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observatório ecopolítica

ano V, n. 127-128, junho de 2023.

 

Histórias marcadas por conquistas



pacificações, demarcações e extermínios

 

O Estado brasileiro, como todo Estado, consolidou-se por meio do derramamento de sangue. Efetivou-se com sangue indígena, esbulho territorial, extermínio e escravidão. A “pacificação” dos povos indígenas nada mais foi do que uma estratégia utilizada pelos colonizadores e seu Estado e, mais tarde, pelo Estado nacional para tomar posse de seus territórios ancestrais.

 

Após o processo de independência, momento no qual o Estado brasileiro se concretizou, surgiram diversas propostas para integrar os povos indígenas em uma nova identidade nacional. Essas propostas foram apresentadas aos constituintes do recém-formado Império com o objetivo de catequizar e de civilizar os indígenas. Em um primeiro momento, essas iniciativas não avançaram, de modo que a Constituição do Brasil Imperial não abordou o tema e as questões referentes aos povos indígenas foram regulamentadas por meio de “avisos” executados pelas autoridades provinciais.

 

Pouco tempo depois, a lei de 27 de outubro de 1831 revogou parte da legislação colonial e caracterizou os povos indígenas como “órfãos”, sob tutela do Estado brasileiro. Esse momento marcou o início do chamado “poder tutelar”, que moldou a abordagem indigenista até a promulgação da Constituição de 1988. Os indígenas passaram a ser tratados como crianças indesejadas pelos invasores que tentaram civilizá-los. Ao lado da alegada proteção aos povos indígenas, ocorria uma política sangrenta com a finalidade de pacificar, ou seja, de sufocar todos os povos que se recusassem a se submeter à autoridade estatal.

 

A partir de 1840, o Regente Imperial Araújo Lima trouxe os missionários Capuchinos para o território brasileiro com o insistente objetivo de catequizar os povos indígenas. Isso levou à criação do decreto n. 246, nomeado como “Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios”, mais conhecido como “Regimento das Missões”. O propósito desse Regimento foi estabelecer a política oficial dos aldeamentos, concentrando os povos indígenas em áreas limitadas e reduzidas, especialmente ao sul do país. Essa medida tinha como intenção liberar as terras para a chegada dos colonos europeus e, ao mesmo tempo, pacificar os indígenas.

 

Em 18 de setembro de 1850, a Lei n. 601, conhecida como “Lei de Terras”, foi implementada e se tornou um dos principais instrumentos empregados pelo Estado para a espoliação das terras indígenas. Tendo como objetivo proteger os interesses econômicos dos latifundiários, essa lei determinava que as terras sem proprietários e que tampouco estavam sob os cuidados do Estado poderiam ser obtidas somente por meio da compra junto ao governo. A partir desse momento, vários documentos foram forjados com a finalidade de garantir e de ampliar o roubo das terras nas quais os povos indígenas viviam. Ao mesmo tempo, a política de aldeamentos implementada pelo Regulamento das Missões buscou reduzir, concentrar e controlar social, política e religiosamente os indígenas. Por meio de estratégias como a doação de bens e de alimentos, assim como a oferta de “proteção”, procurava-se atrair os indígenas e transformá-los em “aliados” dóceis. Muitos grupos resistiram e seguiram lutando contra o roubo das terras, inclusive contra os indígenas chamados de “mansos” pelas autoridades estatais. Entretanto, a estratégia de apropriar-se dos saberes e das práticas guerreiras dos povos indígenas e a sua coação de indígenas para lutar ao lado dos colonizadores foram, entre outras, as principais razões para a conquista das terras desses povos.

 

O fim do século XIX marcou uma política de extermínio revestida de caridade e de proteção. De um lado, estavam os indígenas denominados “mansos”, que recebiam alimentos e diversos bens ao aceitarem os aldeamentos perpetrados pelo Estado brasileiro. De outro lado, estavam os que resistiam frente às tentativas de pacificação, sendo brutalmente perseguidos, torturados e massacrados. Fazendeiros, com a cumplicidade dos governos locais, contratavam “bugreiros” e “batedores de mato”, que submetiam os povos indígenas da região Sul, chamados então de Botocudos (Xokleng) e Coroados (Kaingang), a verdadeiros morticínios. A política dos aldeamentos estabeleceu os alicerces de um modo de governo que segue vigente até hoje: os povos indígenas foram inseridos numa dinâmica de parasitismo em que sua força de trabalho passou a ser requisitada e explorada de forma mais sistemática com a finalidade de majorar as economias regionais e nacional, e sua força intelectual passará, a partir da segunda metade

do século XX, a ser sugada pelo saber ocidental enquanto alimentação, medicina e cosméticos alternativos. Esses fatores que objetivavam fortalecer o Estado em detrimento das formas de vida desses povos foram marcantes na virada do século XIX para o XX.

