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observatório ecopolítica

Ano V, n. 121, fevereiro de 2023.

 

 

Mas, não se matam cavalos? Matam indígenas


Um estranho livro estadunidense comentava a miséria dos trabalhadores obrigados a dançar dias a fio em uma tenda para ganhar o prêmio maior e com isso imaginarem-se saindo da penúria. Proveniência dos reality shows? O romance de Horace McCoy sobre a depressão estadunidense, chama-se They don't shoot horses, don't they?, no Brasil publicado como Mas não se matam cavalos? E no cinema como A noite dos desesperados (Sydney Pollock, 1969).

 

Hoje, em busca de momentos de celebridades, há variados realities shows cultuados por classes médias e baixas, por quem ainda crê no subir na vida capitalista, e por grã-finos que cultuam ornamentar suas festas e reuniões com estas personagens em busca de um naco de pão dourado, uma identidade a mais empoderada.

 

Agora, os realities shows têm mais sexo, mais comidas, mais desafios, mais heroísmos, emagrecimentos, casamentos, trapaças rotineiras, reformas de casas, suas fachadas, jardins e piscinas, tudo o mais que empolga os cidadãos-polícia que pastoreiam os seus próximos, via eletrônica e presencialmente.

 

O Estado também monitora por satélites, drones e missões em solo as terras indígenas (demarcadas ou não), as invasões, os garimpos, as queimadas, as declarações internacionais nos fóruns de defesa do meio ambiente.

 

Alguns relembram Um índio, a canção do poeta, em cuja derradeira aparição o índio explicitará, mais uma vez, o óbvio. Darcy Ribeiro, educador, antropólogo e político, enfatizou que o objeto de pesquisa das ciências humanas é o óbvio, "lidar com o óbvio". Outros recordam os mais extensos estudos antropológicos sobre populações indígenas e suas extinções, desde as navegações coloniais, acoplando trabalhos delicados e contundentes em fotografia, com depoimentos e imagens em vídeo e filme produzidas por indígenas, uma vastidão imensa de denúncias que foram e são burladas cotidianamente1 .

 

Aqui pode ser que não matem cavalos, mas matam indígenas. Cavalos e demais bichos servem ao abate para alimentação humana com base no confinamento, na engorda e na morte para a mesa de comidas ricas em proteínas. A carne não passa de luxo para pobres.


Matam-se indígenas, como Yanomamis, no Brasil, na América do Sul, no planeta, em nome da civilização, do fim do vandalismo, da educação, da saúde, da cultura, da escolarização para todos parecerem ser como os colonizadores e portarem direitos.

 

Parecer ser e não ser. Deixar de ser o que era para não ser mais o que foi. Ganhar sendo portador de identidade, de diferenças e obter certo espaço na democracia liberal pluralista, para não ser mais o que era, mas um neocolonizador conduzindo o colonizado, buscando determinar suas verdadeiras raízes, comidas, costumes, cantos perdidos, agora documentados e validados segundo a cultura colonizadora dos arquivos.

 

Como se tudo passasse a ser e estar a partir do momento em que houve definitivamente a pacificação, ou seja, o indígena vendo-se em uma nova etapa da pacificação, do uso e abuso das violências. Vendo-se, agora, com o que restou dele próprio e obrigado a fazer inclusiva sua cultura, integrativa, territorializada e representativa. Ter terra demarcada, com proteção do Estado, estar em um suposto isolado, um parque nacional, uma terra demarcada, mesmo não havendo isolado na produção capitalista. Capitalismo que invade estas paragens envenenando os rios, ateando fogo, devastando o meio ambiente, distribuindo doenças, e propondo-se à cura por meio da sustentabilidade e com a captura dos saberes insurrecionais indígenas transformados em produtos e serviços no mercado com seus selos verdes.

 

O monitoramento contemporâneo sabe, inclusive, onde estão os indígenas isolados. Será que o capitalismo sustentável, o atual civilizado, com muitas verbas de europeus e norte-americanos (pessoas, institutos, fundações, ONGs) ricos e sob a racionalidade neoliberal, considerará que não se deve integrar mais ninguém? Isolados em suas andanças, estes indígenas comporiam fluxos de proteção da Terra?

