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observatório ecopolítica

ano V, n. 124, abril de 2022.

 

el salvador: prisões, mortes e encarceramentos



gangues, narcotráfico e ilegalismos

 

A partir da década de 1920, as sucessivas medidas voltadas para erradicar as drogas dos hábitos sociais no planeta resultaram em proibições de inúmeras substâncias psicoativas, na produção, na comercialização e no consumo daquelas consideradas ilícitas.

 

O proibicionismo impulsionou a economia de substâncias, que resultou no que hoje os Estados e as mídias compreendem por tráfico de drogas ou narcotráfico. A partir do momento em que a proibição se disseminou, surgiram redes de empresas especializadas na produção, circulação e venda de drogas proibidas, com vínculos intrínsecos com empresas legais, bancos, políticos, burocratas e, obviamente, governos.

 

Na década de 1970, o governo dos Estado Unidos declarou sua política de combate às drogas, que redundou em intervenções para combater países classificados como produtores e exportadores dessas substâncias consideradas ilícitas. O termo "guerra às drogas" procede de uma aparição de Richard Nixon, então presidente dos EUA, na TV em que afirmou: as drogas são uma ameaça aos EUA. Ou seja, uma ameaça à saúde pública, como também à moral estadunidense. O discurso diplomático-militar estadunidense identificou os grupos narcotraficantes como a principal ameaça à segurança dos Estados e do continente americano como um todo. Na virada para o século XXI, forças militares e batalhões em Estados do continente americano passaram a ser financiados pelos EUA e pela União Europeia para combaterem na "guerra às drogas". Tropas policiais em todo o planeta passaram a receber treinamentos e equipamentos militarizados e de segurança, a contar com suas próprias tropas de elite e de inteligência.

 

Ao longo do século XX, no chamado contexto da Guerra Fria, as lutas tidas como guerras civis ocorriam em diferentes regiões do planeta anunciando uma transformação da prática do exercício da guerra, com a emergência e a proliferação das forças não-estatais, como os exércitos de libertação nacional e a continuidade de terroristas nacionalistas (como o basco ETA, o irlandês IRA e a palestina OLP), revolucionários (como o Baader-Meinhof alemão e as Brigadas Vermelhas italianas), e guerrilhas armadas na América Latina e, lutando contra regimes capitalistas e ditaduras militares. Os EUA investiram em uma identificação das guerrilhas com o tráfico de drogas tornando isso uma questão de segurança do continente. No caso de El Salvador, foi a guerrilha armada Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), que lutou contra o regime civil-militar vigente durante o acontecimento que ficou conhecido como Guerra Civil salvadorenha, conflito que ocorreu no início da década de 1980, e foi encerrado em 1992, com a assinatura dos Acordos de Paz na Cidade do México.

 

A assinatura dos Acordos de Paz determinou por certo tempo a agenda nacional de El Salvador, ao delinearem o entorno do pluralismo e da tolerância entre todos os agrupamentos políticos e sociais que se enfrentaram belicamente durante uma década. Estabeleceu-se um pacto pelo qual se iniciou a transição para a fundação de uma democracia pluralista por meio de propostas de reformas constitucionais, judiciais, eleitorais e nas Forças Armadas. Um dos principais fatores dessas reformas, foi a legalização da FMLN como partido político, que abandonou a luta armada para disputar as eleições como partido oficial dentro do jogo democrático.

 

Na passagem para a década de 1990, com o fim da disputa explícita entre os blocos socialista e capitalista, o movimento de espraiamento dos agentes de violência e de fragmentação das guerras recrudesceu. Desde os anos 1980, "organizações ilegais" com atuação internacional se estabeleceram, fortalecidas pela combinação entre tráfico de drogas, tráfico de armas, facilidades de locomoção, agilidade nas comunicações e rapidez na transferência eletrônica de capital. Essas organizações fomentaram declarações de guerra e acordos internacionais repressivos que acionaram conflitos regionais e transterritotiais.

 

Apesar das sucessivas operações de repressão ao longo dos anos, o chamado narcotráfico cresceu e passou a ser um negócio descentralizado, envolvido não só com a economia legal, políticos e guerrilhas, mas também passou a convocar mais jovens que se dispusessem a combater com as forças policiais ou com grupos rivais.

