofreu fraturas ósseas, acidente vascular e hemorragia cerebrais decorrentes dos espancamentos perpetrados pelos policiais.

Dizem que funcionários do hospital chegaram a postar nas redes sociais que a jovem dera entrada já com morte cerebral. Médicos, enfermeiros e funcionários do hospital foram ameaçados pelas autoridades, intimados a apagar quaisquer mensagens, postagens e fotos compartilhadas que contrariam a versão oficial da morte de Mahsa Amini.
O pai da jovem foi proibido de acessar o laudo de autópsia da filha. O médico que a atendeu e o fotojornalista que divulgou a imagem da jovem em coma estão desaparecidos.

No dia 17 de setembro, em Saqez, na ocasião do enterro de Mahsa Amini, muitas pessoas tomaram as ruas em revolta e enfrentaram a repressão desencadeada pela mesma instituição que torturou e executou a jovem. Por diversas vozes, ouviam-se afirmações e questionamentos como: "mulher, vida, liberdade", "resistência é vida", "os Mulá (lideranças islâmicas) são agentes do patriarcado e do capital", "você já se perguntou, por que o cabelo de uma mulher é tão perigoso?".

Mahsa Amini era chamada pelxs amigxs e parentes de Zhina, que na língua curda significa vida.

Irromperam manifestações furiosas.

Protestos eclodiram em Sanandaj, cidade curda que foi alvo de imediata e grande repressão pelas forças de segurança. Depois, espalharam-se por Teerã, Tabriz, Isfahan, Ahvaz, Rasht, Mahabad, Karaj, Divandarreh... No final de semana as manifestações não cessaram, mesmo com a usual e terrível violência do Estado, dos polícias, das forças armadas e das milícias paramilitares. Houve bloqueio dos sinais de internet e telefonia móvel em todo o território.
Xs insurgentes prosseguiram contra as polícias, fazendo-as recuar e evacuar em muitas cidades.

Em Teerã, na noite de 20 de setembro, uma garota sem véu, com os cabelos tingidos de verde, enfrentou uma tropa da Guarda Revolucionária Islâmica. Berrou sem hesitar: "não encostem em mim!".

Muitas mulheres e garotas pelas ruas soltaram seus cabelos ao vento e expuseram seus rostos livremente. Hijabs e alcorões serviram como alimento para barricadas em chamas. Soltaram seus corpos em danças livres ao redor do fogo.

Xs libertárixs da Federação da Era do Anarquismo contam que desde os primeiros protestos de rua, viaturas e outras propriedades da polícia arderam em chamas. "É tempo de guerra e não de luto!", afirmaram, "milhões de mulheres foram torturadas, violadas e mortas sob a tirania religiosa e seu patriarcado. (...) É hora de ficar com raiva e rugir, não de ficar sentadx e caladx! É hora de agir e não mais reagir. (...) Nós, anarquistas, apoiamos a continuidade dos protestos e manifestações, e queremos sua expansão em ações revolucionárias e antirregime que ganhem maior amplitude e profundidade, para que este regime miserável seja, finalmente, derrubado".

 

 

a federação da era do anarquismo

 

 

Em 2020, estxs anarquistas anunciaram a Federação da Era do Anarquismo, resultado de uma composição com a União Anarquista do Afeganistão e do Irã, formada em 2018. Propõem uma federação internacionalista, para além desses territórios, pela difusão da Era do Anarquismo. Incitam, especialmente, axs migrantes e exiladxs que agitem e propaguem ações diretas. Convidam libertárixs que vivem em outros cantos do planeta e que falam outras línguas a traduzirem seus textos e comunicados, ampliando as trocas para além da difusão majoritária em inglês. Em suas redes, a Era divulga textos em árabe, curdo, inglês e nas línguas originais em que foram escritos. As recentes notas de apoio, convocações e relatos de protestos em outros territórios — notadamente na Europa — são sempre replicadas na língua original e na língua falada pelxs integrantes da Era.

