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observatório ecopolíticaano II, n. 25, setembro, 2017.
100 anos da Revolução Russa?!Começaram os encontros comemorativos dos 100 anos da Revolução Russa. E no Brasil, eles têm uma programação longa, com especialistas nacionais e internacionais focando a revolução como resultante do partido da revolução.
Ressaltam as vicissitudes do momento, as reflexões de Lenin e Trotski, os efeitos com Stalin e a inquestionável permanência de Marx, tanto para corrigir rotas como pavimentar desvios, e mais uma vez, revelar o verdadeiro Marx revisitado como meio para dar cabo ao domínio neoliberal na atualidade. Enfim, a visão marxista da revolução é reiterada como verdadeira e vencedora, mesmo que a derrocada da URSS seja vista como desvio, a China seja um sucesso empresarial sob a ditadura do proletariado e a Coréia do Norte o excesso indesejável.
Está no centro das discussões o governo do socialismo pela condução das minorias inteligentes como posicionamento em função da retomada do Estado, ainda que sob incômoda situação de ajuste ao pluralismo e à democracia burguesa, porém instalada na cômoda luta ideológica ao neoliberalismo que opõe liberais e antiliberais ao gosto da racionalidade neoliberal que governa o planeta. Pretende situar o debate no surrado argumento a respeito das condições de vida de trabalhadores como a massa oprimida que segue e necessita de consciência revolucionária e que permanece carente de Estado.
Hoje em dia, o retorno ao passado repleto de desvios vem acompanhado da ênfase na necessidade de uma revisão do marxismo-leninismo para se acentuar a presença verdadeira de Marx, agora como expoente inaugural de um marxismo libertário. Esta revisão remete, entre outros revides, a Anton Pannekoek e à ênfase na valorização dos conselhos (sovietes) suprimidos pela Nova Política Econômica em 1921, que os subordinou ao gerenciamento individual sobre a produtividade dos trabalhadores, após a vitória do governo sobre a chamada guerra civil.
Ao tratar o período inicial da revolução como guerra civil, os intérpretes e o governo bolchevista do Estado reiteraram a necessidade de pacificação dos confrontos no interior do território para que a soberania fosse consolidada. O Tratado de Brest-Litovski estabeleceu a segurança externa mínima com o império alemão e o austro-húngaro para os quais os bolchevistas cederam vastos territórios, como a Polônia e a Finlândia, com o intuito de restringir os feitos de guerra e poderem se concentrar na pacificação interna. Como a segurança interna depende do dispositivo de polícia, a TCHECA substituiu imediatamente a antiga polícia czarista, a OHKRANA, e acelerou a pretensão de acabar com a chamada guerra civil, com prisões, deportações, confinamentos em campos de concentração, esmagamento de revoltas, como a dos marinheiros de Kronstadt, interceptações de outras revoluções como na Ucrânia, centralidade político-econômica com exército forte e eficiente. Enfrentar as lutas entre as forças políticas e sociais como guerra civil é considerar que a solução política se obtém com o esmagamento das demais formas, o que abre, ou melhor, reabre para o terrorismo de Estado, como ocorrera na Revolução Francesa.
Nicolail Buhkarin, um dos mais importantes pensadores bolchevistas na revolução em andamento, estabeleceu que o terror é um método pelo qual a natureza humana será transformada em adequada cidadania bolchevista. Seja pela restauração de relações de produção capitalistas, pelo fortalecimento partidário centralizador no governo do Estado, incluindo o terror e as interceptações de opositores por meio da pacificação pelo fim da chamada guerra civil, os bolchevistas darão traçados mais nítidos à gestão do Estado e da economia, segundo suas necessidades de fortalecimento da centralização e expansão da internacionalização da revolução.
A querela estava em como ajustar o crescimento e o domínio da burocracia para moldá-la aos programas do partido. Assim, seguindo os moldes dos Estados modernos, os bolchevistas criaram sua forma de governar como qualquer outra que absorve ditaduras à direita ou à esquerda. Não se tratava somente de administrar a propriedade (estatal e de concessões), mas de fortalecer o partido, antes mesmo que o Estado.
Hoje, as comemorações da Revolução Russa pretendem deslocar os olhos de um posicionamento menos inflexível e eufórico para outro, mais colaborativo e também mais radical. O sentido da revolução seria reavivado por meio de uma revisão fundada no marxismo libertário do verdadeiro Marx, e numa certa inclusão democrática e pluralista dos anarquistas – finalmente – como seu irmão gêmeo, ou como parceiro ideal de uma aliança. Deus e Besta estariam definitivamente juntos (afinal, um não existe sem o outro; sem estes deuses, se atraindo e repelindo, não há religião e a sua carneirada).