 

O tráfico de drogas é uma das principais atividades de grupos e facções do chamado "crime organizado", que alimentam, pela ilegalidade, a economia formal e criam um contingente controlável de pessoas que vivem no entra-e-sai das prisões, mantendo relações de proximidade com as autoridades estatais. Geram lucros para a economia, justificativas para uma infindável e violenta guerra, além de intermináveis julgamentos e aprisionamentos.

 

Em El Salvador, as políticas voltadas para o chamado combate ao crime e rubricadas como de encarceramento em massa, contribuíram para a ampliação das atividades de gangues conhecidas como "Maras". Nas prisões e nos territórios controlados por essas gangues, instituem leis, tribunais, polícias, acordos, execuções, extorsões, assistencialismos, pretendendo manter relações diplomáticas com o Estado. Operam na fronteira entre legalidades e ilegalidades, expressando os efeitos das políticas de repressão. São um duplo necessário às políticas de segurança e da indústria do controle do crime.

 

 

As maras

 

 

As maiores e mais conhecidas gangues de El Salvador são a Barrio18 (Mara 18) e Mara Salvatrucha (MS-13). Elas possuem ramificações na Guatemala, Honduras, no México e Canadá, nos EUA e na Espanha. Contam com mais de 60 mil membros em suas fileiras, segundo o governo dos EUA, que no ano de 2012, classificou essas gangues como "organizações criminosas transnacionais", de modo a serem as primeiras gangues de rua a receberem essa classificação de agências de segurança estadunidense.

 

Nos EUA, as Maras estabeleceram-se nos subúrbios mais pobres da cidade de Los Angeles (EUA), nas décadas de 1970 e 1980, quando imigrantes de El Salvador, em sua maioria fugitivos da chamada guerra civil salvadorenha (1980-1992), sofreram ataques racistas e assassinados por gangues locais. Por consequência, alguns imigrantes salvadorenhos criaram gangues com a designação de "Mara" ("bando") em resposta às hostilidades vivenciadas. Em pouco tempo, ganharam notoriedade devido à violência empregada pelos seus membros, principalmente por matarem seus inimigos usando machetes. As Maras também passaram a disputar territórios e pontos de venda de drogas com outras gangues de Los Angeles, de modo a se expandirem rapidamente.

 

No caso da Mara Salvatrucha, seu nome vem da combinação de "Mara", gíria que significa "bando", ou gangue de rua; "Salva", em alusão ao país de origem, El Salvador, enquanto "trucha" significa malandros da rua. Já o número 13 é atribuído como homenagem à Mexican Mafia (a referência faz alusão a letra "M", a décima terceira letra do alfabeto latino), gangue de mexicanos que surgiu dentro dos presídios californianos.

 

O número 13 carrega também um significado mais próximo com a violência da gangue, pois um aspirante a se tornar membro da MS-13, tem que passar por um ritual conhecido como "batida", que consiste em uma sessão de 13 segundos de espancamento. Pouco tempo depois, a partir de membros de outras gangues de mexicanos e alguns poucos desertores da MS-13, surgiu um grupo rival, o Barrio 18, quase tão númeroso e igualmente violenta. Carrega este nome por ter se iniciado na 18th street de Los Angeles.

 

A partir da década de 1990, ex-integrantes das forças especiais salvadorenhas que servirem na guerra em El Salvador, passaram a integrar as fileiras das Maras. Treinados no Panamá pelos Boinas Verdes dos EUA, os novos membros introduziram nas operações das Maras, táticas de guerra e disciplina militar. A partir desse momento, as gangues começaram a crescer e a rivalidade entre a MS-13 e Barrio 18 ficou mais acentuada.

 

Nessa mesma época, o governo estadunidense iniciou uma política de deportação dos membros dessas gangues após serem presos pela polícia em território estadunidense. Como efeito, as Maras passaram a recrutar mais membros em seus países de origem (Honduras, Guatemala, El Salvador), contribuindo para aumentar o tamanho e a influência das facções nos EUA e na América Central.