 

 

século XX

 

No começo do século XX, a política indigenista foi marcada pela criação de órgãos federais como o Serviço de Proteção do Índio (SPI) e, na segunda metade do século durante o governo civil-militar, com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), encarregados de regular, zelar e vigiar os povos indígenas, tornando-os trabalhadores a serviço do Estado e dependentes do próprio capitalismo.

 

Em 1910, foi criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), organizado pelo Marechal Cândido Rondon. O militar e sertanista, que hoje nomeia cidade no estado do Paraná, aeroporto no Mato Grosso, rodovia, bairros, ruas e prêmios, foi influenciado pelo positivismo de Auguste Comte acreditava na pacificação e na civilização dos povos indígenas como etapas necessárias para o fortalecimento do Estado. Nesse momento, amparados pelo governo, os indígenas eram considerados como “susceptíveis de progredir industrialmente”. A tarefa de “modernização” dos povos indígenas não poderia se realizar sem a incorporação de normas, valores e costumes inseridos em uma dinâmica política e econômica alheia às suas culturas e cosmovisões.

 

Devido à resistência levada adiante pelos Kaingang frente à colonização no sul do território brasileiro, muitos defendiam o extermínio dos indígenas rebeldes. Os seguidores da filosofia iluminista acreditavam na integração desses povos na sociedade nacional por meio de sua participação nas atividades produtivas. Esse discurso protecionista mobilizado pelo Estado funcionou como cortina de fumaça, de modo a esconder as formas de violência. Entre 1945 e 1988, ao menos 8.350 indígenas foram mortos em decorrência da ação de agentes governamentais ou privados, segundo o “Relatório da Comissão Nacional da Verdade” (CNV).

 

Nesse período, a atuação do SPI deixou marcas profundas nos corpos e nas subjetividades dos povos indígenas. Esses impactos ultrapassaram os limites da organização política, social e econômica, perdurando até os dias de hoje. Além disso, os funcionários do SPI utilizaram símbolos nacionais como o hino, o juramento à bandeira, a marcha de 7 de setembro e o uso de uniformes para impor a “brasilização” sobre os indígenas.

 

Em 1967, durante a ditadura civil-militar, o SPI foi extinto após a divulgação do Relatório Figueiredo, que averiguou matanças de comunidades inteiras, torturas e carnificinas praticadas contra indígenas — principalmente por latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Em seguida, a FUNAI foi fundada como novo órgão estatal indigenista.

 

Com o fim da ditadura civil-militar e a transição para a democracia, em 1988 foi instaurada a nova Constituição. Na democracia, o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas pela Constituição foi simultâneo às violências ligadas ao fortalecimento do capitalismo sob as noções de desenvolvimento econômico e modernização.

 

 

marco temporal

 

Nos últimos anos, as invasões nas Terras Indígenas (TI) por garimpeiros, madeireiros, fazendeiros e policiais ampliaram-se cada vez mais, e somaram-se com a crescente influência de igrejas evangélicas e a constante permanência do exército nos arredores. Os levantes indígenas voltados à recuperação de seus territórios, rituais e práticas ancestrais, por sua vez, provocaram respostas por parte da sociedade e do Estado, uma vez que concebem essas ações como ameaças aos vínculos econômicos preponderantes, além de colocarem em xeque séculos de colonização.

 

Ao mesmo tempo que grande parte do movimento indígena está organizado em torno da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e aspira à manutenção da demarcação de suas terras e à inclusão ao Estado, algumas aldeias se organizam local e regionalmente para defender e/ou recuperar suas terras, invadidas por garimpeiros, madeireiros, empresas de mineração e pelo agronegócio. Muitos povos indígenas, como os Kaingang, Mbya-Guarani, Guarani Kaiowá, Pataxó, Pataxó Hãhãhãe, Tupinambá, Tupinikim, Potiguara Munduruku, Kulina, Kaxinawá, Waiãpi e muitos outros, estão multiplicando as iniciativas de retomadas (recuperação territorial) e/ou autodemarcação.