 

Aqui matam-se cavalos, bichos, gente branca pobre, preta, imigrante-migrante e indígena em nome da civilização, da alimentação, da saúde do lucro. É capitalismo, com ou sem democracia, sempre com colonizadores, com as políticas de inclusão, compensação e com as terríveis interdições... Hoje, com o direito democrático a ser portador de uma identidade.

 


confinamentos

 


"Nos anos 1920, a Comissão Rondon realizou as primeiras imagens em movimento na região [do Xingu]. Peça de propaganda da integração dos indígenas ao projeto nacional, o filme termina com uma cena simbólica: uma fileira de indígenas sendo vestidos com uniformes" (Kuikuro & Freitas, 2023, p. 53). Páginas adiante informa-se que: "no filme [Sangradouro, 2009] batizado com o nome da aldeia onde nasceu, o cineasta Divino Tserewahú recupera cinejornais que mostram os primeiros contatos sistemáticos dos Xavante com não indígenas, nos anos 1940. Neles, o território tradicional é descrito como 'Oeste selvagem', e seus habitantes 'os índios mais bravios do Brasil'. As imagens foram produzidas pelo SPI [Serviço de Proteção aos Índios 1910-1967, substituído desde então pela FUNAI - Fundação Nacional do Índio] durante a Marcha para o Oeste [Expedição Roncador-Xingu], lançada pelo governo Getúlio Vargas [na ditadura do Estado Novo], em 1943  com o discurso que era preciso ocupar o interior do país. Muitas aldeias na rota das expedições foram desalojadas ou dizimadas" (Idem, p. 58).

 

O parque Nacional do Xingu, apareceu em 1961, em um território menor do que o previsto e sem incluir a nascente do rio Xingu. Muitos povos ainda ficaram expostos aos garimpeiros e fazendeiros. Esta situação passou a ser irremediável e constante levando, desde os anos 1950, a um esboço de política chamada humanitária, inaugurada por Darcy Ribeiro e Noel Nutels entre outros, voltada para a abordagem de populações indígenas e demarcação de suas terras.

 

A gestão deste e demais parques nacionais indígenas passaram a ter em seu interior remanescentes de vários outros povos compondo o esforço por manter vivas certos povos e suas culturas. Apesar desse esforço, toda a "ficção colonial difundida pelo Estado e pelos meios de comunicação" (p. 92) se consolidou. Foi a Constituição de 1988, na qual o Xingu foi a referência, que proporcionou um capítulo dedicado aos direitos indígenas (Capítulo VIII, art. 231). Hoje "são os indígenas que domesticam a tecnologia, apropriando-se da fotografia e do vídeo para apresentar suas narrativas" (p. 205).


Narrativas à parte, a condição geral dos indígenas ainda é a de submissão forçada ao Estado e os seus desenvolvimentismos, às ONGs e similares, à defesa internacional do meio ambiente, aos fazendeiros e empresas de mineração com seus devidos políticos.

 

Na defesa humanista, os indígenas ainda são considerados constitutivos da natureza perdida e a ser restituída. Muitos reconhecem ser isto impossível, um ideal, um devaneio. Muitos reconhecem que os humanos indígenas de hoje em sua grande maioria não são mais indígenas, mas resultantes de uma metamorfose, ora interessante, ora macabra. Muitos lançam mão desta última constatação para atuarem pela destruição de culturas e genocídios e reduzi-los à condição de animal, como Aristóteles fizera com os inimigos de Atenas, e tornarem-se legítimos exterminadores transvestidos de aculturadores a serviço da pátria.

 

Dissemina-se, entretanto, a crença na conservação das culturas indígenas à metamorfose interessante, principalmente pelo uso das tecnologias à disposição, e pela inserção dos jovens na educação nas cidades e das velhas lideranças na luta no campo. A história e a cultura dos povos indígenas passam por uma nova abordagem, inclusive mítica. Não é mais a das expedições para o oeste do início do século XX, dos Parques Nacionais, na segunda metade do mesmo século, mas da luta política por portar direitos, desde o final do século XX.

 

E, novamente, volta-se ao mesmo ponto de corrosão da cultura indígena: ou eles são povos da natureza na flora-fauna, ou são como os brancos, e, portanto, quase indígenas. Se são como os quase indígenas estão em progresso, segundo as forças conservadoras e de extrema direita. Portanto, devem estar disponíveis a mais uma colonização...
E por aí ficam as humanidades diante da morte, dos genocídios, de mais e maiores riscos de preservação das culturas indígenas.

