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observatório ecopolíticaano II, n. 24, setembro, 2017.
Os indígenas isolados resistem!Em agosto de 2017, o governo brasileiro anunciou a extinção da Reserva Nacional do Cobre e Associados (RENCA), criada em 1984 para garantir a soberania nacional na extração de minérios em uma região densa da floresta amazônica, entre os estados do Pará e Amapá.
Diante dos protestos de diversas entidades ligadas aos povos indígenas e a causas ambientais, além de celebridades brasileiras e estrangeiras, o governo foi taxativo ao indicar a criação de uma base legal que garantiria a sustentabilidade da ação das mineradoras, assegurando também um tanto de impostos a mais e um enorme lucro para as empresas que levarão a cabo a exploração.
Trata-se de mais uma oficialização, em prol de milionárias empresas, das práticas recorrentes há décadas na região amazônica. Uma evidência disso veio à tona na última semana, quando se anunciou o massacre de índios conhecidos como “flecheiros”, que vivem na TI (Terra Indígena) do Vale do Javari, no estado do Amazonas, por garimpeiros ditos ilegais que circulam na região para extrair minério dos solos.
Se o Estado reconhece os “flecheiros” como “índios isolados”, ainda sem contato estabelecido ou em recusa ao contato, a admissão do massacre pelo Ministério Público Federal deixa claro que a violência capitalista chega junto com seus agentes legais ou ilegais, mais uma vez no meio da floresta.
A conversa burocrática é a de sempre: a FUNAI não tem funcionários suficientes para realizar a proteção às terras indígenas demarcadas. Mesmo assim, as denúncias não se interrompem! São fazendeiros, garimpeiros, variados invasores penetrando e se instalando nestas áreas. Os indígenas, a seu modo, procuram divulgar essas práticas rotineiras a que estão expostos, sabedores que pouco lhes resta. Tanta lei, mediadores jurídicos e políticos, amontoados de denúncias para uma encenação repetitiva em nome do progresso, da riqueza da nação, do desenvolvimento com ou sem sustentabilidades.
É sabido que “hoje, há invasores por toda a terra indígena do Vale do Javari. Eles estão por todos os lados: pelo rio Javari, vindos do Acre, pelo rio Jurá e até pelo Peru, onde nossas terras indígenas fazem fronteira”, relata Paulo Marubo, coordenador da UNIJAVA — União dos Povos Indígenas do Vale do Javari.
Supõe-se haver 16 grupos isolados nesta região na divisa com o Peru; isolados em relação às forças capitalistas e dos Estados. Porém, em convivência e luta entre eles. Trata-se de uma forma de existência entre estas populações considerada inaceitável e selvagem pelos civilizados. Civilizados que ainda não compreendem, com ou sem discurso relativista, correto ou sustentável de conservação da natureza que há várias formas surpreendentes da existência entre humanos.
O capitalismo civilizador assim não quer. E os defensores ambientais dão a entender que ainda querem concluir sua missão laica de ajustar condutas entre povos indígenas. Não dá para deixar esses povos em sossego? O extermínio, a dominação, a submissão aos valores máximos da razão do lucro governam até mesmo a boa consciência dos que encontram no negócio ambiental, incluindo o ecoturismo, os paliativos para expor esses indígenas ao servilismo.
Em tempos coloniais, praticava-se a “pacificação” dos povos indígenas: eufemismo sangrento a significar assassínio, cristianização ou escravidão. Depois, em tempos republicanos, “pacificar” passou a denominar a “integração” à civilização sob a “proteção” do Estado. Foram os tempos da criação do Serviço Nacional do Índio que, depois, durante a ditadura civil-militar, foi redimensionada em FUNAI. Agora, sustentabilidades e lucratividades atualizam humanitarismos e violências da pacificação dos índios ditos isolados.