 

As deportações em larga escala ocorreram logo após o fim da chamada Guerra Civil salvadorenha, em 1992. A imediata instabilidade política em El Salvador possibilitou que as Maras se consolidassem, rapidamente, no país, estabelecendo-se nas comunidades mais pobres. O período do pós-guerra também foi marcado pela enorme quantidade de armas remanescentes do conflito bélico, permitindo que o tráfico de armas passasse a ser uma das principais fontes de receita das gangues, ao lado de extorsões e assassinatos.

 

A partir de 2001, com o aumento das atividades das Maras em El Salvador, os governos de Francisco Flores (1999-2004) e Antonio Saca (2004-2009), ambos do ARENA, partido de direita e fundado por militares, implementaram as políticas de segurança Mano Dura (2003) e Super Mano Dura (2004). Essas políticas de segurança consistiram na implementação de esquadrões antigangues, compostos por policiais e militares para patrulhar as ruas. O resultado foi o encarceramento em massa e no agravamento da superlotação prisional em El Salvador. Dentro dos muros das prisões, os membros das Maras se agruparam ainda mais, graças à política prisional de segregação dos detentos de acordo com a gangue que pertenciam, de modo a fortalecer as estruturas das Maras dentro das prisões, que passaram a controlar todo o aparelho prisional com o Estado.

 

Em 2011, El Salvador foi considerado o segundo país mais violento do planeta, atrás apenas de Honduras, segundo relatórios do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODOC) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em uma tentativa de reduzir as taxas de homicídios no país, que chegaram a 4.364 mortes, o governo do então presidente Mauricio Funes (2009-2014), do partido da FMLN, ao lado de representantes da Igreja Católica, iniciaram negociações com líderes da MS-13 e da Barrio 18 com a finalidade de reduzir as taxas de homicídios no país em troca de melhores condições carcerárias.

 

O governo salvadorenho, inicialmente, negou o acordo que ficou conhecido como Tregua entre Pandillas, que teria incluído pagamentos em dinheiro e várias transferências dos líderes das Maras de prisões de segurança máxima para centros de detenção menos restritivos. Entretanto, após investigações realizadas em El Salvador, e de confirmações de membros das gangues e da Igreja Católica quanto às negociações, o governo passou a reconhecer a existência do pacto com as Maras e o seu papel na negociação da trégua.

 

Como parte da "Trégua", o governo buscou implementar, em novembro de 2012, "Zonas de Paz" nos municípios salvadorenhos. Essas zonas seriam locais onde as Maras deveriam ter por objetivo extinguir paulatinamente suas atividades. Os membros das gangues também deveriam entregar suas armas ao Estado e estabelecer um cessar-fogo com gangues rivais. Em contrapartida, a polícia encerraria operações noturnas e retiraria agentes desses locais, enquanto o governo implementaria programas de reabilitação para ex-presidiários. Alguns líderes das Maras aceitaram os termos das negociações e até propuseram os locais onde essas "Zonas de Paz" deveriam ser estabelecidas.

 

Segundo dados do governo, as taxas de homicídios em El Salvador caíram quase 60% após o acordo realizado. Entretanto, segundo o relatório da Human Rights Watch, houve um crescimento no número de pessoas desaparecidas durante esse período. Durante o pacto com as gangues, o governo salvadorenho passou a ser transigente com as atividades de extorsões realizadas nos territórios controlados pelas Maras, o que tornou a trégua altamente impopular e controversa entre os demais cidadãos salvadorenhos.

 

No início de 2013, os acordos de trégua começaram a se desgastar. A violência aumentou, em parte porque as gangues acertaram as contas acumuladas durante o cessar-fogo e, também, por tentarem trazer o governo de volta à mesa de negociações. Em abril de 2014, Funes acusou publicamente a gangue Barrio 18 de quebrar o acordo estabelecido, e, no mês seguinte, declarou que a trégua com as Maras havia falhado.

