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observatório ecopolítica

ano I, n. 20, outubro, 2016.

 

Marte à vista!


Há praticamente um mês das eleições que decidirão seu sucessor, o presidente Barack Obama anunciou o próximo “salto” dos EUA na expansão para o sideral: “enviar humanos a Marte na década de 2030 e trazê-los de volta à Terra com segurança, com o objetivo final de um dia lá permanecer por um tempo maior”. A declaração do presidente consta de artigo publicado no site da emissora CNN, no qual fez um breve balanço dos investimentos de sua gestão no programa espacial estadunidense, destacando principalmente a atuação de sua administração para promover inovação tecnológica na NASA e para abrir caminho para exploração privada do setor espacial. Além de indicar o rumo ao planeta vermelho, Obama reforçou que a viagem a Marte requer “continuada cooperação entre governo e inovadores da iniciativa privada”.


Não se trata da primeira oportunidade em que Obama tocou no assunto Marte. A convicção nas palavras do presidente destoa completamente da ocasião em que, em abril de 2010, ainda sob os efeitos de restrição orçamentária provocada pela crise financeira de 2008, apresentou a política espacial de seu governo para a NASA. Naquele momento, Obama decidira cancelar o programa Constellation, idealizado pelo ex-presidente George W. Bush com o objetivo de voltar à Lua até 2020. De forma reticente, disse que “esperava” enviar astronautas a Marte até meados da década de 2030. A restruturação quase completa do programa voltado para a construção de novos foguetes e naves para viagens no espaço sideral sugeria que viagens à Lua e a Marte seriam completamente retiradas dos projetos da NASA. Com a aposentadoria dos ônibus espaciais, também anunciada na mesma ocasião, a agência espacial passou inclusive a depender da contratação de empresas para levar seus astronautas e abastecer a Estação Espacial Internacional (EEI), projeto que os EUA pretendem manter até 2024. Nos anos que se seguiram, acorreram as primeiras empresas privadas que ganharam editais voltados para a prestação de serviço de transporte de carga na baixa órbita. Uma das empresas empreendedoras que aproveitou a brecha aberta pela privatização do transporte de cargas para a EEI foi a Space X, sediada na Califórnia, que se notabilizou por ter realizado em 2012 o primeiro voo privado de reabastecimento à estação espacial.


No atual anúncio da viagem a Marte por Obama ressoaram palavras de outro presidente democrata. Em 1961, John F. Kennedy utilizou uma construção sintática muito parecida com a empregada por Obama para assumir o compromisso de enviar astronautas à Lua, até ao final daquela década. Em um momento quase desesperado, Kennedy desejava mostrar aos soviéticos e ao planeta que, embora estivessem perdendo a chamada corrida espacial, os EUA ainda estavam no páreo.


A URSS teve êxito e disparou na frente dos EUA em quase todas as etapas da expansão para o sideral impulsionada pela chamada Guerra Fria. Foi a primeira a colocar um satélite artificial ao redor da Terra; a lançar no espaço seres vivos, dentre eles o primeiro humano; registrar uma foto do lado escuro da lua; construir uma estação espacial... porém, nunca conseguiu levar seus cosmonautas à Lua, feito que se restringiu à lista de conquistas estadunidenses na corrida espacial. O projeto soviético de viagem à Lua contou com a construção do super foguete N1 e das cápsulas Soyus, estas últimas utilizadas até hoje pelos russos para o transporte de cargas e astronautas (incluindo turistas espaciais) na baixa órbita terrestre. Falhas com o N1 e a morte inesperada do chefe do programa espacial soviético Sergei Korolev impediram a ida de cosmonautas à Lua. O Estado negou que tenha algum dia elaborado tal projeto, mas fotos dos satélites espiões dos EUA comprovam que todas estas tecnologias espaciais foram desenvolvidas e acabaram sendo reutilizadas para outros fins que não a viagem à Lua.


A chamada Guerra Fria e a URSS não sobreviveram ao século XXI. Nem mesmo a Rússia, hoje em dia, pode ser considerada ameaça à primazia estadunidense no campo espacial. Embora tenha herdado a maior parte do programa espacial soviético, a Rússia não possui condições tecnológicas e tão pouco econômicas para bancar viagens a Marte. Todavia, não lhe parece faltar intenção de “conquistar” Marte. Um suposto plano da agência espacial russa Roscosmos de enviar missões tripuladas a Marte vazou na imprensa em meados 2012. A agência espacial russa previa a construção de uma base em Marte para exploração dos recursos naturais do planeta até o ano de 2050. Antes disso, porém, o plano programava a modernização de foguetes e espaçonaves para 2020, o envio de robôs para coleta de amostras do solo marciano e a realização de missão tripulada à Lua na década de 2030.