 

 

de liberdades aos confinamentos

 

 

"A terra-floresta, que os Yanomami denominam urihi, é uma entidade viva, parte de uma cosmologia complexa que envolve seres humanos e não humanos. Abrange a natureza e os espíritos da floresta: imagens essenciais de árvores, animais e outros entes, que são os verdadeiros donos da terra. Estes espíritos refrescam a terra e afastam epidemia" (Nogueira (org), 2018. p 3).

 

Estima-se que no ano da chegada dos portugueses no território que seria delimitado como Brasil havia entre 2 e 3 milhões de indígenas no norte do país, na região que hoje faz fronteira com o Estado da Venezuela. A terra Yanomami era cultivada no nomadismo (e no seminomadismo) em economia de abundância.

 

A terra Yanomami hoje seria aquela disposta pelo nomadismo deste povo, não só expurgada de garimpeiros e fazendeiros, com suas doenças e moral, com os indevidos incêndios florestais e contaminações químicas, mas também livre da Rodovia Perimetral Norte (BR-210) que cruza sua terra no Brasil, desde Amapá e Roraima. Foi projetada pela ditadura civil-militar nos anos 1970, dentro do Programa de Integração Nacional (PIN) do governo do general Médici. Se não atingiu, como previsto, os estados de Pará e Amazonas, rompeu devastando terras, povos e culturas indígenas. Em certo sentido, atingiu seu objetivo. O alegado fracasso da sua suspensão no governo de Ernesto Geisel (1974-1979, foi mais um sucesso civil-militar contra os indígenas na região.

 

"Um relatório confidencial da Funai sobre 'Questão das Terras Yanomami', de 1981, declarava a 'impossibilidade de preservar a cultura Yanomami intacta, no estágio atual. Aqueles que defendem este aspecto são irrealistas e não aceitam o princípio de que a cultura superior é dominante e que absorve a cultura inferior. Diante desses aspectos é imperativo que seja ordenada, controlada e gradual a aculturação dos Yanomami, evitando-se o choque brusco do rompimento com o passado, que fatalmente ocorrerá com o isolamento da comunidade'" (Idem, p. 234).

 

A questão atualizada coloca a pergunta sobre a possibilidade de manter o que restou na Amazônia na atual gestão planetária combinada com os oscilantes governos sul-americanos. Nada indica que haverá garantias, nem mesmo por parte de organizações internacionais fiscalizadoras, haja vista a destruição promovida pelo recente governo Bolsonaro que ludibriou com seus pronunciamentos o mínimo de crítica à sua política chamada de genocida. A medida que expressou dar as costas a este governo foi o corte de investimentos de agências de meio ambiente desde o início do governo Bolsonaro.

 

Constata-se, não é de ontem, que sob os diferentes governos de ditaduras e das chamadas democracias, o capitalismo ajusta seus interesses mais ou menos genocidas, sustentáveis, humanitários. Sabe-se, não é de hoje, que "índio aculturado é índio degradado". Como vivemos na era da ecopolítica, de restauração contínua do que foi degradado, fica aberto aos humanitarismos qual o sentido da preservação indígenas diante da possibilidade de conservação ambiental (com ou sem indígenas).

 

"O garimpo avançou sobre a área Yanomami no final dos anos 1970, com o mapeamento aéreo das riquezas amazônicas conduzido pelo projeto Radam-Brasil [Também criado pela ditadura civil-militar, funcionou vinculado ao Ministério de Minas e Energias, de 1970 a 1985]. A existência de jazidas minerais na região desencadeou um movimento de invasão progressivo [o que evidencia a conivência ou tráfico de informações sobre monitoramentos entre Estado e garimpagem]. Até 1990, uma centena de pistas de pouso clandestinas foi aberta no curso superior dos principais afluentes do rio Branco" (Idem, p. 225).