Daniel Guérin, no mergulho caudaloso de 68, havia chamado atenção para essa aproximação, repercutindo as contestações generalizadas aos efeitos do stalinismo, à economia centralizada e decadente da URSS, e as revelações dos crimes de Estado. Ao seu modo, ele sugeria e expressava as heterodoxias do período. Porém, suas sugestões não foram adiante. Os marxistas-leninistas e suas derivações e desvios permaneceram confiantes em suas teses, notando com pouca acuidade o que viria. Estavam confortavelmente instalados no Estado, que passara a ser o espelho deformado do partido, no Conselho de Segurança da ONU, no seu imenso poder atômico, nas suas viagens pelo espaço sideral e pela capacidade de controle e segurança para seu governo.
Mas desde a realização da esperada derrocada do socialismo, ou primeira fase do comunismo, segundo Lenin, no final dos anos 1980, alardeada pelos anarquistas antes, durante e depois da Revolução Russa, os marxistas se viram empurrados a contragosto a encontrar soluções teóricas. Já não bastava reconhecer os crimes de Stalin denunciados por Kruschev nos anos 1950; reiterar com mais ou menos ênfases as críticas aos efeitos da NEP; salvar Lenin das acusações de burocratismos e gestão taylorista; contemporizar com o Gulag e o terror de Estado; enfim, reconhecer erros apesar dos inúmeros acertos.
Estes numerosos acertos pouco são elencados abertamente; eles compõem os elementos discursivos de permanência do partido da revolução pela sua condução superior. Do mesmo modo, os demais partidos similares adestrados ao sabor da social-democracia, apagaram de seus programas a luta de classes, sob as mais variadas alegações para se declararem democráticos, crentes no Estado de direito, no parlamento e nas coalizões de governos, nas instituições jurídicas, na democracia representativa e participativa, e se autoproclamarem antiliberais. De qualquer forma reconhecem que os reformistas de outrora estavam certos, ou até mais certos que eles agora, e pouco sabem responder ao que fazer? com o partido da revolução e com a revolução, que aparece cada vez mais em tom pastel na convencional suporte da tela, hoje em dia móvel e digital.
A Revolução Russa não teve nada mais que vencedores políticos efêmeros; de concreto, quem venceu foi a burocracia, o exército, a polícia, a propriedade e o Estado. A Revolução Russa já não era mais revolucionária em 1921.
A Revolução Russa dos bolchevistas, ao se acomodar no Estado por meio do partido e sua minoria inteligente, recorrera às formalidades do Estado moderno governado pela burguesia. Já não era mais revolução e sua internacionalização. Era o governo do partido sobre os demais partidos comunistas nacionais. A noção de revolução permanente explicitada por Proudhon como prática anarquista de confronto e instauração da vida livre no dia a dia acabou sequestrada por Trotski como conceito orientador da reposição da ordem desviada por Stalin.
Outras revoluções similares a acompanhariam, com mais ou menos desvios como na China, na Coréia do Norte, em Cuba e nos territórios conquistados pelo império soviético após a II Guerra Mundial. Antes mesmo da emblemática queda do muro de Berlim, em 1989, e desde anos imediatamente anteriores com a perestroika e glasnost no governo de Gorbatchev, ex-chefe da KGB, o serviço secreto de polícia de Estado soviética, o império e sua revolução foram silenciados.
Hoje, como bem apraz ao capitalismo, a racionalidade neoliberal se realiza largamente sob a ditadura do proletariado na China, da mesma forma que a China funciona como suporte econômico e político para a Coréia do Norte. E os bolchevistas repaginados procuram consolo no marxismo libertário, uma retórica que pretende amalgamar o verdadeiro marxismo ao verdadeiro anarquismo. A produção de verdades sobre a revolução é mais e menos do que isso.
É importante retomar nas comemorações deste acontecimento fundamental do século XX, mais do que a projeção de minorias que a revolução teria proporcionado para serem governadas pelos condutores de consciência. Isso é considerá-las minorias numéricas, desvencilhadas de suas potências, para se ajustarem à maioria (numérica ou vanguardista) que as governam.
As minorias potentes de hoje resistem a essa governamentalidade e à neoliberal. E como tal nos remetem à potência dos sovietes que emergiram com a Revolução de 1905. Sem eles não haveria a Revolução Russa. Sem eles, a Revolução Russa morreu em 1921.
a estranha positividade da liberação sexual
Para além do que se sabe sobre as milenares técnicas orientais, e de sua velha e duradoura relação com as religiões, o tema do sexo, no ocidente, atraía atenção de médicos, juristas, comerciantes, muito antes da chamada revolução sexual em meados do século XX.
