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observatório ecopolítica

ano I, n. 15, julho, 2016.

 

segurança e drogas 2

uma questão


O Nu-Sol, em seu verbete abolicionista sobre “criminalização”, afirmou: “condutas são criminalizadas segundo as repercussões que provocam numa determinada época. Por isso mesmo, diz-se que a conduta criminalizada hoje pode ser descriminalizada amanhã”.


Em tempos de discussão acerca da legalização da maconha no Brasil, vale retomar um pouco da história de sua proibição da planta no país. Ninguém sabe ao certo como o bangue, a diamba, a liamba, o fumo de angola, chegou por aqui.


Boa parte dos historiadores conclui que a planta aportou com os homens e mulheres, sequestrados na África, para trabalhar aqui como escravos. Segundo outros, ela desembarcou antes, com as caravelas de Cabral, visto que, na época, as velas e cordas dos grandes navios, assim como as folhas dos livros, eram fabricadas com o cânhamo.


Documentos comprovam que durante o século XVI, a coroa portuguesa estimulou plantações na colônia visando a construção e o fortalecimento de sua frota naval.


Por fim, há quem certifique, ainda no século XIX, a rainha Carlota Joaquina de Bourbon como uma ativa maconheira.


Fortuito ou não, no ano em que ela morreu (1830), a Câmara Municipal do Rio de Janeiro proibiu a venda e o consumo do pito de pango. Esta lei expõe uma mudança decisiva. Na primeira metade do século XIX, a erva, até então consumida livremente, foi subtraída com uma razão específica: sua identificação, pela polícia, com homens e mulheres pretos, considerados perigosos.


Direto do Rio de Janeiro, capital imperial, a primeira lei de combate à cannabis do planeta explicitava sem dissimulação o seu alvo. Enquanto vendedores do pango pagavam multa de vinte mil réis, escravos flagrados com o fumo eram condenados a três dias de prisão.


Décadas mais tarde, dois anos após a abolição da escravidão e somente um após a proclamação da República, a criação da “Seção de entorpecentes tóxicos e mistificação” (1890) escancarou que, para além do Império, a relação estabelecida pelo Estado entre práticas afirmadas por ex-escravos e substâncias identificadas como nocivas não somente seguiria intocada, como passaria a ser balizada por pesquisas de psiquiatras brasileiros discípulos de Cesare Lombroso.


Enquanto, nas primeiras décadas do século passado, oligarcas fumavam ópio, “hábito elegante”, em lugares restritos, agentes da ordem no Brasil, intensificavam a campanha de combate à maconha. E assim, nos anos 1920, concomitante à caça aos anarquistas, durante o governo de Arthur Bernardes, o representante brasileiro na II Conferência Internacional do Ópio (1925), Pedro Pernambuco Filho, incluiu a maconha no rol das substâncias a serem combatidas pelos governos pertencentes à Liga das Nações, declarando ser ela “mais perigosa que o ópio”. O mesmo ópio que enriquecera a Inglaterra na sua expansão para o Oriente no século anterior, e que agora era maldito pelo puritanismo estadunidense, obviamente relacionado com os povos imigrantes que aquela “terra de liberdades” acolhia de modo moralizador.


Como se pode constatar, desde o século XIX, depois de muito tempo de uso livre, o Brasil, visando conter homens e mulheres pretos identificados como perigosos, tornou-se pioneiro da política planetária refratária à cannabis sativa.


A partir dos anos 1960 e 1970, durante a ditadura civil-militar, responsável pela Lei de Tóxicos (1976), certos jovens adeptos da erva como invenção de outros costumes seguiram também traçados como perigosos. E assim permanece até hoje, apesar dos debates acerca de sua legalização, descriminalização ou usos medicinais.


Ainda no presente, como cantou o poeta, chamam de ladrão, bicha, maconheiro, aquele que é diferente. Por isto, mais do que legalizar, isto é, fazer com que o Estado regulamente o uso, é preciso liberar de vez a maconha do Estado. Somente assim, outras histórias, mais livres, poderão irromper.


Em tempo 1: as leis só existem depois que costumes foram assimilados; as leis desaparecem quando costumes arruínam o pensamento legal e normalizador.


Em tempo 2: a que se deve a legalização, ainda que parcial, em outros países da América do Sul? Seguramente, o uso da maconha ali não está relacionado com pretos.






R A D.A.R


Second Opium Conference (League of Nations), 1925.
http://www.worldlii.org/int/other/LNTSer/1928/231.html


Criminalização: verbete Nu-Sol.
http://www.nu-sol.org/verbetes/index.php?id=14


Manifesto da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) contra a legalização da maconha.
http://www.abp.org.br/manifesto/manifesto.pdf


ABP. Diretrizes para um modelo de atenção integral em saúde mental no Brasil. Rio de Janeiro: ABP/Associação Médica Brasileira/Conselho Federal de Medicina/Federação Nacional dos Médicos/Sociedade Brasileira de Neuropsicologia, 2014.
http://www.abpbrasil.org.br/diretrizes_final.pdf


Centro Cultural da Saúde (CCS)/ Ministério da Saúde/SUS. Mostra Memória da loucura (história da psiquiatria no Brasil).
http://www.ccs.saude.gov.br/memoria%20da%20loucura/mostra/retratos06.html


Émile Armand. El anarquismo Individualista como vida y actividade. 1907. Disponível em:
http://es.theanarchistlibrary.org/library/emile-armand-el-anarquismo-individualista-como-vida-y-actividad


governar o ingovernável ?
http://www.globalcommissionondrugs.org/reports/war-on-drugs/


 

governar o ingovernável ?