 

O marco temporal (Recurso Extraordinário – n.º 1.017.365) é uma tese que determina que as terras dos povos indígenas só poderiam ser demarcadas caso estivessem ocupadas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Os povos Xokleng, Kaingang e Guarani da Terra Indígena Xokleng Laklaño, no estado de Santa Catarina, foram os focos desse processo. A Suprema Corte, em 2010, considerou o julgamento mencionado caso de Repercussão Geral, incidindo sobre todos os povos indígenas que vivem no país.

 

O marco temporal, evidentemente, ignora a espoliação histórica das terras indígenas, assim como a violência colonial, primordial para a formação e constituição do Estado brasileiro. Também ignora que esses indígenas vivem nestas terras antes mesmo da formação de qualquer autoridade estatal e do Poder Judiciário.

 

No âmbito do Judiciário, as discussões relativas ao marco temporal começaram em 2009, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Petição 3.388). O julgamento, ao mesmo tempo que reconheceu a demarcação das terras indígenas, impôs, naquele caso específico, condicionantes chamadas de “salvaguardas institucionais”, como o critério do marco temporal. Baseando-se nas 19 condicionantes desse julgamento, diversos instrumentos foram implementados para anular a demarcação de terras indígenas e expulsar comunidades inteiras.

 

Os setores interessados no marco temporal argumentam que a demarcação das terras indígenas interfere nos direitos individuais e em questões relacionadas à política de segurança nacional, à política ambiental, aos assuntos de interesse dos estados da federação e à exploração de recursos hídricos e minerais. Entretanto, com a aprovação do marco temporal, diversas TIs como a Yanomami, Munduruku e Kayapó, que foram diretamente afetadas nos últimos anos devido à exploração ilegal de garimpo, serão avaliadas de acordo com essa tese, colocando diversas localidades sob ameaça direta.

 

Atualmente, mais de dois mil indígenas de três povos, Xokleng, Guarani e Kaingang, residem na Terra Indígena Ibirama-Laklaño, com 37 mil hectares, à margem do rio Itajaí do Norte, em Santa Catarina. Esses povos resistiram a um processo brutal de massacre iniciado em meados do século passado. Foram quase exterminados em sua totalidade.

 

Além do aniquilamento de alguns subgrupos Xokleng e do confinamento dos resistentes em áreas determinadas, no início da década de 1950, a espiritualidade dos Xokleng sofreu com as empreitadas missionárias da Assembleia de Deus, que passaram a frequentar as aldeias. O resultado foi um acirrado processo de conversão ao pentecostalismo, reformulando as crenças e práticas ancestrais. O xamanismo foi deixando de ser praticado. Hoje, os líderes evangélicos Xokleng praticam um ritual chamado de des(possessão). Nele, os indígenas aplaudem, gritam, jogam-se no chão, pulam e imitam animais.

 

Na década de 1970, A TI-Ibirama foi em grande parte tragada pela construção de uma barragem que represou o rio Hercílio com a finalidade de conter as enchentes nas cidades industriais do baixo do Vale do Itajaí, como Ibirama, Indaial, Blumenau e Gaspar. O lago de contenção inundou cerca de 900 hectares de terra da TI, justamente onde ficavam as aldeias. Do início das obras, durante a ditadura civil-militar, até os dias de hoje, o Governo do Estado de Santa Catarina sequer apresentou um estudo relativo ao impacto ambiental da construção da barragem. Programas de mitigação ambiental tampouco foram finalizados.

 

As consequências foram devastadoras para os Kaingang e Xokleng: as áreas planas e boas para a agricultura foram drasticamente reduzidas, solapando o rio e produzindo cheias no inverno, além de inundar uma parcela significativa do território e de impor estiagem nas outras estações. A barragem e sua zona de impacto estão dentro dos 14 mil hectares remanescentes de todo o esbulho promovido no decorrer do século XX no território. Por fim, vários indígenas partiram das aldeias para viverem em cidades como Presidente Getúlio e Blumenau, trabalhando em malharias, frigoríficos e madeireiras, muitas vezes as mesmas que usufruem do desmatamento na TI.

 

Com a intensificação da exploração da madeira, a TI foi loteada entre famílias nucleares em "frentes" de exploração delimitadas. A comercialização da madeira privilegiou os comerciantes locais e vários funcionários da Funai, além dos Kaingang e mestiços (Kaingang-brancos). Somente em 1997, a Funai organizou uma equipe interdisciplinar para recuperar as áreas invadidas por madeireiras e estudar a possibilidade da redefinição dos limites da TI.