 

No mesmo ano, Salvador Sánchez Cerén, também da FMLN, venceu as eleições presidenciais. Durante sua campanha, fez promessas de retomar uma abordagem dura contra as Maras, de modo que, após sua vitória nas eleições, a trégua foi considerada encerrada. Apesar do pacto desfeito, as Maras aprenderam a manipular as taxas de homicídio para negociar e obter concessões dos governos eleitos, de modo que, em 2015, El Salvador teve a maior taxa nacional de homicídios per capita do planeta, segundo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Nesse momento, Nayib Bukele, então presidente da Câmara Municipal da capital (2015-2018), pelo partido da FMLN, iniciava uma nova negociação e um novo acordo com as Maras.

 

 

mega prisão e guerra às gangues

 

 

Um em cada cem salvadorenhos foi preso entre março e dezembro de 2022. Esse é um dos efeitos produtivos para a ampliação dos negócios do Plano de Controle Territorial, a política de segurança adotada pelo presidente de El Salvador, Nayid Bukele, no início de sua gestão em 2019. Em linhas gerais, essa política envolve a modernização das forças de segurança e o aumento de sua presença em todo o território salvadorenho, com foco no que denominam como "guerra às gangues".

 

Como produto dessa nova política de segurança, no começo de fevereiro deste ano, foi inaugurada a maior prisão construída no território salvadorenho. O novo complexo prisional intitulado Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), com capacidade para encarcerar até 40 mil pessoas, passa a assumir o pódio da maior prisão do planeta. Essa prisão irá aumentar de modo exponencial a capacidade do sistema prisional de El Salvador, que atualmente conta com 63 mil pessoas encarceradas. Isso num país com 6,5 milhões de habitantes, o que corresponde a 2,2 % da população encarcerada. Segundo dados da World Prison Brief, em março de 2022, El Salvador alcançou o topo do ranking dos Estados com maior taxa de encarceramento do planeta. Eis, aí, um exemplar da lucrativa indústria do controle do crime.

 

Em 31 de janeiro de 2023, o jovem Nayid Bukel, em pronunciamento pela rede nacional de TV, falava das instalações do que chamou de "prisão de primeiro mundo". O vídeo de 36 minutos, produzido pelo governo salvadorenho, mostrava tomadas realizadas por drones da carreata presidencial ao local e detalhes de todas as instalações e operações do complexo prisional. O presidente salvadorenho foi apresentado como um "super-herói", que saiu "vitorioso" no embate contra as gangues de El Salvador.

 

Até a inauguração do CECOT, a maior prisão do país era a de La Esperanza, com capacidade para 10 mil presos e que contava com 33 mil pessoas encarceradas dentro de seus muros. Até 2021, havia 20 centros de detenção em El Salvador com capacidade de manter presas 30 mil pessoas. No entanto, segundo dados da organização Human Rights Watch (HRW), que supostamente teve acesso a um banco de dados pertencentes ao Ministério da Justiça e Segurança Pública de El Salvador, havia mais de 36 mil pessoas encarceradas em La Esperanza.

 

Construída em período recorde de 7 meses, em uma região rural e isolada do município de Tecoluca, o CECOT conta com um muro de 2 km de extensão que cerca os 10 pavilhões que abrigam as celas com capacidade para mais de 100 pessoas. De acordo com o governo, 600 soldados e 250 agentes policiais foram designados para operar na vigilância da prisão.

 

Quase um mês depois após a transmissão da visita de Bukele e sua comitiva ao CECOT, o chefe de Estado salvadorenho postou outro vídeo em suas redes sociais e nas redes de instituições governamentais, mostrando a chegada dos primeiros presos no novo complexo prisional.

 

Cerca de 2.000 homens de cabeça raspada e vestidos apenas com shorts brancos desciam dos ônibus agachados e com as mãos algemadas. As imagens foram acompanhadas por uma trilha sonora típica de um thriller de ação, e foram realizadas de modo que o espectador pudesse ver claramente as tatuagens e símbolos das Maras estampadas nos corpos dos prisioneiros. Foi um grande show midiático para promover a imagem do Estado salvadorenho como vencedor da batalha contra as gangues. Na divulgação do vídeo, Bukeledeclarou: "Perguntavam: onde vão colocar tantos presos? Bem, agora já sabem".