 

Potências técnicas, humanas e políticas


A viagem a Marte requer novos equipamentos. Está em fase de testes a espaçonave Orion (Orion Multi-Purpose Crew Vehicle), baseada no projeto de nave do antigo Programa Constelattion. O primeiro teste não-tripulado da Orion ocorreu em 5 de dezembro de 2014. Ela foi lançada com o foguete Delta Heavy, porém, a NASA está na fase de construção dos veículos lançadores Space Launch System (SLS), especialmente projetados para as missões no espaço profundo.


No final do ano passado, a NASA procurou um modo mais técnico de divulgar o seu programa de viagem a Marte, mostrando passo a passo como planeja executá-la aproveitando os recursos que já dispõe. No informe “Jornada a Marte”, a agência apresenta os três estágios que prevê cumprir para chegar a Marte, tendo como base a experiência de exploração robótica que acumulou durante décadas com o envio de sondas e rovers ao planeta vermelho. São anos de testes para conhecer o solo, a atmosfera, a incidência de radiação e outros dados coletados pelos robôs que servirão de base para atender às necessidades de sobrevivência humana colocadas pelo encargo. Embora as missões não tripuladas realizadas até hoje exigem de 250 a 350 dias para chegar até o planeta, a NASA trabalha com o montante de 1.100 dias para a execução de uma missão tripulada a Marte, contando com ida, volta e um possível período de permanência.


Segundo o informe “Jornada a Marte”, encontramo-nos atualmente no estágio da exploração espacial denominado pela NASA de “Terra Dependente” (Earth Reliant) que deverá se estender até meados da década de 2020. Este estágio inicial se baseia sobretudo em experiências realizadas a bordo da EEI para estudar a reação do corpo humano ao ambiente inóspito do espaço, no qual se é submetido a altos índices de radiação e à microgravidade.


Para chegar a Marte, os astronautas deverão usufruir de boas condições físicas, pois precisarão se dedicar a longos períodos de trabalho para obterem sucesso na missão. Foi com este objetivo que recentemente o astronauta Scott Kelly e o cosmonauta Mikhail Kornienko passaram 340 dias abordo da EEI, batendo o recorde de permanência humana na órbita terrestre. Os efeitos psicológicos e para a mente da tripulação no ambiente espacial da tripulação também são motivo de alerta para a NASA e foram objeto de estudo em uma recente experiência de isolamento de seis tripulantes pelo período de um ano em um local remoto do Havaí. O experimento mostrou que além do isolamento, do convívio forçado com as mesmas pessoas que resultou em conflitos, a monotonia é outro fator de preocupação. Outra pesquisa realizada por cientistas da Universidade da Califórnia, em parceria com a NASA, sobre possíveis efeitos da viagem para o cérebro humano aponta que, devido ao longo período de exposição à intensa radiação, os astronautas sofrerão danos neurológicos permanentes. Com isto, suas performances, capacidade de decisão e memória de reconhecimento poderão ser afetadas, o que poderá causar transtornos relacionados à ansiedade e à depressão. Um temor suplementar dos cientistas é que estes danos neurológicos também prejudiquem o chamado sistema de “extinção do medo”, responsável por suprimir as memórias traumáticas e desagradáveis de um indivíduo.


O segundo estágio previsto pela NASA recebeu o nome de “Campo de Provas” (Proving Ground). Ele deverá ter início em 2018 e prosseguir até 2030. Neste período, serão realizadas missões próximas à Lua, no chamado “espaço cislunar”, para buscar aprofundamentos sobre o teste das capacidades dos astronautas viverem e trabalharem no espaço. Para novembro de 2018 está programado o lançamento do novo foguete SLS para levar a cápsula Orion a uma missão não tripulada de três semanas a milhares de quilômetros de distância da Lua. Posteriormente, a mesma experiência será repetida com tripulação a bordo da Orion. Durante a década de 2020, astronautas permanecerão um ano em uma região longínqua do espaço para testar as condições da habitabilidade da espaçonave e a capacidade de prontidão do corpo humano em jornadas de longa duração. Também nesta década, a NASA pretende recorrer a uma missão robótica para capturar um asteroide e deslocá-lo para uma órbita em torno da Lua. Feito isso, os astronautas a bordo da espaçonave Orion explorarão o asteroide e trarão amostras dele para a Terra, por meio da chamada Asteroid Redirect Mission, mais um teste preparatório para chegar a Marte.