 

Segundo a cartilha divulgada pela APIB, com a aprovação do marco temporal, os povos indígenas isolados e de recente contato no território controlado pelo Estado brasileiro enfrentariam ameaças contínuas de grileiros e de empresários do agronegócio, uma vez que seria impossível comprovar sua presença nas terras onde habitam atualmente em 5 de outubro de 1988, o que inviabilizaria a demarcação de seus territórios. A cartilha também destaca que o Estado brasileiro ainda desconhece a existência de vários povos indígenas, havendo 115 registros da presença de indígenas isolados no Brasil, 86 ainda em processo de confirmação. Em caso de confirmações da existência desses povos, não haveria informações precisas quanto ao território ancestral ocupado por eles.

 

Entretanto, a cartilha ignora que os "isolados" permanecem vivos, justamente por escaparem dos radares do Estado e de suas tecnologias de monitoramento, de modo a permanecerem incógnitos, ingovernáveis e inclassificáveis, separados da sociedade e imunes a todas as formas de morte e de opressão geradas por esta forma de via estúpida e covarde.

 

 

a cilada

 

Ao longo dos séculos, os povos indígenas enfrentaram esbulho territorial e etnocídio implacáveis. Seus corpos foram e permanecem alvos de um extermínio contínuo, que persiste ao longo dos anos. A existência desses povos é mais antiga que o próprio Estado, e seus modos de vida se fortalecem justamente em oposição a ele. Quando se associam às forças do Estado, são assimilados pela burocracia, pelas identidades governamentais, pelas encenações burocráticas, pelo domínio do conhecimento científico, pelas estruturas de liderança ocidentalizadas.

 

A violência do Estado, da Igreja, do mercado e dos demais "civilizados" persiste há séculos contra os povos indígenas. Eles são, gradualmente, absorvidos pelos governos e reduzidos a povos resilientes, conforme a atual expectativa da ONU.

 

Muitos indígenas sabem que a questão não se resume apenas à terra, à proteção ambiental ou a outras questões similares que enfeitam as ONGs, os institutos e as fundações da sociedade civil organizada. Eles compreendem que não se trata de buscar protagonismo, aliança com brancos "civilizados" ou cargos institucionais de governo. Sabem que o racismo do projeto civilizatório, iniciado pelos colonizadores e perpetrado pelo Estado, segue em curso.

 

 

R A D. A. R

 

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

 

Xokleng, território e resistência

 

Povo Xokleng

 

Desalojados no próprio território: a Barragem Norte e o deslocamento forçado do povo Xokleng

 

Relatório da Comissão Nacional da Verdade

 

Processo colonial e luta indígena no território controlado pelo estado brasileiro

 

Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ

 

 

Projetos de lei


PL 490/2007 - Marco Temporal

 

PL 191/2020 - Mineração

 

PL 2633/2020 - Grilagem de Terras

 

Pl 510/2021 - Grilagem de Terras

 

PL 2159/2021 - Licenciamento ambiental

 

 

amazônia: a conquista de um “inimigo”


caça ao ouro negro

 

Na década de 1970, Werner Herzog filmou Fitzcarraldo no alto Amazonas. Em planos abertos apresentava a imensidão daquela terra e mostrou a trajetória do “conquistador do inútil”, Brian Fitzgerald – pronunciado como Fritzcarraldo pelos indígenas e que foi interpretado pelo ensandecido Klaus Kinski. Fitzcarraldo, amante da ópera, projetava construir uma casa de óperas em Iquitos. Para financiar seu sonho, investe no ouro negro da época, a borracha. Arrenda a terra que ainda não tinha sido explorada, mas que já havia sido apropriada pelo Estado peruano. Para chegar ao local, usa mão de obra indígena para atravessar seu barco a vapor de 320 toneladas de um rio para o outro, atravessando um morro lamacento. E segue-se a odisseia de Fitzcarraldo desbravando a imensidão de uma terra para concretizar seu sonho europeu em cima de sangue.

 

Não é de hoje que a Amazônia é alvo de cobiças, seja por parte de Estados estrangeiros, de companhias transnacionais ou do próprio Estado brasileiro. Desde meados do século XVII, foram realizadas sucessivas empreitadas com a finalidade de assegurar domínio sobre os recursos da região, como o cacau, as castanhas, a borracha e, mais tarde, o petróleo, considerado um dos motores necessários para a efetivação do chamado projeto nacional de desenvolvimento.