As décadas de 1960 e 1970 marcam uma mudança na abordagem das práticas sexuais, cujos efeitos podem ser observados na atualidade. Um destes está na articulação entre as práticas sexuais tidas, em um dado momento, como desviantes, com as conquistas de direitos de minorias. Os chamados homossexuais, identificados como tais pela virtualidade de suas relações com o mesmo sexo, tornaram-se sujeitos de direitos por meio de uma inversão de sinais em que sua assimilação passou a ser traduzida como identidade.
A mulher subjugada do século XIX, cujo prazer sexual era compreendido como uma forma de histeria, hoje se encontra empoderada e como foco de investimentos em educação e saúde. A luta pelo governo de si das feministas se ajustou ao governo de minoria identitária.
o pessoal como político e sua atualização em negócios
A máxima dos anos 1960 e 1970, “o pessoal é político”, é compreendida, pelo menos, de duas maneiras, tanto em relação às experiências que buscavam arruinar a distinção entre público e privado, marcando, desta forma, um modo de se relacionar com a vida e com o espaço que buscava se afastar das rígidas condutas políticas e autoritárias, como também a partir da forma explicitada pelos movimentos minoritários e sua busca por reconhecimento, que possibilitou a assimilação de tais movimentos pelas políticas de Estado.
Nos Estados Unidos, as disputas em torno do reconhecimento de direitos não se restringiram ao campo jurídico, mas pleitearam também a conquista de espaços no campo do mercado regularizado e projeções teóricas no campo da produção das verdades. A relação entre mercado e direitos, latente no país norte-americano, explicita uma conduta pautada em uma lógica neoliberal.
No interior do mercado, o sexo revestido de sexualidade ampliou os investimentos para além das chamadas minorias, assimilando um público mais abrangente a partir dos investimentos nas mulheres. O sexo no mercado, que até então tinha como público-alvo os homens, com as sex-shops, serviços de prostituição e filmes, entre outros, passou a investir nas relações entre sexo, saúde e educação, trazendo para este mercado um público que, em sua maioria, estava restrito às revistas femininas, consultórios médicos, e romances com alguma “pitada de erotismo”.
Tal investimento consistiu em uma reformulação do espaço e atendimento, somado à questão do empoderamento feminino. No caso das sex-shops, em vez de lugares escuros, em zonas marginalizadas (ainda que centrais), com funcionários limitados em seu papel de vendedor, muitas delas passaram a incorporar um ambiente mais clean, iluminado, e com uma equipe, mais ou menos treinada que, algumas vezes, atuam como “consultores sexuais”, ou “consultores para casais”.
Esta estética trazida para o Brasil no final dos anos 1990 e, principalmente, no início dos anos 2000, reproduz um modelo sex positive criado nos Estados Unidos a partir do casamento entre mercado e a reivindicação de direitos das mulheres, e que teve como uma das grandes disseminadoras, e hoje um estabelecimento modelo, a sex-shop Good Vibrations.
Mas enquanto nos Estados Unidos este modelo está fortemente associado à autonomia feminina (seja no campo econômico ou do prazer), no Brasil, o mesmo modelo se estabeleceu com foco no casal e na renovação do casamento.
Dessa forma, paralelamente à comercialização de objetos, investe-se em cursos de capacitação e certificação que abrangem um leque ainda mais amplo do mercado, da renovação de cursos e livros para casais oferecidos por igrejas popularmente denominadas como evangélicas, livros e cursos de autoajuda realizados por ex-garotas de programa que prometem apimentar a relação do casal, e uma proliferação de terapeutas e outros especialistas no campo da sexualidade.
De um lado, as experiências pessoais de cada um podem ser formalizadas como expertises e validadas por inúmeros certificados. De outro lado, a proliferação de expertos que abrange desde pastores, ex-garotas de programa, homens e mulheres “comuns” com suas superações pessoais, tornam-se guias para os consumidores (e potenciais empreendedores) de uma vida melhore mais saudável.
E assim, as experiências pessoais podem se tornar lucrativos investimentos, quando as relações pessoais são abordadas como estratégias para negócios.
bem-estar sexual & capital humano
O pessoal como possibilidade de negócios responde a um desejo que não se reduz ao sucesso econômico, mas que abarca o sucesso como a chamada qualidade de vida, saúde e felicidade enquanto promessa para o futuro.
Este desejo não está dissociado da produção de verdades, mas, articulado a ela, ajuda a estabelecer relações a partir da falta que deve ser o motor para as aquisições futuras.
