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observatório ecopolítica

ano II, n. 23, agosto, 2017.

 

O pêndulo de Trump


“America first!”. “Make America great again!”. Os slogans de campanha de Donald Trump foram redimensionados em práticas de governo que, em disputa com seu antecessor Barack Obama, têm procurado desmontar as táticas para a gestão dos EUA e do planeta implementadas em anos anteriores.

 

Trump tem aparência e discurso que são apresentados como o negativo do governo de Obama.

 

Diante do discurso “inclusivo” para negros, gays e imigrantes praticado por Obama, Trump arremeteu, logo de início, com a proibição da entrada de pessoas vindas da Síria, Líbia, Iêmen, Sudão, Irã e Somália, todos países de maioria muçulmana. Oficialmente, Trump justificou-se, sem qualquer originalidade, em nome da segurança nacional, para proteger os EUA de “terroristas”. Seguiram-se marchas, protestos, advogados voluntários assistindo pessoas retidas em aeroportos, camisetas e cartazes dizendo amar os imigrantes. Vieram decisões judiciais e o “banimento” caiu, não antes do governo federal estabelecer sanções fiscais contra cidades que se autodenominam santuários para refugiados e imigrantes, como Nova Iorque, Baltimore ou Los Angeles.

 

No campo da política de saúde, Trump visa desmontar o arremedo de suporte público defendido por Obama, radicalizando o já mínimo assistencialismo médico-sanitário que a governamentalidade neoliberal suporta e indica. Novamente, marchas, cartazes, protestos, happenings em nome dos mais fracos, mais pobres, mais vulneráveis.

 

Na seara da política internacional, Trump esbraveja com mísseis e diz que os “líderes mundiais” não vão mais “rir dos EUA”. Soberania! Então, contrapondo o simpático e jovial Obama, o sisudo Trump reverte o acordo de abertura diplomática e comercial com Cuba, sempre com o argumento de que a negociação não favorece os Estados Unidos. Os cubano-americanos da Flórida aplaudem, enquanto Trump joga golfe num de seus clubes naquele estado. Contra os mexicanos, as acusações são as clássicas existentes desde o século XIX: roubam empregos, trazem hábitos imorais (drogas), praticam crimes diversos e atravessam, clandestinamente, o muro secular que separa os dois países. Trump segue defendendo a construção de um novo muro que isole o México (e a América Latina) dos EUA.

 

Mais manifestações, mais empatia para com latino-americanos, mais camisetas e cartazes solidários com “los pobrecitos” do continente. Poucos, no entanto, comentam que boa parte da fronteira já é murada, principalmente nas cidades-irmãs como Laredo/Nuevo Laredo ou Tijuana/San Diego, onde o muro de metal avança mar adentro. Além disso, os vigilantes de fronteira, muitos deles voluntários, seguem com a já antiga prática de "caçar" imigrantes clandestinos. Enquanto isso, os "coiotes" (traficantes de gente) continuam com força total atravessando gente — ou simplesmente cobrando e abandonando pessoas no deserto — em direção ao “sonho americano”.

 

O México e a América Latina para Trump não são muito diferentes do que foram para Obama e antes dele W. Bush e antes dele Clinton e antes dele Bush pai e antes dele Reagan…: Fonte de imigrantes ilegais, movimentos sociais inconvenientes e drogas ilícitas. A simpatia e o sorriso do governo Obama com relação aos plebiscitos que legalizaram a maconha em diversos estados desde 2012 combinaram com a continuidade do financiamento da militarização do combate ao narcotráfico. Clinton assinou o Plano Colombia, George W. Bush o operacionalizou, o mesmo Bush assinou a Iniciativa Mérida (versão para México e América Central do Plano Colômbia), Obama a continuou e Trump vai na mesma toada.

 

Hoje, Trump afirma que os EUA vivem uma “epidemia” de uso de opióides. O culpado é sempre o México, mesmo que a maioria dessas drogas seja produzida por indústrias farmacêuticas estadunidenses e, depois, receitadas, desviadas ou vendidas como potentes anestésicos. A solução indicada: enrijecer a “guerra contra as drogas”, prendendo negros, brancos pobres e hispânicos que alimentam a maior população carcerária do mundo e, com isso, a lucrativa indústria do controle do crime (com suas armas letais e "não-letais", equipamentos eletrônicos de vigilância, cadastramento estatal eletrônico em bancos de dados de fichados ou suspeitos, penitenciárias privadas, empresas de catering para alimentar presos etc.). Quanto à maconha legalizada, nenhuma grande movimentação repressiva, já que ela agita uma milionária economia legal que salvou finanças de estados como Colorado e são consumidas por brancos não-pobres cujo maior inconveniente que produzem é o fato de vestirem camisetas e levantarem pôsteres contra Trump.