 

Durante o período do Estado Novo, a Amazônia passou a ser concebida enquanto uma zona cuja importância estratégica para o país não deveria ser ignorada, sobretudo devido à sua extensão geográfica. A Floresta Amazônica abarca, em sua totalidade, nove países: Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Suriname e Venezuela. A aspirada soberania nacional e a industrialização estariam condicionadas à conquista da localidade conhecida, alguns anos mais tarde, como “inferno verde”, termo utilizado em uma propaganda da empreiteira Andrade Gutierrez, em 1970.

 

Era mais uma, entre muitas outras, maneiras pelas quais empresas privadas e órgãos estatais designavam a Amazônia, considerada inimiga do processo de civilização do Brasil. Seria preciso civilizá-la, conquistá-la e, por fim, desfazer-se ou modular tudo o que fosse considerado estranho, “exótico”, “selvagem”.

 

Em um contexto marcado pela II Guerra Mundial, o ditador Getúlio Vargas, após idas e vindas, utilizou a região amazônica como objeto de negociação com os Estados Unidos. Em tempos de guerra, a borracha, também chamada de “ouro negro” – assim como o petróleo –, é imprescindível. E, como ocorreu entre as últimas décadas do século XIX e início do século XX, postos de recrutamento foram espalhados por diferentes zonas do país. O objetivo era recrutar um contingente elevado de pessoas e deslocá-las para os árduos trabalhos nos seringais da região amazônica. Conforme o acordo selado entre o ditador e os Aliados, seria necessário abastecer os batalhões que estavam no front, produzindo mais mortes e pauperismos inerentes às guerras entre Estados.

 

Essa foi uma das razões pelas quais o Brasil foi “contemplado” com a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), empresa financiada pelo Export-Import Bank of the United States (Ex-Im Bank) e cujas atividades foram iniciadas em 1946. Tornou-se, rapidamente, a maior produtora de aço no país, impulsionando, nos anos seguintes, a viabilização de outras grandes obras de infraestrutura, como a construção da capital Brasília. O aço, assim como o petróleo, era visto como importante motor para a viabilização do “Brasil do Futuro”, o “Brasil Moderno”.

 

Essa tese foi encampada por pessoas de diferentes segmentos da sociedade brasileira, como políticos, empresários, intelectuais. O escritor Monteiro Lobato, nomeado por Washington Luiz como adido comercial nos Estados Unidos, em 1927, mostrou-se impressionado com o modelo econômico estadunidense. Não hesitou em registrar suas impressões em “América”, obra publicada em 1932. Após a sua passagem pelo norte do continente americano, chamou a atenção para o fato de que o progresso do Brasil deveria estar vinculado ao aço e à extração de petróleo. Tornou-se um dos principais defensores da caça ao “ouro negro”, independentemente das diferenças em relação ao projeto encabeçado por Getúlio Vargas.

 

Posições como essas, evidentemente, ressoavam nos gabinetes palacianos. Isso apenas expõe que os interesses governamentais na Amazônia não estavam circunscritos à borracha. De acordo com um documento do Instituto Socioambiental intitulado Petróleo na Amazônia Brasileira, petróleo e gás foram encontrados nas proximidades do Rio Tapajós, em Itaituba, em 1925, no contexto de uma atividade do Serviços Geológicos e Mineralógicos do Brasil, entidade responsável pela prospecção de petróleo no país.

 

Essa descoberta não foi acidental e tampouco fruto do acaso, como alguns diriam. As tentativas voltadas à busca de mais um “ouro negro” iniciaram-se em pleno século XIX, por volta de 1864. Poucas décadas mais tarde, em 1897, foi encontrado o primeiro poço de petróleo no Brasil, em Bofete, no interior do estado de São Paulo. Os anseios voltados às buscas de novos poços proliferaram, sobretudo devido às transformações relativas ao trabalho industrial. Petróleo e borracha, os “ouros negros” capazes de alimentar o desenvolvimento da grande indústria nacional, tornaram-se objetos de cobiça no território brasileiro. Apenas duas décadas após a “primeira descoberta”, a Amazônia já não seria apenas alvo das grandes famílias que se apropriaram dos seringais ou das empresas internacionais – sobretudo inglesas – que se dedicavam à exportação da matéria-prima no final do século XIX. O Estado brasileiro não demoraria muito para colocá-la no radar da campanha “O petróleo é nosso”, independentemente dos desdobramentos relativos às vidas que habitavam e habitam a região, humanas ou não.