No escrito em que anunciaram a composição da Federação, explicitaram: "lutaremos contra os perpetradores de qualquer violência contra as mulheres e as pessoas LGBTQ e não suplicaremos por liberdade. Por esta razão, nesta luta formaremos uma forte solidariedade e cooperação com anarcoqueers e anarcofeministas. (...) A Federação da Era do Anarquismo não consiste em uma só tendência anarquista, pelo contrário, abarca todas as tendências anarquistas. Os que quiserem vincular o nacionalismo, o pacifismo, a religião e o capitalismo com o anarquismo não terão nenhum lugar na federação".

Há mais de um mês, todos os dias, reverbera-se pelos ares das 31 províncias e das centenas de cidades iranianas o berro: "Jin, Jiyan, Azadi" ("Mulher, Vida, Liberdade").

Berro que ecoa desde Rojava, região autônoma onde a afirmação dxs combatentes curdxs, especialmente das mulheres, ganhou força em 2016, em Kobane, norte da Síria, no enfrentamento ao Estado Islâmico.

Xs anarquistas sublinham a influência de Rojava e a força feminista das manifestações, que remetem a agitações recentes de grupos que vêm boicotando lugares e pessoas que impõem o uso estrito do hijab. Segundo elxs, já acontecia uma articulação descentralizada e sem lideranças de mulheres feministas e pessoas LGBTQIA+ para comporem espaços liberados da repressão machista. Propriedades e símbolos do culto à República Islâmica do Irã são implacavelmente atacados. Estátuas, monumentos, gigantescas imagens dos líderes são derrubados, quebrados, rasgados, picados, incinerados. Muitos gritam pela morte dos ditadores e opressores, "seja o Xá ou o Líder", em referência ao Reza Pahlavi, filho do ex-xá do Irã, e ao aiatolá Ali Khamenei.

A polícia segue como o alvo certeiro e preciso dxs insurgentes. As propriedades estatais, assim como viaturas e delegacias, foram e são queimadas e destruídas. A insuportável sobrevivência dos soldados que servem à ordem, perseguem, prendem, torturam e executam em nome do Estado e de Alá tampouco foi e é poupada. Anarquistas da Era marcam a diferença em relação aos outros protestos recentes no país, como as sublevações de novembro de 2019: "em todas as revoltas anteriores, a polícia não foi diretamente o alvo da raiva popular. Mas dessa vez, isso mudou".

 

 

outras histórias

 

 

Outras histórias que explicitam o terror do Estado e suas forças de segurança, somaram-se à execução de Zhina. Uma das existências lembradas e saudadas com fúria nas ruas, desde a irrupção dos levantes, foi a de Amir Hossein Khademi, jovem de 16 anos que foi violentado por seu patrão e dois machos comparsas. A mãe do garoto recorreu à polícia. Amir foi sequestrado pelos policiais. Eles o mataram e largaram seu cadáver no deserto.

Em Kish, no dia 22 de setembro, as ruas foram liberadas da insuportável presença das forças de segurança. Assim como em Bukan. No dia 24 de setembro, onze dias após a execução de Zhina, a cidade de Oshnavieh foi tomada pelxs revoltosxs. Uma das táticas utilizadas por algunxs manifestantes é derramar óleo queimado na pista por onde se dirigem os policiais montados em motos. Eles caem e se derrubam entre si.

Cidades como Kish, Qom e Mashhad, também consideradas fortes bases de apoio ao governo, foram tomadas pela revolta. Em mais de 150 cidades, a luta continuou avançando pelos meses de setembro e outubro.

Em Bukan, no dia 19 de setembro, uma garota de 10 anos foi alvejada por balas de chumbo disparadas por carabinas de pressão — armamento dito não-letal utilizado pela polícia iraniana. No dia 20 de setembro, o jovem de 16 anos, Zakaria Soleimani, foi morto pela polícia enquanto se sublevava nas ruas de Piranshahr. As crianças e jovens são o alvo principal do Estado.