 

Sempre com a premissa de “salvar os EUA”, Trump promete baixar impostos, barrar imigrantes, expulsar pessoas que vivem ilegalmente no país e romper todos os acordos comerciais ou ambientais que supostamente impeçam o crescimento econômico. O presidente ameaçou sair do NAFTA (acordo de livre comércio com México e Canadá), depois voltou atrás dizendo que vai renegociar tudo para favorecer os EUA. Ao mesmo tempo, assustou os parceiros comerciais da Ásia, saindo do acordo de livre comércio chamado Parceria Trans-Pacífico.

 

Em junho de 2017, Trump disse que não honraria a assinatura do Acordo de Paris de 2016 sobre redução de emissões de gases de efeito estufa porque o acordo era “ruim para os EUA”. Mais protestos, mais debates, mais camisetas e pôsteres defendendo o meio-ambiente, e Trump, sisudo, dizendo que a “mudança climática” não é real, mas uma estratégia para sabotar os EUA. Trump visita indústrias, faz discursos protecionistas e diz que foi eleito por moradores de "Pittsburgh e não de Paris". América primeiro!

 

No Oriente Médio, Trump segue o que Obama começou: bombardeia posições do Estado Islâmico, esbraveja contra o terrorismo islâmico, mas não incomoda muito os russos, já que Putin é para Trump um amigo arriscado, que ao mesmo tempo pode ter ajudado a vencer as eleições e que, a qualquer instante, pode soltar alguma informação que leve Trump ao impeachment. Obama reclamava, sem muito entusiasmo, da presença dos russos na Síria, enquanto compensava a retirada de tropas estadunidenses do Iraque com muitos milhões de dólares para empresas privadas de segurança, o uso constante do bombardeios contra o Estado Islâmico e a manutenção do campo de concentração de Guantánamo. Era promessa de campanha de Obama fechar o campo, mas ele não cumpriu.


Indo mais para o leste, Trump se regozija com as tentativas da Coreia do Norte de lançar foguetes mais potentes e que cheguem mais longe. A cada teste, o presidente estadunidense sugere guerra, e envia mais dezenas de tweets dizendo que a "América é grande".


Mas não são apenas marchas contra Trump que acontecem nos EUA. As cenas de brutalidade policial se rotinizam, as demonstrações de ódio contra imigrantes, negros e muçulmanos se avolumam e até marchas neonazistas voltam a acontecer, com suásticas em ondulantes bandeiras em plena luz do dia. Para Trump, no entanto, os supremacistas brancos não são “terroristas”, indicando de modo bem evidente que não existe ontologia do “terrorismo”: “terrorista” é sempre o outro, o inimigo.


Trump é um dos lados do pêndulo que marca a política, a economia e as práticas de governo estadunidenses: entre o maior ativismo internacional e a retórica isolacionista. A lista de presidentes em cada um desses polos é extensa e enfadonha. O roteiro da história é quase sempre o mesmo, acompanhando as expansões e retrações do capitalismo global impulsionado pelos dólares americanos. A “América” está sempre “em primeiro lugar”, mesmo que o rosto seja risonho e a fachada mais amena.


Trump vai na contramão da imagem simpática de uma "governança global" baseada em valores como os direitos humanos e a proteção do meio ambiente. Ele não está só em tempos de "Brexit", da Rússia anexando territórios e intervindo militarmente e de candidatos explicitamente racistas, homofóbicos e xenófobos fazendo sucesso e quase ganhando eleições em todos os quadrantes do mundo (incluindo por aqui). O que está em jogo é o que tem sempre estado no centro do jogo: manter o Estado, as práticas de governo das condutas, o controle dos fluxos de pessoas, informações, produtos e capital, a gestão e a lucratividade dos ilegalismos, a saúde do capitalismo global.


O pêndulo vai e volta, trajeto privilegiado.




R A D.A.R


Mapa dos Grupos de Ódio Racial nos EUA.


CMA. Programa ProAmazônia


Programa Amazônia Conectada


GRIN. Guarda Rural Indígena


TI Jaraguá



Da pacificação indígena no Brasil

Em 3 de maio de 2017, foi divulgado o relatório final da CPI da FUNAI-INCRA. Quanto à questão indígena, o texto insiste na reprisada tese de que há, no país, muita terra pra pouco índio, e se propõe a provar que a miséria dos povos indígenas no Brasil não tem relação com a demarcação de suas terras.