 

Em 1950, Vargas foi eleito Presidente da República. Foi o momento em que houve uma mudança em relação às políticas adotadas anteriormente, como o Decreto-Lei 3.236, instaurado em 1941. O decreto liberou inúmeras concessões à iniciativa privada, permitindo-a instalar refinarias próprias, a importar derivados de petróleo e a contratar empresas dedicadas ao fornecimento de óleo bruto. Com o fim da II Guerra e atenuadas as necessidades em atender às exigências dos Aliados, os pronunciamentos do ditador, aos poucos, adquiriram tons ainda mais nacionalistas, enfatizando maior presença do controle estatal sobre o petróleo.

 

Quatro anos mais tarde, em 1954, foi fundada a Petrobrás, a maior empresa brasileira. No ano anterior, contudo, o Conselho Nacional de Petróleo já iniciara pesquisas relativas à presença de “ouro negro” na Amazônia e perfurado 15 poços na região. Nada encontrou, mas a caça ao petróleo nas terras amazônicas persistiu nas décadas posteriores.

 

Sabe-se que a descoberta de novos poços de petróleo na Amazônia foi uma prioridade da Petrobrás desde a sua fundação. Isso, inclusive, foi reiterado pelo estadunidense Walter Link, geólogo-chefe da companhia naquele período. Ele enfatizava que, cedo ou tarde, novos poços seriam descobertos, uma vez que se tratava de uma das maiores bacias sedimentares do Brasil. Era apenas uma questão de tempo. No ano seguinte, após sucessivas empreitadas e perfurações, funcionários da empresa encontraram petróleo em Nova Olinda, região que se tornou alvo de novas prospecções nas décadas posteriores, como em 1969 e 1973.

 

Ao longo de anos, perfurações “no escuro”, meras apostas, foram perpetradas na Amazônia. Aliada aos desmatamentos provocados pela construção de grandes projetos de infraestrutura, como a inauguração da Rodovia Transamazônica, em 1972, a busca por petróleo agudizou a devastação e a contaminação dos rios nas terras amazônicas, alvos de contínuas perfurações por parte da burocracia da maior companhia nacional.

 

Esses empreendimentos contaram com o apoio da Funai. Em 1984, por exemplo, o órgão assinou um convênio com a Petrobrás com a finalidade de regulamentar os critérios para a realização de perfurações nos locais habitados pelos povos indígenas da região, oferecendo, inclusive, apoio às esquipes da companhia petrolífera. Isso possibilitou a exploração de rios como o Jataí, o Jandiatuba e Itacoaí, cujos desdobramentos incidiram nas terras nas quais os Canamari, os Tsuhum Djapá e os Korubu viviam, além de outras localidades habitadas por indígenas isolados.

 

A conquista do “ouro negro”, além de proporcionar rendimentos ao Estado brasileiro e às eventuais empresas envolvidas na sua extração, foi um meio a partir do qual as autoridades estatais, em conjunto com os sertanistas, foram capazes de interferir nas vidas dos povos que, todavia, estavam isolados. Vidas que, até aquele momento, encontravam-se apartadas do pauperismo provocado pelos projetos civilizatórios na Amazônia.

 

A segunda metade do século XX, no Brasil, é mais uma – em meio a tantas outras na história do país – explicitação acerca dos desdobramentos relativos ao que se convencionou chamar de modernização, de progresso, de civilização. A destruição das formas de vida apartadas da sociedade industrial foi um meio a partir do qual a indústria foi, aos poucos, adquirindo maior presença nos percentuais do PIB. O Brasil urbano e industrial, autointitulado o “país do futuro”, foi possível devido a negócios como os mencionados e a tantos outros inumeráveis.

 

Ainda hoje, sons ardilosos em busca do “ouro negro” ressoam nas terras amazônicas e em seus rios.

 

 

“redescobrindo” a foz do amazonas

 

Os anseios desenvolvimentistas atravessaram as décadas. Não estiveram e tampouco estão circunscritos a um governo específico. São, ao contrário, motores inerentes à conformação da indústria brasileira ao longo do século XX, cujo processo continua sendo enaltecido e levado adiante pelas distintas coalizões de governo, independentemente das colorações partidárias. Em relação à “Frente Ampla” que se encontra à frente do governo do Estado, portanto, não é diferente.