Em algumas localidades, a República Islâmica do Irã armou meninos com escudos, capacetes, fardas e cassetetes para defenderem nas ruas o regime e sua moral.

No dia 21 de setembro, xs revoltosxs tomaram uma delegacia de Ahmadabad em Mashhad e incendiaram outra em Tabriz. Em Amol, Mazandaran, fizeram a polícia recuar e dar marcha ré em seus tanques. Em Quchan, incineraram uma guarita policial e, em Pakdasht, viaturas. No dia seguinte, em Nayshabur, carros da polícia foram virados e depredados.

Entre os dias 20 e 23 de setembro, libertárixs que integram a Federação da Era do Anarquismo conversaram com integrantes da internacionalista Federación Anarquista Rosa Negra/Black Rose Anarchist Federation. Xs anarquistas no Irã e Afeganistão enfatizam o posicionamento antirreligião, situando-se na "guerra contra as autoridades religiosas que nos roubam a liberdade e a autonomia, definindo o que é sagrado ou tabu, e se impõem por meio da coerção e da violência". Elxs ressaltam que o fato de Zhina ser uma mulher curda foi determinante para sua detenção e para o tratamento ainda mais violento por parte da polícia. Contudo, sublinham que todas as mulheres, curdas ou não, são cotidianamente alvos da polícia moral por supostamente fazerem uso "impróprio" do hijab. Diariamente, vídeos que registram mulheres sendo torturadas — espancadas ou arremessadas de viaturas em movimento, por exemplo — são compartilhados entre iranianos contrários ao governo. A existência da polícia — qualquer que seja e em qualquer lugar do planeta – com seu intrínseco machismo é insuportável para anarquistas e sua luta antirreligiosa.


Neste momento, logo após a irrupção dos levantes, a polícia já havia matado insurgentes e ferido dezenas. A repressão em Saqez e Sanandaj foram – e continuaram — as mais violentas, com tanques de guerra e veículos militares marchando pelas vias, e disparos de armas de fogo contra manifestantes. As duas cidades foram tomadas pela revolta.

No dia 25 de setembro, em Ghazvin, mais viaturas arderam em fogo. Mesmo sob severa repressão, em Sanandaj, as pessoas permaneciam nas ruas e berravam "Jin, Jiyan, Azadi" (mulher, vida e liberdade).

O fogo alastrou-se para outros territórios. No final de setembro, em Baghdad, no Iraque, o Parlamente foi atacado por manifestantes em apoio à revolta no Irã. Depois, foi evacuado pelas autoridades temerosas. Na Turquia, muitas mulheres foram presas por se levantarem em solidariedade às manifestantes iranianas. Em Kabul, no Afeganistão, mulheres protestaram em frente à Embaixada do Irã. Foram espancadas pelos soldados do Talibã.
No Afeganistão, no dia 30 de setembro, uma bomba envolta em um soldado suicída, atualizando o perdedor radical, explodiu em uma escola para meninas, em Kabul. Em sua maioria eram mulheres da etnia Hazara, 25 morreram e 56 ficaram feridas.

No dia 1º de outubro, dezenas de mulheres protestaram na cidade, usando seus véus e trajes tradicionais. A polícia reagiu atirando. No dia 2, em Harat, estudantes universitárias também foram às ruas. No dia 30, em Zahedan, Irã, a polícia massacrou xs insurgentes. Ao menos 40 pessoas foram assassinadas pelo Estado.

Neste momento, xs libertárixs da Era anunciaram que ao menos umx anarquista foi executadx em combate pelas forças policiais. Não divulgaram seu nome.

Nos primeiros dias de outubro, estudantes das universidades iranianas aderiram aos protestos e iniciaram greves. Em grande número, xs secundaristas também se juntaram à sublevação. As garotas arrancaram seus hijabs e tomaram as ruas. Dentro das escolas, divertiram-se destruindo quadros com as imagens dos líderes do regime. Os protestos ganharam outras forças e tons. Estudantes libertárixs se posicionaram publicamente: "nós, estudantes anarquistas, estamos alegremente combatendo não apenas no Irã, mas em todos os cantos do planeta, até que recapturemos as instituições educacionais das mãos dos mercenários governantes".