No mercado e fora dele, as verdades estabelecidas em torno do “bem-estar sexual” possibilitam a inserção de um cálculo de condutas que dão uma finalidade ao prazer, enquanto algo que deve ser foco de investimentos do Estado, organizações internacionais, religiões e de cada zeloso cidadão. O prazer em sua utilidade é reduzido à satisfação imediata ou futura, que procura suprir, ainda que momentaneamente, a falta propiciada pelo desejo.
A noção abrangente de “bem-estar sexual” naturaliza as relações pautadas por uma lógica neoliberal, assumindo que “o comportamento sexual raramente não tem um motivo”, e nesse sentido, o sexo torna-se uma moeda de troca para se alcançar os objetivos.
Este conceito abrangente se casa com outro conceito, o de “capital humano”, desenvolvido em meados do século XX por Theodore Schultz e Gary Becker, ambos laureados com o prêmio Nobel, pela inserção da lógica econômica como modelo para as condutas pessoais.
A lógica neoliberal, ou esta nova formulação da governamentalidade capitalista, promete um caminho seguro em direção ao sucesso, desde que se evitem as degenerações que levam à perdição como situação degradada na qual seja possível corrigir as rotas. O cálculo, portanto, garante um autogoverno de cada um, consciente da necessidade de moderação de suas condutas, para que se conquiste o fim que – com suas pequenas e irrelevantes variações – está dado de antemão.
Assim, o “pessoal é político” que abria para o governo de si é redimensionado em “pessoal como negócio” governado pelas identidades e mercado para os que, como capital humano, transformaram-se em empreendedores de si. As minorias potentes se metamorfosearam em minorias numéricas, com direitos reconhecidos, governadas pelo sentido majoritário e legítimo na democracia democrática e pluralista.
Aninharam-se no escaninho das faltas a serem preenchidas, das produtividades esperadas, na renovação da família, das religiões e dos programas de saúde, na crença no Estado como categoria do entendimento.
Sem esquecer que a máxima ‘tudo é político’ provém de Carl Shmitt, que embasou o direito nazista; a mesma máxima, também traduz a velha ‘teoria do camarada’. É possível que o ponto de clivagem e equalização entre o “pessoal é político” e o “pessoal como negócio” se encontre na irmanação entre resiliência, vulnerabilidade e qualidade de vida, pois está em jogo na racionalidade neoliberal saber se governar para se saber governado.
a economia do perigo, ou o inferno é aqui
A lógica do capital humano reproduz a mesma velha ladainha introduzida com a catequização cristã: os castigos e as recompensas. As condutas exemplares devem ser agraciadas, no futuro, com o paraíso social, econômico, espiritual, ou outro qualquer. Para aqueles que não estiverem interessados no paraíso, resta o medo do castigo imediato, ou a ameaça da punição eterna no fogo dos infernos.
O reconhecimento de identidades, por mais flexível que seja, incorpora na rota correta os que antes eram tidos como desviantes ou degenerados. Reconhecidos, agora, como cidadãos de direitos, conquistam a autonomia como assimilação da lei em suas próprias condutas normalizadas. No lugar de inventar um caminho outro, essas minorias negociam suas condutas empreendedoras para fazerem parte do jogo.
Contempladas com direitos, agora pedem punição para aqueles que eram seus carrascos. De delinquentes, tornam-se vítimas e, consequentemente, pleiteiam o posto de algozes. Como vítimas, abrem mão de seu governo de si para se ajustarem às condutas econômicas em vigência no mercado empreendedor.
Eventualmente, como se observa atualmente no Brasil, os sinais voltam a se inverter. O investimento no reconhecimento de uma “cultura do estupro”, baseada no mesmo cálculo punitivo, traz de volta o velho discurso de moderação de condutas das chamadas vítimas que. eventualmente, são aconselhadas a evitar as minissaias, não sair sem sutiã, evitar comportamentos que, apesar da liberação sexual, podem colocá-las em risco, por serem interpretados como inadequados. Acabam sendo presas fáceis da moralidade e o que chegou a ser público e inventivo, vai aos poucos, moderadamente confinado, mais uma vez ao privado.
O retorno da cura gay insinua-se novamente, sem a necessidade de se abrir mão da conquista do papel de vitimizado. Os ajustes de rotas englobam também os caminhos escusos. Espancamentos, censuras, mortes e torturas, reproduzem a lógica assimilada tanto por aqueles que pedem punição, quanto pelos outros que se compreendem como justiceiros.
Os negócios se ajustam, os jogadores alternam de lugares e segue o jogo.
R A D.A.R Good Vibrations sex-positive retailer. “Global Study of Sexual Attitudes and Behaviours”. Daniel Guérin. Anarchism: from theory to pratice.
O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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