O terceiro e último estágio do projeto de exploração do espaço da NASA é chamado de “Terra Independente” (Earth Independent). Ele reunirá tudo o que foi testado nos estágios anteriores para que finalmente sejam enviados astronautas para primeiro orbitar Marte por volta dos anos 2030. Há previsão de que os astronautas também visitem as órbitas das luas de Marte, Phobos e Deimos. Neste período serão testadas técnicas de entrada, descida e aterrissagem na superfície marciana, além de estudos para levantar a necessidade de recursos para se viver fora da Terra. Neste caso será levado em conta tudo o que poderá ser extraído do próprio planeta vermelho para a manutenção da vida dos primeiros visitantes a Marte.


Talvez por sua proximidade e por ser o planeta mais parecido com a Terra, Marte é o mais pesquisado do sistema solar. Desde o século XVII sua superfície é observada por telescópios e a partir dos anos 1960 sondas e robôs passaram a ser enviados a Marte para a coleta de dados. Destas observações, confirmou-se existir água no planeta vermelho e não haver vida em sua superfície, assim como é bem certo que um dia houve, quando o planeta ainda possuía uma atmosfera mais densa do que a atual.


A primeira vez que se cogitou a possibilidade de realização de uma expedição a Marte foi nos anos 1950. O fusólogo alemão e principal mentor do programa espacial estadunidense Werner von Braun idealizou um modelo de exploração que previa a gradual ocupação do espaço com a construção de espaçonaves reutilizáveis, para depois se construir uma estação espacial permanente, seguida pela ocupação da Lua como uma base também permanente e, por fim, a viagem a Marte para sua colonização. Von Braun foi pioneiro no desenvolvimento de uma tecnologia espacial na Alemanha nazista que resultou em artefatos bélicos de amplo alcance utilizados na II Guerra Mundial como os foguetes V-2, Vergeltungswaffe 2 (Arma de Retaliação), construídos em fábricas que utilizavam prisioneiros de campos de concentração.


Assim que a missão Apollo 11 chegou à superfície lunar em 1969 cumprindo a promessa de Kennedy, von Braun defendeu que a NASA deveria dar continuidade ao seu programa espacial construindo uma estação espacial na órbita terrestre e uma frota de ônibus espaciais. O passo seguinte seria manter uma estação espacial na órbita lunar e uma expedição a Marte antes de 1980.


O presidente Nixon cortou a expectativa de von Braun e de todos que imaginavam que em muito breve os EUA fincariam sua bandeira em Marte. Em 1972, decidiu-se que para suceder o programa Apollo, a NASA não disporia dos mesmos recursos investidos para a viagem a Lua, e que a agência adequaria seu limitado orçamento para construir ônibus espaciais (que, por serem reutilizáveis, prometiam reduzir o custo das viagens espaciais) e lançar na órbita a estação espacial experimental Skylab


Desde então, a tão sonhada viagem a Marte foi postergada de governo a governo nos EUA, posto que a Rússia deixou de ser um concorrente na empreitada. Aos moldes da expedição à Lua, tal viagem só poderia ser executada por “super” Estados.

 

Planeta vermelho na mira de sociedades e empresas


O revigoramento do interesse do Estado em realizar missões tripuladas a Marte é uma reposta à recente emergência de propostas de expedição ao planeta vermelho por entidades da sociedade civil e por empresas.


Uma das pioneiras associações de advocacy da exploração de Marte é a Mars Society. Criada em 1998 pelo engenheiro espacial estadunidense Robert Zubrin, é uma organização não-governamental com mais de 6 mil associados distribuídos pela Terra. Zubrin é um defensor da terraformação de Marte, ou seja, de uso da engenharia planetária para transformar Marte em uma nova Terra. Em 1996, ele publicou o livro The Case for Mars: The Plan to Settle the Red Planet and Why We Must, no qual defende a colonização de Marte por humanos.