Na primeira semana de outubro, em Sanandaj e Javanrud, xs revoltadxs puseram a polícia para correr e tomaram as ruas, bloqueando as estradas e vias de acesso para essas cidades. Como reação, as forças de segurança bombardearam Sanandaj. Pelas ruas de Teerã, ouvia-se cada vez mais: "a nossa vergonha é a polícia bastarda". Ao longo desses meses, vários trabalhadores, de diversos setores, anunciaram ou aderiram às greves e paralisações. 

Também no início do mês, a notícia de outra jovem torturada e executada pela polícia atiçou as labaredas da revolta. Nika Shakarami estava prestes a completar 17 anos de idade quando, em 19 de setembro, foi perseguida e sequestrada pela Guarda Revolucionária Islâmica após tomar parte em uma manifestação de rua em Teerã. Durante 10 dias, parentes e amigxs da garota não souberam onde e como ela estava. A última notícia que tiveram de Shakarami foi uma mensagem avisando suas amigas que a polícia a perseguia. A mãe e o tio a procuraram, incansavelmente. Foram ameaçados e acossados por policiais. Por fim, os agentes da ordem falaram que a jovem estava sob custódia e era interrogada. Pouco depois, os levaram até o corpo já sem vida da jovem Nika. No dia 29 de setembro, receberam os restos mortais de Nika Shakarami das mesmas mãos que aniquilaram sua existência. No trajeto para a região de Lorestan, os seus familiares foram parados seguidas vezes por serviçais das forças de segurança que repetiam ameaças.

A violência policial contra o corpo já sem vida de Nika Shakarami não findou. No dia 04 de outubro, a polícia a enterrou. Impediu a família de despedir-se e fazer uma cerimônia. O enterro sumário queria impedir qualquer protesto em memória da garota.

A versão oficial é que Shakarami se suicidou, lançando-se do alto de uma construção. O Estado exibiu "provas" nas redes televisivas (estatais), constituídas por vídeos e depoimentos extraídos sob tortura de pedreiros e dos irmãos de Nika, forçados a declarar em rede nacional que a caçula havia se matado. A sua mãe, Nasrin Shakarami, recusa a falaciosa narrativa das autoridades. Desde o momento em que soube da morte da filha, posicionou-se publicamente afirmando que ela foi executada pela polícia. A mãe repete a descrição da terrível imagem de sua filha com a parte posterior do crânio esmagada. Como Mahsa Amini, Nika Shakarami foi torturada até a morte por policiais.

No dia 20 de setembro, Minou Majidi, uma mulher de 55 anos, foi executada pela polícia durante um protesto de rua. Circula pela internet a foto de sua filha, ao lado de seu túmulo, com a cabeça raspada, as mechas de cabelo nas mãos e o rosto livre, sem véus, maquiagem ou máscaras. Em seu olhar, a irremediável expressão frente ao horror da insuportável violência do Estado.

No dia seguinte, 21 de setembro, a jovem Hadis Najafi foi baleada após queimar um hijab numa barricada. Os projéteis do Estado assassino atingiram seu estômago, pescoço e coração. O cadáver da jovem de 22 anos, além das balas, carregava marcas de espancamento.