 

Entretanto, as Maras desempenharam um papel importante para o governo de Bukele. Investigações em El Salvador e nos EUA, confirmaram que Bukele, junto ao diretor geral dos Centros Penais, Osiris Luna Meza, negociaram com os principais líderes das gangues com intuito de reduzir os índices de homicídio para melhorar a imagem do governo em troca de evitar extradições e outros benefícios para os membros das gangues encarcerados. Negociações estas iniciadas antes mesmo de Bukele se tornar presidente.

 

Após Bukele assumir o cargo presidencial em junho de 2019, um dos primeiros itens da sua agenda de governo foi a implementação da política de segurança denominada Plano de Controle Territorial. Essa política, em um primeiro momento, serviu para acobertar o pacto realizado com as Maras, nos mesmos moldes dos acordos de trégua realizados em 2012.  Enquanto o governo de Bukele creditava a redução das taxas de homicídio à sua política de segurança, nos bastidores ocorriam negociações entre governo e as gangues relativas a mudanças legislativas e judiciais, reduções de nas taxas carcerárias e sentenças que permitiram a liberação antecipada de líderes das Maras. Entre os acordos, estava o apoio das gangues aos candidatos do partido fundado por familiares e amigos de Bukele, o Nuevas Ideias, nas eleições de 2021 para o legislativo. O resultado foi uma vitória esmagadora do partido, de modo a deter mais de dois terços das cadeiras da Assembleia Legislativa, o que permitiu a Bukele afastar e bloquear quaisquer investigações a respeito de seus pactos secretos com as Maras.

 

Os detalhes do pacto de Bukele foram descobertos pelo jornal investigativo El Faro, que obteve cópias de centenas de relatórios de prisões confirmando dezenas de reuniões secretas entre funcionários do governo e líderes de gangues desde 2019, bem como relatórios de inteligência detalhando os resultados dos encontros. Representantes do Poder Executivo e do MS-13 concordaram com a redução de homicídios, privilégios prisionais e promessas de longo prazo vinculadas aos resultados das eleições do Congresso em 2021.

 

Esses documentos também sugerem que as negociações com as Maras foram consistentemente seguidas por picos de homicídios. O primeiro desses episódios ocorreu em abril de 2020, quando o MS-13 iniciou uma matança de cinco dias que deixou mais de 80 mortos. Em novembro de 2021, outra chacina resultou do assassinato de 46 pessoas. Nos dois episódios, o governo respondeu recrudescendo temporariamente as políticas de combate às gangues, dentro e fora das prisões.

 

Essas matanças são reflexos do primeiro pacto entre o governo e as gangues, uma vez que tais chacinas não consistem apenas em disputas territoriais entre as gangues, mas em esforços deliberados para conduzir negociações com o governo a seu favor, mostrando que podem desencadear uma violência imensa com a mesma facilidade que podem contê-las. A mais recente foi o massacre que ocorreu, entre 25 e 27 de março de 2022, que resultou no assassinato de 87 pessoas pela MS-13.

 

Em reportagem publicada no jornal salvadorenho El Faro, líderes da Mara revelaram que esse massacre foi uma resposta ao que consideraram uma "traição" do governo de Nayib Bukele, ao descumprir os acordos estabelecidos e por deixar de realizar negociações. O massacre reivindicado pela MS-13 ganhou notoriedade na mídia, e fez aumentar a pressão ao governo pela população. O resultado foi o rompimento do pacto que Bukele mantinha com as Maras e a implementação de um regime de emergência em 27 de março de 2022. Essa política de "guerra contra às gangues", resultou em mais de 65.000 pessoas presas e centenas de mortos dentro dos presídios. Todos esses fatores, dentre outros, fomentam o discurso da segurança pública e da defesa da sociedade, de ser necessário ampliar o combate à escalada da violência com políticas que endureçam o tratamento dos autores de tais atos tidos como "criminosos".