 

Desde meados do mês de maio de 2023, a bacia da foz do Amazonas voltou a se tornar alvo das investidas governamentais voltadas à perfuração de novos poços de petróleo. Afinal, as buscas pelo “ouro negro” na bacia também atravessam as décadas. Situada entre o litoral do Estado do Amapá, em parte do Pará e estendendo-se para a fronteira com a Guiana-Francesa, constata-se que as primeiras pesquisas realizadas na região datam de 1963, momento no qual foram iniciadas as primeiras buscas por hidrocarbonetos. Não demorou muito para que companhias de outros Estados, sobretudo estadunidenses e europeias, ingressassem em mais uma empreitada estimulada pela Petrobrás.

 

Ao longo das décadas de 1970 e 1980, foram assinados inúmeros acordos com a finalidade de explorar a bacia da foz do Amazonas. Empresas como Shell e a britânica BP, por exemplo, foram as responsáveis pela perfuração de dezenas de poços de petróleo. Desde então, 95 poços foram perfurados na região. A exploração agudizou-se a partir de 1997, período marcado, entre outras coisas, pela formalização da Lei do Petróleo e pela criação da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Isso possibilitou a efetivação de novos empreendimentos levados adiante pelas companhias petrolíferas, cujos benefícios foram concedidos por meio de sucessivas licitações ao longo do final do século XX e de parte do século XXI. A hesitação em se apropriar dos recursos oriundos da terra, como não poderia ser diferente, é nula.

 

Mais uma vez, a retomada de análises relativas às disputas descritas dissolve as retóricas fundamentadas na premissa segundo a qual “o petróleo é nosso”. Seja sob o controle estatal ou sob a tutela de companhias estrangeiras, o “ouro negro”, quando encontrado, tornou-se propriedade de terceiros, estatais ou privados. O curioso é que, ao longo dos anos, os resultados não foram capazes de satisfazer, integralmente, as empresas dedicadas à sua descoberta na bacia da foz do Amazonas.

 

As inúmeras iniciativas mencionadas estiveram marcadas por dificuldades em relação às maneiras pelas quais a exploração foi operacionalizada. Dos 95 poços perfurados desde a década de 1970, 31 foram abandonados. As “realizações” perpetradas pelos funcionários da Petrobrás, em conjunto com empresas estrangeiras em inúmeras concessões, estiveram circunscritas a uma descoberta de gás natural. Na década de 1980, os resultados descritos levaram ao abandono das operacionalizações na bacia da foz do Amazonas, sobretudo devido à descoberta de uma nova fonte de “ouro negro”: a bacia de Campos, situada no litoral do Rio de Janeiro.

 

A desistência das explorações, no entanto, não perdurou durante muito tempo. Os tímidos resultados não foram e tampouco são capazes de conter os ímpetos voltados ao crescimento econômico, ideia fixa que norteia os projetos governamentais nos diferentes Estados do planeta, ditatoriais ou democráticos. No Brasil, não foi e não é diferente.

 

As ambições que, no período da ditadura civil-militar, norteavam os empreendimentos voltados à extração de petróleo na bacia da foz do Amazonas ressoam na atual composição de forças no governo. Isso se deve, entre outras coisas, ao fato de que, no último ano, houve um exponencial aumento no número de projetos de exploração de “ouro negro” em diferentes países do planeta. Os EUA, para além da liberação de créditos para a chamada indústria renovável, aprovaram, no início do ano, um grande projeto com a finalidade de levar adiante a exploração petróleo no Alasca: o Willow, empreendimento cujos custos são superiores a US$ 8 bilhões.

 

Outros Estados, como Noruega, Catar, Guiana, Uganda etc., também impulsionam grandes empreendimentos. A competividade foi fomentada devido à rápida elevação dos preços do barril de petróleo no mercado internacional – que, recentemente, diminuíram por conta do aumento da demanda chinesa –, principalmente após a eclosão da Guerra da Ucrânia. Muitos países conhecidos como nações em desenvolvimento recorreram, reiteradamente, às antigas teses relativas à importância do “ouro negro” para a sofisticação da indústria em seus respectivos territórios. Criticam as exigências que provêm dos chamados países em desenvolvimento a respeito das necessidades de redução da emissão de gases de efeito estufa, sublinhando que os esforços devem ser compartilhados entre todos os Estados, principalmente os desenvolvidos.