 

 

um mês em revolta

 

 

No primeiro final de semana de outubro, Sarina Esmailzadeh, uma garota de 16 anos, foi morta a golpes de cassetete durante os protestos de rua. Pelas redes sociais, circula o vídeo que registrou a imagem do corpo da garota sem vida no chão. E do desespero de outras manifestantes frente ao corpo morto. No mesmo final de semana, o jovem Dariush Alizadeh foi baleado por policiais dentro de seu carro. Ele havia buzinado e gritado em apoio aos manifestantes. Sua mãe foi incisiva: "não me ofereçam condolências. Continuem a insurreição". No dia 8 de outubro, em Bukan, berrava-se em curdo: "nós não somos antirrevolucionários, nós somos a própria revolução". Em Javanrud, a polícia foi expulsa do município. Em Sanandaj, xs insurgentes também fizeram a polícia recuar e, no dia seguinte, fecharam os acessos à cidade. Nesta noite, Sanandaj foi bombardeada pelo regime. No dia 10, apesar da severa repressão, as ruas seguiam em chamas e revolta. Neste momento, trabalhadores de refinarias e plataformas de petróleo entraram em greve.

No dia 13 de outubro, em Ardabil, a garota Asra Panahi foi executada por soldados da Guarda Revolucionária Islâmica. Mais uma cuja existência foi encerrada pela violência covarde dos agentes da ordem que a torturaram até o último respiro. Ela tinha 15 anos de idade. Depois, novamente, as autoridades declararam se tratar de um caso suicida. Dizem que os torturadores ordenaram que Asra Panahi entoasse uma música em louvor ao comandante Ali Khamenei. A garota se recusou. "Adeus, ditador!", ela berrou. Quase um mês antes, em 12 de setembro, o pai de Asra, Ahmad Panahi Khanqah, foi morto pela polícia. No mesmo dia em que Asra Panahi foi torturada até a morte, Arnica Ghaem-Maghami, uma jovem de 17 anos, morreu em decorrência das seguidas pancadas desferidas por policiais portando cassetetes contra sua nuca e cabeça. Mais uma vez, as autoridades alegam suicídio, que Arnica se jogou do alto do quarto andar. Mesmo destino reservaram à Negin Abdolmaleki, estudante da Universidade Tecnológica de Hamadan. No dia 12 de outubro, ela foi assassinada a golpes de cassetete pelas mãos dos serviçais do Estado. No caso de Abdolmaleki, as autoridades declararam óbito decorrente de envenenamento alimentar associado ao consumo de álcool. No dia 14 de outubro, em Robat Karim, xs iracundxs atacaram e queimaram um prédio do governo. No dia 15 de outubro, incendiaram uma base da Basij, milícia paramilitar islâmica. No mesmo dia, o fogo se espalhou dentro da prisão de Evin, em Teerã. Além dos tiros disparados em seu interior, ela foi bombardeada com mísseis. As pessoas ocuparam os arredores da prisão em apoio aos presos. Dias antes, as mulheres encarceradas na prisão de Lakan rebelaram-se. No dia 17 de outubro, uma base da Basij foi incinerada em Ilam. No dia 20, uma escola de meninas em Bukan foi alvo das forças do regime. No mesmo dia, bases da milícia Basij foram queimadas em Sanandaj e em Khorramabad. Nesta última, a ação direta saudou a existência e a memória de Nika Shakarami. No sábado, 22, as estradas de acesso à Sanandaj e Dezful foram tomadas pelo fogo. No domingo, coquetéis molotovs estouraram em automóveis oficiais do regime em Parand. No dia 24, a polícia marchou contra a escola de arte para garotas Sadr, em Teerã. As violências perpetradas pela instituição policial foram revidadas. No dia 26 de outubro, completaram-se 40 dias da declaração de óbito de Zhina. Na cultura islâmica, este período corresponde ao tempo de luto. A família de Amini foi ameaçada pelas autoridades para que não organizasse a cerimônia tradicional. Sem efeito. A cidade de Saqez foi novamente tomada por milhares de manifestantes que encerraram o período de luto marcando a incessante luta irrompida após a execução da jovem. Mesmo diante do fechamento das entradas do município pela polícia, que patrulhava as ruas desde a noite anterior. Enfrentaram a violência dos agentes do Estado. Incontáveis os que estiveram presentes no cemitério onde Zhina está enterrada. Ouvia-se palmas, saudações e cantos de luta. Os gestos se replicam em outras cerimônias fúnebres. Relata-se que, entre os manifestantes, estavam jogadores de futebol, como Ali Daei e Hamed Lak, mas que foram conduzidos pelo Estado para outra localidade do país por "questões de segurança". Simultâneo aos protestos, um macho armado invadiu a mesquita de um "santuário xiita" em Xiraz. Abriu fogo contra mais de 50 pessoas, matando 13, inclusive crianças. O Estado Islâmico reivindicou o massacre. O ministro do Interior iraniano declarou que o ataque estava relacionado aos protestos dos "inimigos do Irã". Neste dia, em Qasr-e Shirin, propriedades do Estado e agências bancárias foram atacadas. Em Teerã, xs revoltosxs entoavam: "não ache que é só uma noite, prometemos que serão todas as noites".