No passado não tão remoto, os Ianomâmi, até então “isolados” quase foram totalmente dizimados. Hoje, perfeitamente ajustados no Parque Nacional da Serra da Neblina, participam das excursões turísticas ao Pico da Neblina como carregadores sóbrios e silenciosos, no empreendedor ecoturismo. Tudo pelo amor à natureza, a admiração pela conservação de povos e florestas, a sustentabilidade. Novas palavras para revestir o exotismo.
Outros grupos em isolamento voluntário como os Kawahiva do Rio Pardo, Mato Grosso, ainda não têm suas terras demarcadas e estão expostos à contínua ação dos madeireiros, escapando até agora do genocídio, mas alvo de constantes violências. Índios isolados, na programática do “novo indigenismo” são contatados por meio de outros indígenas como em 29 de junho de 2014, “um povo indígena isolado estabeleceu o primeiro contato com indígenas da etnia Ashaninka e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), na Aldeia Simpatia da Terra Indígena Kampa e Isolados do Alto Rio Envira, no Estado do Acre, na região de fronteira do Brasil com o Peru” (cf. https://www.youtube.com/watch?v=Sb7alahD-BE e https://www.youtube.com/watch?v=ETVNl4_IzHY) . Para os “flecheiros” isolados a ameaça da submissão se anuncia, ainda que o Brasil tenha um arsenal de leis para serem monitoradas por pouquíssimos funcionários. Assim o Estado tem o instituto jurídico equipado, e os funcionários fazem o que podem. Os indígenas ficam a mercê de empresas de extração com seus capatazes ou, no presente e futuro, expostos ao ecoturismo, anunciados e vendidos como “um dos últimos povos isolados” da floresta. É amplamente conhecido o caso dos Awa Guajá, no Maranhão, cujas terras somente foram finalmente demarcadas em 2014. Os indígenas isolados, ou melhor, resistentes, desapareceram para dentro da reserva devastada. Eles preferem isso a serem apanhados pelos coletores de memórias, apologistas da vitimização e educadores proprietários da história destes povos. Eles têm mais que desaparecer na imensidão! As resistências indígenas estão descobrindo que melhor é isolar-se que estar diante de tantas leis, demarcações, funcionários e defensores. Rumam ao desconhecido (para nós) para percorrer caminhos outros que eles conhecem tão bem a ponto de escapar tanto das boas investidas conservacionistas quanto da invasão de fazendeiros, garimpeiros, sicários e jagunços sob o olhar pasmado dos que dizem não ter como policiar as áreas. Se o Estado fosse menos brutal, disporia seus equipamentos eletrônicos para simplesmente preservar esses povos, monitorando as invasões e dando certo sentido às leis. Enquanto isso os parlamentares parlamentam, fazem pronunciamentos projetos e leis, às vezes, mostram-se indignados enquanto a maioria defende os interesses dos seus representantes empresariais em nome da nação e da massa abúlica e covarde de seus cidadãos. Segundo a FUNAI são cerca de 100 grupos isolados. Com ou sem proteção do Estado eles, em pleno ano de 2017, fartos das violências ou as pressentindo, permanecem desaparecidos para o maldito censo das populações indígenas, seus programas de educação, contato, turismo, sustentabilidade e violências como programáticas do “novo indigenismo” ou do “velho sertanismo”. Que vivam! E que segmentos da massa abúlica se encorajem para dar um fim a esse festival de direitos que reveste as suas misérias. Recusem a serem vítimas, sejam donos de si! R A D.A.R Amazônia, índios isolados Kawahiva sem contato Índios isolados no Brasi Site oficial da Documenta 14 Carta dos artistas contrários à Documenta Documenta "Aprendendo com o Sul" Paul Preciado sobre a Documenta 14 Sobre a Documenta 14: a arte do fogo“Se partires um dia rumo a Ítaca/ faz votos de que o caminho seja longo/ repleto de aventuras, repleto de saber”, situou Konstantinos Kavafis, nos primeiros versos de “Ítaca”, menção à ilha sobre a qual reinava Ulisses, herói