 

Para além das retóricas dicotômicas centradas em noções como Norte global e Sul global, constata-se que o extrativismo e a busca pela efetivação do progresso civilizatório estão presentes nos horizontes, seja dos países desenvolvidos ou das nações em desenvolvimento. São inerentes ao Estado e à propriedade.

 

Os desdobramentos da recente caça ao “ouro negro” também podem ser constatados nos balanços da Petrobrás, cujo orçamento, em 2022, atingiu o maior lucro da história de todas as empresas brasileiras: R$ 188,3 bilhões. Alinhado a isso, os ambiciosos empreendimentos realizados na vizinha Guiana chamaram atenção dos governantes brasileiros e da direção da companhia petrolífera.

 

No início de 2019, após uma série de pesquisas realizadas pela empresa estadunidense ExxonMobil, grandes reservas de petróleo foram descobertas a mais de 150 km da costa da Guiana, nas proximidades da Margem Equatorial, localizada entre o litoral do Rio Grande do Norte e do Pará. O empreendimento, como não poderia ser diferente, despertou o interesse dos conglomerados que investem no mercado petrolífero. Estima-se, de acordo com informações levantadas desde 2015 pela ExxonMobil, que o pequeno Estado sul-americano conte com mais de 5 bilhões de barris de “ouro negro”. Não à toa, até o momento, a empresa já aprovou seis plataformas de produção, podendo extrair, até meados de 2027, aproximadamente 1,2 milhão de barris diários.

 

Os interesses voltados aos investimentos na região movimentam empresas de países como o Reino Unido, os Estados Unidos, a China, o Japão, Portugal, a França e, também, o Brasil, cujas pretensões voltadas à exploração da bacia da foz do Amazonas, bacia sedimentar que integra a Margem Equatorial, vieram novamente à tona. Outras bacias, como a do Pará-Maranhão, também estão nos planos de investimento da Petrobrás, uma vez que as estimativas relacionadas ao número de barris de petróleo na zona – 30 bilhões de barris – são atrativas para os que aspiram a lucrar com o “ouro negro”.

 

No mês de maio, a Petrobrás solicitou ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) a autorização para perfuração de um poço de petróleo na bacia da foz do Amazonas, cuja finalidade é verificar a presença de “ouro negro” na localidade. O órgão, no entanto, não acatou ao pedido da companhia, de modo a enfatizar que o empreendimento pode colocar em risco a existência de múltiplas espécies que habitam a região, chamando a atenção para as dificuldades logísticas que afetam quaisquer obras dessa envergadura.

 

Os investimentos na Margem Equatorial são vistos, no interior da composição de forças do governo, como alternativas às explorações nas bacias do “antigo” pré-sal – como a de Santos e a de Campos –, cuja tendência, para os próximos anos, é a redução do abastecimento. Seria, dessa maneira, necessário deflagrar operações nas cinco bacias que compõem a Margem Equatorial, chamada por muitos de “novo pré-sal”.

 

Corroborando com teses que preponderavam e continuam preponderando no Brasil, a Petrobrás emitiu uma nota enfatizando, entre outras coisas, que pretende destinar “quase US$ 3 bilhões na campanha exploratória nas bacias da Margem Equatorial brasileira, incluindo a perfuração prevista de 16 poços com o objetivo de identificar novas acumulações de petróleo e/ou gás natural”. Além disso, salienta que irá recorrer da decisão.

 

Isso levou à deflagração de novas negociações no interior da composição de forças de governo. Enquanto alguns dizem ser necessário liberalizar o quanto antes o programa de investimentos da Petrobrás, outros, próximos ao ativismo ambientalista, exigem mais estudos, mais fiscalização, mais informações. Enfim, restringem-se a exigir, assim como o Ibama, a realização de Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), cuja finalidade é averiguar “melhor” os possíveis desdobramentos da exploração do “novo pré-sal”.

 

Em meio às negociações entre os diferentes segmentos que compõem a “Frente Ampla”, busca-se maior moderação nos projetos levados adiante. Nada mais. Desde o final do século XIX, a busca pelo “ouro negro” é constitutiva dos anseios civilizatórios que visam à modernização do Brasil. As vidas que habitam o “inferno verde” foram e continuam sendo alvos das cobiças do Estado brasileiro e de seus sócios estrangeiros, seja na Era Vargas, na ditadura civil-militar ou em pleno regime democrático, com governos de esquerda ou de direita.

 

A corrida pelo “ouro negro” continua...

 

 

R A D. A. R

 

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