Desde 2001, outra iniciativa não-governamental dedicada à exploração do planeta vizinho à Terra é a Mars One. Este projeto, idealizado pelo engenheiro holandês Bas Lansdorp, pretende enviar a partir de 2026 o primeiro grupo de pessoas em viagens só de ida para estabelecer um assentamento humano em Marte. Na programação do projeto consta que em 2020 terá início o envio de voos não tripulados carregados com materiais e mantimentos que serão utilizados no futuro assentamento marciano. Lansdorp pretende financiar seu projeto de colonização de Marte com a realização de um programa televisivo nos moldes do Big Brother que exibirá em tempo real o cotidiano da expedição a Marte. Ele estima que o projeto exigirá 6 bilhões de dólares, o que significa um décimo do orçamento previsto pela NASA para o seu projeto Jornada a Marte. Em 2013, teve início o processo de seleção de candidatos à missão a Marte. Mais de 200 mil pessoas de todos os continentes se inscreveram para participar. O projeto Mars One tem sido fortemente criticado por não apresentar as soluções técnicas para viabilizar todo o processo de colonização de Marte.


O mais recente projeto de colonização de Marte foi apresentado por Elon Musk, o bilionário estadunidense e sul-africano empreendedor da internet, fundador da PayPal e fundador da empresa de transporte espacial Space X. No último International Astronautical Congress, realizado em setembro passado, em Guadalajara, no México, Musk detalhou como pretende colonizar Marte.


O primeiro passo, em fase de execução, é a produção de um sistema de lançamento e transporte com base nos foguetes reutilizáveis atualmente desenvolvidos pela Space X. A este veículo de lançamento será acoplado um módulo interplanetário com o tamanho de dois Boiengs 747 e capacidade para transportar 100 pessoas.


Segundo Musk, só a partir de 2024 serão iniciadas as viagens tripuladas a Marte, que poderão ocorrer a cada 26 meses. Ele calcula que para conseguir estabelecer uma “civilização autossustentável” no planeta vermelho seriam necessários mais de 10 mil voos, no período de 40 anos, a fim de que sejam concluídos os transportes dos equipamentos e suprimentos necessários. Durante o anúncio do projeto, o empreendedor espacial disse que pretende contar com parcerias público-privadas e até mesmo campanhas de financiamento coletivo para financiar o projeto.


Pelo quadro desenhado hoje, será a cooperação entre Estado e a sociedade civil que projetará a expansão humana pelos arredores da Terra no sistema solar. Aos moldes do que acontece atualmente na Terra, nesta nova modulação da exploração espacial também se constata o funcionamento da racionalidade neoliberal que convoca a sociedade a governar. Não se trata de governar apenas populações restritas a países, o negócio pretende ser planetário.

 

De volta ao passado...


No passado as grandes viagens de descobrimentos de continentes e suas respectivas ocupações também se fizeram a partir da parceria público-privada na alvorada do capitalismo mercantil e dos Estados nacionais. A regra mutável permanece a mesma. Os resultados do passado, que envolviam gente de vida biológica igual, trouxeram extermínios e a glorificação da superioridade europeia sobre populações hierarquizadas ou não, que acabaram subordinadas ou dizimadas. Seus efeitos repercutem até hoje entre quem vive na América Latina, África, Ásia e Oceania.


Os empreendimentos destinados a Marte e à sua colonização fazem parte de uma nova política que se ajusta ao desenvolvimento sustentável de hoje em que todos somos convocados a salvar a Terra. Salvem-se quem puder, pois os empreendedores capitalistas buscam é se estabelecer noutros lugares. Importa é a extração de riquezas ajustadas aos negócios lucrativos. Conquistar o espaço exige ajustes aqui na Terra para viabilizar colonizações e negócios no espaço que, por sua vez, agenciam iutros governos e negócios na Terra.


Os efeitos ficarão para depois. Afinal, autossutentável nestes projetos é apenas modo de subordinar humanos aos ditames empresariais, estatais e de uma sociedade civil que obedece e participa.





R A D.A.R


Discurso de Kennedy ao Congresso de 25 de maio de 1961.
http://www.nasa.gov/vision/space/features/jfk_speech_text.html#.WBShWaPOqRs


Simulação da missão com a espaçonave Orion na região cislunar
https://www.youtube.com/watch?v=Mo8IkHM8fGE


Video da Asteroid Redirect Mission
https://youtu.be/3UkEximY6lc


Journey to Mars, NASA
https://www.nasa.gov/topics/journeytomars/index.html


Mars One
http://www.mars-one.com


Mars Society
http://www.marssociety.org


“Making Humans a Multiplanetary Species”, apresentação de Elon Musk da Space X sobre a colonização de Marte
http://www.spacex.com/webcast


“Our Affirmations”, publicado em Biocosmist (Биокосмист) no. 1 (1922), revista dos Anarquistas-Biocosmistas Russos.
http://supercommunity.e-flux.com/texts/our-affirmations/





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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