da Odisséia. Considerado um dos mais importantes escritores gregos modernos, Kavafis morreu em 1933, sem ter publicado livro algum. Contudo, deixou inúmeros poemas em revistas literárias, opúsculos ou de maneira avulsa. Reconhecido não somente pela escrita, mas, também pela ousadia, relacionada à liberação dos costumes, do sexo, o poeta não podia imaginar que “Ítaca”, uma das suas folhas soltas, viajaria para vários cantos da Terra em diversas traduções. Em abril de 2017, uma transposição para o inglês pousou no catálogo da Documenta 14, renomada exposição de arte contemporânea que, pela primeira vez, além da tradicional sede em Kassel, Alemanha, também ocorreu em Atenas, Grécia, com a presença de cerca de cento e cinquenta artistas. “Uma bela viagem deu-te Ítaca/ Sem ela não te ponhas a caminho/ Mais do que isso não lhe cumpre dar-te”, escreveu Kavafis, e registrou a curadoria da mostra de arte que este ano apresentou como objetivo confrontar os “aparatos de poder” que governam a vida, “os regimes de verdade que servem a Estados-Nação, ao colonialismo e o capital — político, judiciário, disciplinar, educacional, médico, militar, econômico, cultural”. Fundada dez anos após o ocaso da Segunda Guerra, em 1955, pelo pintor e professor Arnold Bove, a primeira edição da Documenta visou apresentar a arte que ao longo dos anos 1930 e 1940 foi identificada e condenada como degenerada pelos nazistas. Na ocasião, Bove selecionou obras representativas do expressionismo, do cubismo, do dadaísmo e de artistas como Picasso, Max Ernst, Hans Arp, Henri Matisse, entre outros. A partir da reverberação inicial, em 1959, a mostra tornou-se regular, contando com o apoio da administração da cidade de Kassel. Entretanto, na ultrapassagem da década de 1960, sob os efeitos de 68, e dos questionamentos à institucionalização da arte exposta em Kassel, Bode abandonou a direção da Documenta, passando a compor seu conselho curador. Somada à descentralização da curadoria, a partir dos anos 1970, a Documenta liberou-se do Museu, incorporando diferentes perspectivas estéticas, entre elas performances dispersas pelas ruas de Kassel como o “Quilômetro Vertical” de Walter De Maria (1977) e os “100 dias com Beuys” (1972), na qual o artista conversava sobre democracia radical com os visitantes que acorriam a Kassel. E assim, ao longo dos anos, a cada edição, sempre a partir de proposta de um curador diferente, a Documenta se firmou, pouco a pouco, como um dos eventos mais importantes da arte contemporânea, instigando não somente artistas, mas, também, escritores como Enrique Vila-Matas. Em 2012, o catalão se perdeu pelas ruas de Kassel, experimentando “This variation” de Tino Sehgal e “Study for Strings” de Suzan Philsz, descritos posteriormente em Não há lugar para a lógica em Kassel. Em uma das passagens do livro argumentou: “ainda resta uma arte engenhosa, complexa, sábia, que faz os nossos limites avançarem permanentemente. É preciso ouvir os artistas (...). São o oposto dos políticos”. Em 2017, cinco anos depois da incursão de Vila Matas, e sob o título “Aprender com Atenas”, a Documenta, voltou a cartaz com o número 14. Logo na abertura, em texto divulgado no jornal El País, Paul. B. Preciado, Comissário de Programas Públicos da mostra, defendeu a proposta curatorial de Adam Szymczyk. No breve ensaio, argumentou que assim como em sua irrupção na década de 1950, a Documenta 14 mergulhava no combate a um planeta assolado por guerras, porém, agora, segundo ele, não uma grande guerra, mas, “guerra de classes dirigentes contra a população mundial, guerra do capitalismo global contra a vida, guerra das nações e ideologias contra os corpos e as imensas minorias”. Por fim, depois de indagar sobre as razões de Atenas tornar-se o espaço de uma exposição como a Documenta, concluiu: “A Grécia, e os países que junto a ela ficaram conhecidos como PIGS (Portugal, Itália