 

Apesar dos altos índices de prisões e mortes, segundo pesquisas realizadas em El Salvador, a popularidade de Bukele é de 90%. Muitos salvadorenhos declaram estar cientes das inúmeras pessoas presas e da violência massiva perpetrada pelos agentes do Estado. Entretanto, muitos falam que viver assim é melhor que sob o controle das gangues em seus respectivos bairros. Para grande parte da população, a preocupação maior é de que os "justos" paguem pelos "pecadores". Eis a moral punitiva presente na sociedade, que faz com que uma parcela se ache boa, normal, legalista enquanto a outra é vista como má, anormal, ilegal, degenerada, degradada. A normal encarcera no seu espelho o que lhe é insuportável.

 

ONGs e organizações de direitos humanos, como Human Rights Watch e a Cristosal, documentaram centenas de detenções, torturas e mortes enquanto pessoas estavam sob custódia do Estado entre março e novembro de 2022. Em dezembro, apresentaram um relatório conjunto intitulado "'Podemos deter quem quisermos': violações generalizadas dos direitos humanos durante o 'regime de exceção' em El Salvador". Esse relatório alerta sobre a falta de informações relativas à quantidade de pessoas presas no país, uma vez que todos os julgamentos relacionados ao regime foram declarados sob sigilo total.

 

O relatório enfatiza o que essas organizações entendem por "arbitrariedade" de muitas prisões realizadas durante o que chamam porregime de exceção. Apontam para a questão de que muitas pessoas foram presas pelos agentes de segurança do Estado sem a apresentação de uma ordem judicial ou de busca, uma vez que qualquer pessoa suspeita ou acusada de pertencer a uma Mara passa a ser alvo da polícia. O resultado dessa abordagem adotada pelo governo salvadorenho, foi que de março de 2022 até novembro do mesmo ano, a população carceraria aumentou de 39 mil para 95 mil pessoas detidas. Além disso, durante esse período, ao menos 90 pessoas foram mortas enquanto estavam sob custódia das forças de segurança do Estado, segundo informações do relatório.

 

O relatório também aborda recomendações ao governo salvadorenho e à chamada comunidade internacional a serem realizadas para a proteção do Estado de Direito e a preservação dos direitos humanos em El Salvador. Entre as recomendações a serem tomadas pelo governo de El Salvador, estão:

  • Formular e implementar uma nova política de segurança que respeite os direitos humanos e que seja eficaz no desmantelamento das gangues, incluindo ações penais estratégicas voltadas para o julgamento dos líderes das quadrilhas e a investigação dos chamados crimes violentos, bem como coibir extorsões, lavagem de dinheiro e contrabando de armas.

  • Ampliar políticas econômicas e educacionais voltadas as crianças e jovens, como os Centros Urbanos de Bem-estar e Oportunidades (CUBO), de modo a impedir que estes ingressem nas gangues.

  • Fim do regime de emergência.

  • Garantir que o desempenho das forças de segurança não seja medido em base ao número de prisões efetuadas ou quaisquer outros critérios que possam encorajar detenções arbitrárias pelas forças da segurança.

  • Acabar com a pratica de postar fotos de detidos nas redes digitais pelos agentes de segurança.

  • Tomar medidas imediatas para reduzir a superlotação prisional, incluindo a aplicação de medidas alternativas à detenção para pessoas idosas, com deficiência ou problemas de saúde pré-existentes, e outras medidas similares de restrição de liberdade.

  • Acabar com a detenção incomunicável de detidos.

  • Tomar medidas para o cumprimento das "Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos", de modo a incluir e garantir o acesso a cuidados médicos, alimentação, água e condições de higiene adequadas nas prisões segundo os critérios da ONU.

  • Assegurar que autoridades penitenciárias cumpram as decisões judiciais que ordenem a soltura dos detentos.

  • Permitir que organizações humanitárias internacionais e a Procuradoria Para a Defesa dos Direitos Humanos (PDDH) tenham acesso irrestrito às prisões, incluindo a realização de reuniões privadas e confidenciais com os detidos.

  • Acabar com práticas de assédio e estigmatização de jornalistas independentes e membros da sociedade civil, inclusive nas redes digitais.