Hoje, avoluma-se a insistência, bem velha, de que a maconha provoca esquizofrenia. A esquizofrenia como qualquer outra doença mental ou mais recentemente repaginada como transtorno mental, nada mais é do que uma construção histórico-política, como mostra o Manifesto contra a legalização da Maconha da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) de 2014. A psiquiatria tudo quer perscrutar. Arroga-se ter descoberto o inacessível: a loucura.


A psiquiatria nada mais fez, desde o século XIX, do que transformar a loucura em doença mental como meio de se firmar como ciência, garantindo sua vida putrefata enquanto verdade científica que jamais se apartou e jamais se apartará de outra vida carnífice, a do Estado.


No início da década de 1840 era criado no Brasil, por decreto do Imperador, na cidade do Rio de Janeiro, o Hospício D. Pedro II, também conhecido Palácio dos Loucos. Na mesma década, o cientista, médico, botânico e antropólogo Carl Von Martius, que aportara aqui com a Missão Austríaca, escreveu um dos primeiros tratados sobre a doença mental dos indígenas no Brasil a partir do que ele nomeia de licantropia, descrevendo-a como “o delírio de ser lobo”. Encontrava-se, ali, um dos inúmeros marcos iniciais do exercício histórico-político da psiquiatria no país, incidindo sobre povos considerados selvagens e inferiores, quando ela ainda não tinha sido batizada com esse nome e era conhecida como prática dos alienistas.


Hoje, o que denominam de tráfico de drogas nada mais é do que o reconhecimento de que não há capitalismo sem ilegalismos e de que o tráfico, de coisas e pessoas, foi e é um dos baixos começos da condição indispensável da vida capitalista e da vida do Estado, pois foi assim também que se criou isto que se chama Estado, e o que se chama Brasil.


Não é fortuito que a planta da maconha, que viria a ser denominada mais tarde pela psiquiatria de “planta da loucura”, intitulada cientificamente de cannabis, tenha sido inicialmente chamada de “fumo de angola”, trazida da África por meio do tráfico negreiro, pelos corpos comprados, vendidos, aprisionados, torturados, espancados, devastados. Ou, como diz a canção, que noite mais funda calunga no porão de um navio negreiro, que viagem mais longa candonga ouvindo o batuque das ondas do mar no fundo do cativeiro. Depois diriam que foram os negros que disseminaram a maconha entre os índios.


Entretanto, o que a indissociabilidade histórica entre o mercado legal, o ilegal e os ilegalismos que os governam mostram é que o tráfico e os traficantes foram indispensáveis para a existência do Estado, e para o capitalismo se firmar e perdurar. E não é de se esquecer que o Brasil foi o último país no planeta a abolir a escravidão. Mas ela não foi abolida pelo decreto da lei; a resistência guerreira daqueles pretos ou quase pretos ou quase brancos foi vital para este acontecimento.


E como continua aquela mesma canção, que noite mais funda calunga... vou baixar no seu terreiro, epa raio, machado trovão, epa justiça de guerreiro. Da mesma maneira que escravidão foi abolida, é possível sim abolir não só o proibicionismo, como também as prisões e o próprio direito penal.


Mas só isso não basta, é preciso ruir com essa fixação na vontade moral que cerca os nossos costumes em torno da questão das drogas, assim como encarar que a abolição do castigo começa pelo seu desaparecimento no corpo de cada um. E, como diz uma outra canção, você pode fumar baseado, baseado em que você pode fazer quase tudo.


 

outra questão


Não são poucos os usos de substâncias chamadas ilícitas. E estes usos também seguem a regra geral dos ilegalismos. Substâncias ainda desconhecidas pelo ranking internacional da gestão das drogas são utilizadas em variados expedientes competitivos. O mais visível deles é o esporte. Também não é nada invisível que, após certas substâncias entrarem para o rol do dopping, em pouco tempo se tornam legais devido ao aparecimento de outras mais eficientes. Até recentemente, o café era proibido aos atletas olímpicos, até que certa convenção sobre dosagens concluiu que um quinhão não é mais prejudicial, mas apresenta resultados atléticos competitivos mais do que satisfatórios. Enfim, isso não é mera curiosidade.


Entretanto, sobressai não haver pronunciamentos a respeito dos usos medicinais recomendados, inclusive por pediatras, de certas drogas para inibir comportamentos indesejáveis de crianças, também conhecidos como transtornos. As drogas normalizadoras, ou melhor, as substâncias normalizadoras não produzem dopping, mas conduta respeitável e esperada, respectivamente, de pais e crianças; assim como serviços médicos administram estas substâncias em trabalhadores rurais e em empreendedores urbanos metamorfoseados em capital humano.


A questão das drogas é muito menos ou quase nada de crença puritana, moral convencional, produtividade competitiva, saber psiquiátrico, efeitos de tráfico de gentes e colonizações, movimentos por legalização desta ou daquela droga. Em nossas culturas, do oriente ao ocidente, desconhece-se qual não experimenta estados alterados de consciência.


O que não se desconhece é como se governam as drogas por Estados, governos e sociedades civis organizadas ou não em função de um comando superior. Se a medicina é quem sabe, em parceria com a psiquiatria, dizer o que é bom para a saúde, elas, antes de pretenderem curar com suas posologias genéricas, deveriam se dedicar a decifrar as posologias, quando necessárias, para a boa saúde de qualquer um, ou seja, antes de governar moralmente as pessoas, serem utensílios do governo de cada um.





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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