Indicando condutas que visariam “mitigação da soberania, passando pela publicização e coletivização da propriedade privada”, o relatório solicita o indiciamento criminal de antropólogos, indigenistas e indígenas — valendo-se inclusive de informações registradas pela ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), entre 2011 e 2016, acerca de pessoas e órgãos envolvidas nas lutas contra grandes empreendimentos estatais na Amazônia, como as usinas de Belo Monte e Tapajós, e que se mantinham sob sigilo até então. Tudo em nome da pacificação do conflito entre indígenas e ruralistas, definido como construção ideológica que atenta contra a soberania nacional.


Todavia, o Estado, ontem e hoje, sustenta-se, também simultaneamente pelo massacre dos povos indígenas e pela conivência diante deste massacre. É sabido que modos de vida que não se restringem à lógica da propriedade não têm lugar diante do Estado. Ou têm — desde que confinados em território que ainda não virou pasto e preservados em sua primitividade para enfeitar display de feiras de turismo.


Apresentado pelo deputado Nilson Leitão, presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, o relatório da CPI escancara de início seu descaramento: a dedicatória indica em primeiro lugar Pedro Teixeira — comandante da expedição que, ainda no século XVII, garantiu a soberania de parte da atual Amazônia Brasileira à coroa lusitana —, para depois estender-se a outras figuras ilustres da podre história militar e aos milhares de indígenas massacrados em nome da soberania da coroa. Ao apresentar o “panorama geral” acerca dos “indígenas e suas terras”, a despeito do tom dissimuladamente lamurioso com que alude ao que nada mais é do que extermínio sistemático dos povos indígenas ao longo de cinco séculos desde a invasão portuguesa, o texto atribui um aumento no número de indígenas no Brasil, a partir da década de 1950, ao critério de “autoatribuição sem a devida verificação”. O relatório esbarra em argumentos lombrosianos, por exemplo, quando se refere ao tupinambá conhecido como Cacique Babau como “um daqueles que não apresenta fenótipo dos primitivos habitantes das Américas, e sim, da África Negra”. O Cacique Babau foi preso e processado inúmeras vezes pelo Estado, desde 2008, sob a alegação criminal de praticar “atos contra a ordem social”. O palavrório faz regozijar o verdadeiro cidadão brasileiro de bem, que gosta de ver suas crianças fantasiadas no dia do índio e quer que o país progrida em ordem, sem ruídos provocados por gente em terra que não produz.


Dias depois da divulgação do relatório final da CPI FUNAI-INCRA, o general do exército Franklimberg de Freitas foi nomeado como presidente interino da FUNAI, sendo efetivado no cargo em julho de 2017. Em julho de 2016, já havia sido cogitada a nomeação de outro militar para o cargo, o general da reserva Sebastião Roberto Peternelli Júnior, declaradamente entusiasta da ditadura civil-militar no Brasil, mas a proposta não se sustentou diante da pressão indígena. Pouco depois, uma possível nomeação de Freitas foi também rechaçada pelos indígenas, e ele acabou assumindo a Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável do órgão. Sua figura expressa o que interessa ao Estado: o índio que serve à soberania nacional, nos mesmos moldes da imagem construída em torno dos milhares cujos corpos serviram de bucha de canhão para a conquista do território brasileiro, e seguem alvo de extermínio sistemático em nome do progresso nacional.


Na carreira militar, Franklimberg Ribeiro de Freitas atuou como chefe do Centro de Operações do Comando Militar da Amazônia (CMA) – onde também foi assessor de relações institucionais e parlamentares – e como comandante da 1ª. Brigada de Infantaria de Selva, em Roraima. Foi também gerente no programa PróAmazônia, lançado pelo CMA em formato piloto em 2015 e oficializado em 2016.


O programa PróAmazônia pretende oferecer o apoio logístico do Exército para a realização de pesquisas na região amazônica, com vistas à exploração do potencial comercial de produtos e conhecimentos regionais e ao fortalecimento da soberania nacional. É o que está indicado na apresentação institucional do programa na página do CMA: a “falta de conhecimento científico sobre o bioma é uma das fragilidades amazônicas. O desconhecimento representa um obstáculo para a produção de riqueza a partir da floresta em pé. É impossível agregar valor ao que não se conhece. Estima-se que a flora, a fauna, as bactérias, os fungos e outros microorganismos da floresta guardem um enorme potencial para a produção de remédios e alimentos e para vários setores da indústria. A riqueza escondida, porém, não vale nada. É preciso mãos e cérebros para descobri-la. (...) é justamente por isso que o Exército Brasileiro se une à Comunidade Científica Nacional na busca da redução desse hiato desconhecimento e promoção de um desenvolvimento sustentável na região alinhado com a Estratégia Nacional de Defesa [e] com Estratégia Nacional de Ciências, Tecnologia e Inovação no tocante a interseção de áreas científicas que são estratégicas para a projeção da Soberania Nacional. (...) em prol do desenvolvimento sustentável da Amazônia e dos povos tradicionais”.