  • Garantir que quaisquer negociações realizadas com as gangues ocorram de maneira transparente e inclusiva, e que priorize os direitos humanos, incluindo o direito ao acesso igualitário à justiça

  • Coordenar esforços com a Assembleia Legislativa para ratificar protocolos das Nações Unidas de defesa dos direitos humanos, como a "Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra Desaparecimentos Forçados", o "Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes", e o "Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres".

  • Cumprir integralmente a Lei de Acesso à Informação Pública de 2011, publicando informações de interesse público, como taxa de homicídios, informações sobre a implementação do "Plano de Controle Territorial" e população carcerária, e respondendo às solicitações de informações públicas de maneira oportuna e razoável.

  • Essas recomendações, medidas e reformas apontadas pelas entidades internacionais no relatório alimentam o jogo que transformou as prisões hoje em dia num grande "tema", "numa pauta importante", mas que não sinalizam para o óbvio: sem abolição do sistema penal, o que veremos será a renovação dos negócios, políticos e econômicos.


    Ignoram que a democracia criou a prisão moderna com trabalho, religião, moral e escravagismo. O discurso de democratização da prisão e defesa dos direitos humanos, não apenas contribui para a perpetuação da prisão na sociedade, como também se complementa com o discurso da segurança pública, que, embora pareçam contraditórios, ambos são movidos pela mesma lógica: a defesa da sociedade contra o perigo localizado, preferencialmente entre jovens pobres de zonas periféricas.


    Os discursos se unificam na constatação de que há uma escalada da violência que deve ser combatida, combinando assistência social, privada e estatal, e dura repressão, também privada e estatal. Ou seja, políticas públicas e filantropia pela sociedade civil.


    Esses discursos de defesa dos direitos humanos convergem na continuidade das prisões e em um instrumento necessário ao regime das penas, tornando a prisão mais tolerável às sensibilidades humanas que a ergueram. Esses direitos, instaurados e institucionalizados como valores universais, são defendidos por autoridades, personalidades e governos a despeito da continuidade dos dispositivos de exceção na democracia, das guerras planetárias circunscritas, da prática rotineira da tortura em delegacias, prisões e unidades de internação para jovens.
    Ao encarcerar nas prisões, seletivamente, os considerados "inimigos da sociedade", espera-se que os demais cidadãos, cumpram seus deveres, sigam as leis, paguem seus impostos e temam serem levados para dentro de seus muros. Permaneçam num ato contínuo de normalização do normal.


    Encarcera-se uma parcela da população para manter uma outra restante presa ao cumprimento de seus deveres de cidadão e de portadora de direitos inacabáveis, extraindo dessa relação lucros e conformismos. A prisão não recupera e nem reintegra, como querem seus defensores, e não pode ser melhorada, como almejam os reformadores. Eles bem sabem que a prisão é incapaz de ser melhorada e de reintegrar. Ela gera lucros, empregos úteis, garante a continuidade da servidão e dissemina o medo.

     

     

    R A D A R

     

    El Salvador inaugura maior prisão da América para 40 mil

     

    Thousands of El Salvador gang members moved to new 'mega prison'

     

    Regimen de Bukele desarticula a las pandillas en El Salvado


    Bukele Has Been Negotiating with MS-13 for a Reduction in Homicides and Electoral Support

     

    A história por trás da MS-13


    El Salvador's Gangs Send Message in Blood

     

    Funes acusa a pandilla Barrio 18 de haber roto la trégua

     

    Podemos deter quem quisermos': violações generalizadas dos direitos humanos durante o 'regime de exceção' em El Salvador


    El modelo Bukele: cuando el autoritarismo se vuelve popular

     

    Public Security Policy in El Salvador During the Presidency of Nayib Bukele (2017–2019)

     

    La tregua entre pandillas salvadoreñas hacia un proceso de construcción de paz social

     

    El país que entregó las cárceles a sus pandilleros

     

    Audio de Carlos Marroquín, revelan que massacre de marzo ocurrió por ruptura entre Gobierno y MS-13.

     

    El Salvador Gang Violence

     

    El Salvador Homicide Rate (2010 to 2023)

     

    Homicide in the Region of the Americas

     

    Violence info: El Salvador

     

    World Prision Brief

     


     

     

     

     


    O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

     

     

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