 

 

do horror e da pena de morte

 

 

Quarenta dias após a execução de Zhina, havia mais de 141 pessoas mortas, segundo a ONG Direitos Humanos do Irã, localizada em Oslo, capital norueguesa. Foram assassinadas pelas forças da ordem. Ao menos 58 delas eram crianças e jovens menores de 18 anos. Grupos locais, como o Mujahideen Kalq, falam em mais de 402 mortos. Somente em uma sexta-feira de protestos, na cidade de Zahidan, contabilizou-se ao menos 58 manifestantes assassinados pela polícia.


Segundo integrantes da Era, a proximidade com Rojava é o que atrai muitxs libertárixs às ruas neste momento. Afirmam: "o movimento anarquista cresce no Irã. Essa revolta sem lideranças, feminista, antiautoritária, entoando slogans de Rojava fez com que anarquistas, federadxs ou não à Era, tenham uma forte presença nesses levantes".
Dentre os milhares de presos — estima-se mais de 16 mil, confrontando os números oficiais de 1200 detidos —, muitos esperam por condenação à pena capital. Destaca-se, internacionalmente, a detenção e ameaça de pena de morte a intelectuais e professores universitários, jornalistas, artistas e celebridades.

Os serviçais e líderes do regime culpam o chamado Ocidente, notadamente os Estados Unidos da América, pela "instabilidade" da região. Jornais estatais locais, como o Kayhan, divulgam os protestos como decorrentes da articulação de "mercenários do inimigo" e convocam: "os mercenários do inimigo tiraram as máscaras, não tenham piedade dos criminosos". A sede do jornal em Teerã foi atacada com coquetéis molotvs. Xs insurgentes avançaram para invadir o edifício. Não conseguiram, mas desferiram inúmeros golpes contra a propriedade, somados ao fogo.
Os EUA e a União Europeia decretaram algumas sanções contra o Irã, especialmente bloqueios econômicos. Medidas que não são novas e, tal como em relação à guerra entre Rússia e Ucrânia, não passam de declarações diplomáticas democráticas. Assim como o agendamento de uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o dia 24 de novembro, — mais de dois meses após a eclosão das revoltas e a imediata reação do terror estatal —, com o objetivo de negociar uma possível missão internacional voltada à investigação de "abusos" das forças de segurança iranianas.

Ao mesmo tempo, xs anarquistas da Era alertam para o uso de veículos militares e artefatos bélicos novos no território. Libertárixs que vivem em outros lugares levantam a suspeita de que os tanques que passaram a circular nas ruas iranianas, já no dia 21 de setembro, assemelham-se aos que marcham pelas ruas turcas.

Estados e empresas, paralelamente às reprovações diplomáticas, alimentam as forças de segurança iranianas vendendo armas inovadoras. Drones produzidos pela ROTAX, manufaturados na Áustria pela empresa canadense, mataram incontáveis crianças, jovens, mulheres e homens insurgentes pelas ruas do Irã. Estas armas tecnológicas se tornaram alvo dos manifestantes. Muitas foram despedaçadas furiosamente.