Para além das potencialidades comerciais do bioma, contudo, também figura como área de atuação do programa em seu princípio o “Homem Amazônico”, indicando-se o interesse em “subprojetos na área de saúde, educação,aspectos sociais, políticos, culturais e desenvolvimento regional”. Além de pesquisadores de diversas universidades estatais, o programa conta com parcerias com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia; CAPES; e os ministérios da Defesa; da Educação; da Ciência, Tecnologia e Inovação.


A favor da nomeação de Farias para a presidência da Funai surgem enaltecimentos à primeira pessoa de origem indígena a ocupar o cargo. No entanto, escancara-se a macabra articulação entre militarismo e política indigenista, que desde sempre esteve presente na relação entre Estado e povos indígenas, mas que se mostrou de forma proeminente em casos como a criação da GRIN (Guarda Rural Indígena) no final da década de 1960, colocada em ação na gestão do primeiro presidente da FUNAI e que recrutou indígenas para receber “noções de instrução militar, instrução policial especializada (...), educação moral e cívica, equitação, ataque e defesa, armamento e tiro”. Com a GRIN, a ditadura civil-militar visava a contenção das práticas arredias a seu projeto civilizador por meio dos próprios indígenas. Hoje, pretende-se ganhar legitimidade junto aos povos indígenas graças à ascendência indígena do novo presidente da Funai. A tentativa não surtiu efeito, especialmente diante dos novos arranjos políticos que incidiram sobre a existência desses povos.


Em 19 de julho de 2017, o Diário Oficial publicou parecer da Advocacia Geral da União, referendado pela presidência da república, que obriga os órgãos do Executivo a aplicar aos processos de demarcação de Terras Indígenas em andamento os fundamentos e salvaguardas institucionais da decisão do STF a respeito da TI Raposa Serra do Sol (PET 3.388), julgado pela corte em 2009.


Um dos principais pontos do leading case indicados no parecer refere-se à adoção da tese do “marco temporal” para a demarcação de TIs. Com isso, só terão legitimidade os processos em que seja provada a ocupação indígena na data da promulgação da Constituição, em 5/10/1988. Um dos efeitos da aplicação do chamado “Marco Temporal” se mostrou no último dia 21 de outubro, quando o Diário Oficial publicou a anulação da portaria nº581 de 2015, que reconheceu como área de ocupação tradicional guarani 532 hectares que compõem a TI Jaraguá, em São Paulo. Escamoteia-se a história recente dos povos indígenas no Brasil, incluindo as operações de deslocamento coordenadas pelo Estado para dar lugar a propriedades rurais ou obras de infraestrutura, com vistas à integração e ao desenvolvimento do país, especialmente no período da ditadura civil-militar, que se estendem até hoje nas expulsões, violências e chacinas perpetradas por polícias e jagunços e que nada mais são do que o extermínio sistemático desses povos e sua cultura.


Outro ponto ressaltado da jurisprudência é que o princípio Defesa Nacional deve se sobrepor ao direito de prévia consulta às chamadas “populações tradicionais” nas ações que incidam sobre territórios por elas habitados – o que se reflete sobretudo em projetos de grandes obras de infraestrutura.


O parecer foi encomendado e comemorado pela chamada bancada ruralista, e mais uma vez fortalece o arcaico projeto de nação em nome do qual a vida de muitos é descartável diante do desenvolvimento, agora chamado de sustentável. O descarado argumento que o sustenta retoma o termo que reveste a violência perpetrada contra os povos indígenas diante do Estado – desde a colonização, atravessando ditaduras e democracias –, seja em nome da civilização ou da integração dos outrora ditos selvagens, seja em nome da modernização ou do desenvolvimento do país: PACIFICAÇÃO.


A pacificação nada mais é do que a aniquilação da diferença, por meio do assassinato, do silenciamento, da prática parasitária em relação aos saberes e práticas insurrecionais naquilo que pode interessar ao fortalecimento do próprio Estado. E não há Estado que se sustente sem o exercício dessa violência.





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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