e Espanha), se converte em um denso significado político que sintetiza todas as formas de exclusão produzidas pela hegemonia financeira”. Inaugurada em abril, “Aprender com Atenas” contou com artistas de diferentes lugares, desde os reconhecidos como o cineasta Jonas Mekas ou a compositora Pauline Oliveros — amiga de John Cage, responsável, segundo ele, por sua noção de “harmonia anárquica”—, passando por coletivos como Postcommodity ou Ciudad Aberta e jovens ainda praticamente desconhecidos. Formada pela multiplicidade de obras, grandiosas como o “Parthenon de livros”, monumento construído por Marta Minujín com livros sequestrados pela ditadura civil-militar argentina, ou pequenas, como os instrumentos inventados por Guillermo Galindo a partir de objetos abandonados por imigrantes identificados como ilegais na fronteira entre os Estados Unidos e o México, a mostra iniciada em abril, em Atenas, se encerrará no mês de setembro em Kassel. A indústria de armas da Alemanha, sede da Documenta e maior economia da Europa, foi o alvo da guatemalteca Regina José Galindo. Em “Objective”, situada num quarto fechado de Kassel, a artista só podia ser vista através da mira de um rifle fabricado no país. As categorias identitárias foram problematizadas por Annie Sprinkle e Beth Stephens, autoras do Manifesto Ecosex que, presentes na Documenta, deram continuidade à série, iniciada em 2005, de cerimônias de casamentos com a Terra, as montanhas do Apalaches, o mar de Venice, o lago de Kallavesi na Finlândia... Entretanto, apesar da argumentação de Paul Beatriz Preciado e do relato de Vila-Matas que, presente a Documenta 13, opôs a arte à política, o curador Adam Szymczyk foi colocado em xeque, precisamente em Atenas, pela articulação explícita entre a organização da Documenta e a política. Certos artistas e libertários, presenças aborrecedoras de arengas e eloquências (como escreveu Kavafis em outro poema, “À espera dos bárbaros”), sublinharam tal aliança em crítica direta à omissão da Documenta frente às recentes desocupações de squatters e perseguição a imigrantes. Em carta tornada pública, pouco tempo depois da defesa do curador feita por Preciado, que valorizou a escolha de Szymczyk em trabalhar com “instituições públicas” em vez de galerias, esses artistas expuseram o que consideravam inadmissível: a presença do prefeito de Atenas na abertura do evento artístico, pois ele era um dos responsáveis pelo acossamento a refugiados e militantes. Concluíram: “os eventos que abriram a Documenta 14 (...) falavam das vozes da resistência, das vozes transgênero, das vozes da minoria. Bem, somos essas vozes, somos inclusivos para todos os sexos, somos migrantes, somos párias modernos, somos os dissidentes do regime e estamos aqui. Caminhamos com você, andamos pelas ruas paralelas, mas você não nos vê — você tem seus olhos treinados nas linhas pontilhadas azuis do seu mapa do Google. Você foi programado e dirigido para não nos ver”. Frente a Szymczyk — propositor do “Aprender com Atenas”, jovem que tinha como sonho de infância conhecer a Grécia (como na “Ítaca” de Angélica Freitas, outra poeta)—, diretamente de Exarchia, bairro que arde em chamas contra o Estado ao longo dos anos 2000 até hoje, os artistas e anarquistas gregos expuseram que um programa, mesmo contemporâneo, não habilita a Documenta deixar de ser institucional. Escancararam não haver o que aprender com a “velha” ou “nova” política. Inventaram caminhos outros, preocupação ativa desde a Odisseia, passando pelos filósofos cínicos e pela viagem a Ítaca de Konstantinos Kavafis. Na terra de Heráclito e agora dos Koukolofouros e da Conspiração das Células de Fogo, explicita-se que é preciso caminhar mais sobre os percursos livres das centelhas libertárias. Isto é uma arte.
O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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