No meio disso tudo, o embaixador iraniano recebeu o convite da Nobel Foundation para participar da cerimônia no dia 10 de dezembro.

No dia 29 de outubro, na Universidade de Hormozgan, em Bandar Abas, xs estudantes destruíram as paredes que serviam para apartá-lxs de acordo com os gêneros binários em lugares exclusivos para os homens e para as mulheres.

No dia 13 de novembro, o Estado da República Islâmica do Irã decretou a primeira condenação — formal — à pena capital. O nome do condenado não foi divulgado. Ele poderá ser executado pelos "crimes" de "incendiar um prédio do governo, perturbar a ordem pública, [promover] reunião e conspiração para cometer um crime contra a segurança nacional, ser um inimigo de Deus e [promover a] corrupção na Terra". Poucos dias depois, novas sentenças de pena de morte, sob as mesmas acusações, foram emitidas pelas autoridades.

A determinação oficial pela execução de manifestantes alarmou o chamado Ocidente. Nesta região do planeta, sublinha-se o caráter religioso considerado na condenação. E há "crime" contra a propriedade que não seja fundamentado em preceitos e valores religiosos? Quantas pessoas estão nas masmorras de inúmeros Estados — democráticos ou não — condenadas a passar anos, décadas, de suas existências encarceradas por atacarem propriedades — estatais ou não — e ameaçarem a "segurança nacional"? A exemplar democracia estadunidense não segue também a emitir sentenças de pena capital? E as incontáveis existências aniquiladas por fardados armados durante revoltas nas ruas dos mais diversos lugares do planeta?

É explícito: o Estado mata e exerce o terror, oficial e extraoficialmente, em nome da sagrada propriedade.
Um novo mês se iniciou e a revolta continua a incendiar propriedades, autoridades e costumes no Irã.

 

 

intermezzo

 

 

No texto "É inútil revoltar-se?", Michel Foucault analisou a surpreendente maneira com que mulheres e homens iranianos arriscavam suas vidas, com "o ódio pelo regime e a vontade de mudá-lo, eles os inscreviam nos confins da terra, em uma história sonhada que era tão religiosa quanto política".

Naquele momento, 1979, Foucault enfatizou o caráter religioso como decisivo. Hoje, a insurreição no Irã se afirma contra a religião — entre algunxs mais radicais, antirreligião. Os efeitos de terror instaurados pela República Islâmica do Irã produzem revoltas outras.

"As insurreições pertencem à história. Mas, de certa forma, lhe escapam. O movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: 'Não obedeço mais', e joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco de sua vida — esse movimento me parece irredutível. Porque nenhum poder é capaz de torná-lo absolutamente impossível: Varsóvia terá sempre seu gueto sublevado e seus esgotos povoados de insurrectos. E porque o homem que se rebela é em definitivo sem explicação, é preciso um dilaceramento que interrompa o fio da história e suas longas cadeias de razões, para que um homem possa, 'realmente', preferir o risco da morte à certeza de ter de obedecer".

 

 

... sem fim

 

 

Muitxs seguem pelas ruas do Irã, insurgindo-se e revolvendo costumes e práticas, mesmo frente às centenas de mortes, muitas delas decorrentes de torturas. Seguem sem negociar e afirmam a vida diante das execuções e de sobrevivências mortificadas pela obediência e assujeitamento à ordem religiosa e política.
Irã, no agora, queima em fogo insurgente .


 

R A D. A. R

 


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Anunciando el inicio de la formación de la Federación de la Era del Anarquismo


Mulher, Vida, Liberdade: Uma mensagem do Irã

Irã atira contra manifestantes em memorial de Mahsa Amini


Anarquistas iranianos falam dos protestos em resposta ao assassinato de Mahsa Amini pela polícia

Irã brutal

Irã emite primeira pena de morte ligada aos protestos


Ativistas acusam Irã de apreender corpos de manifestantes e enterrá-los em segredo

 
"É inútil revoltar-se?"


 

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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