 

A Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY)2 data de 1978, fundada pela fotógrafa Claudia Andujar, o antropólogo Bruce Albert e o missionário Carlo Zacquini, mais tarde acrescida dos antropólogos Carlos Alberto Ricardo e Alcida Ramos. A primeira proposta foi entregue no ano seguinte ao Ministro do Interior e propunha não aceitar a demarcação em bolsões, mas em terra contínua3 . Porém, se a TIY (Terra Indígena Yanomami) começou a ser demarcada pela portaria 1.817 de 8 janeiro de 1985, a demarcação definitiva ocorreu em 25 de maio de 1992, repercutindo em apoio internacional ao fechamento de minas de outro e à saída de garimpeiros. Fim daquele momento com o encontro Rio 92, a Cúpula da Terra, com ordenações das Nações Unidas. Abria-se novo rumo, agora internacionalista e à mercê dos governos estatais e seus negócios.

 

"No começo dos anos 1970, missionários batistas construíram uma pista de pouso perto de um grupo Yanomami e deram origem à missão Boas Novas" (Idem, p. 238). Mais boas novas que terminaram em relações de trocas e consumo com os indígenas (o que já ocorria nesta região desde 1965), com a difusão da prostituição de mulheres e doenças graves.

 

Em 1989, um relatório publicado pela "Ação Pela Cidadania, declarava que os Yanomami estavam 'sob a ameaça de extinção cultural e física por falta de garantia aos direitos que a Constituição lhe assegura'" (Idem, p. 247). Mesma situação constatada nos anos 2019-2022 no governo Jair Bolsonaro, agora prestes a ser novamente reparada pelo governo atual. Até a próxima... E aos poucos os Yanomami vão deixando de ser o que eram e não ser mais o que poderiam ser... De volta à canção:

 

"Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do Hemisfério Sul, na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
(...)
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio"

 

Enfim, é salutar lembrar com Montaigne que barbárie é o que cada um chama o que não é seu por costume. Sejam indígenas, escravos, imigrantes, migrantes, minorias potentes, anarquistas, contestadores, rebeldes, revoltados avessos à ilusória pacificação liberal e iluminista. Ou, simplesmente, apenas adversários momentâneos. Trata-se de uma forma de visar o extermínio do outro, uma forma de genocídio que não é só de fascistas.

 

A vida para existir precisa menos do que imaginou o europeu, no passado, e os civilizados, no presente. Montaigne chamava os indígenas do Brasil de "meus canibais", sem medo, ódio, revanche ou inveja. Inaugurou o relativismo, "que rejeita todo critério absoluto que uma cultura possa invocar a fim de julgar culturas diferentes" (Lévi-Strauss, 2022, p. 91) 4 .

 

"Nenhum etnólogo sério contesta a existência de canibalismo, mas todos  sabem também que não se pode reduzi-lo a sua forma mais brutal, que consiste em matar inimigos para comê-los. Esse costume certamente existiu. No Brasil – para citar apenas um exemplo –, alguns viajantes antigos e os jesuítas portugueses que, no século XVI, viveram entre os indígenas e falavam sua língua foram suas testemunhas mais eloquentes. Ao lado deste exocanibalismo, é preciso também considerar o endocanibalismo, que consiste em consumir – em grande ou pequena quantidade, fresca, putrificada ou mumificada – a carne crua, cozida ou carbonizada de parentes mortos. Nos confins do Brasil e da Venezuela, os indígenas ianomâmi, pobres vítimas, como sabemos, da exploração dos garimpeiros que invadiram seu território, consomem até hoje os ossos moídos de seus mortos" (Idem, p. 105). (...) O canibalismo em si não tem uma realidade objetiva. É uma categoria etnocêntrica: só existe aos olhos das sociedades que o proíbem" (Idem, p. 106).

 

Cada vez mais é importante alertar para continuidade dos povos isolados já demarcados pelo monitoramento eletrônico. Eles também fazem parte da Terra, como os demais indígenas e não indígenas. Não são constitutivos da idealização da natureza.

 


1 Caetano Veloso. "Um índio". Bicho, 1977.
Darcy Ribeiro. Escritos insólitos. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
Thyago Nogueira (org). Claudia Andujar, a luta Yanomami. São Paulo: IMS, 2018.
Akumã Kuikuro, Guilherme Freitas. (curadoria) Xingu: contatos. São Paulo: IMS, 2023.

2 Download em https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/dados-tecnicos-
sobre-o-parque-nacional-indigena-yanomami-proposto


3 Sobre a situação da Terra Yanomami, incluindo os isolados ver:
https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/4016

4 Claude Lévi-Straus. Somos todos canibais. Tradução Marilia Scalzo. São Paulo: 34 Letras, 2022.


 

 

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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