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observatório ecopolítica

ano II, n. 26, outubro, 2017.

 

é batalha contra o estado ou guerra de governos?


É conhecida a consideração sobre a força das minorias afirmada por Gilles Deleuze na entrevista a Toni Negri publicada em Futur Anterieur. Na conversa, o filósofo sublinhou que a diferença entre as minorias e as maiorias não é numérica. O que as distingue são as relações estabelecidas com o modelo. Enquanto a maioria se conforma ao padrão, “o europeu médio adulto macho habitante das cidades”, a minoria “não tem modelo, é um devir, um processo”.


Pronunciada no início da última década do século XX, a formulação é simultânea ao surgimento do que, nos Estados Unidos, alguns sociólogos cunharam como “guerras culturais”: segundo eles, reação tardia e conservadora a determinadas institucionalizações, nos anos 1970, de direitos de gays, mulheres, negros.

 

No final da década de 1980, ao norte da América, como indicam os partidários do termo, grupos conservadores deslocaram parte dos seus programas de reivindicações econômicas e sociais para adotar também a defesa de velhos costumes como o centro do debate político, em reação ao que identificavam como novo conjunto de pautas da esquerda, ligados às minorias e à contestação dos costumes. Assim, justificam como os temas com “legalização das drogas”, “aborto” e “controle de armas” passaram a ocupar a agenda e o léxico conservador estadunidense, criando a imagem negativa das lutas de minorias ativas.

 

Três décadas depois, no Brasil, pouco a pouco, frente à ampliação de organizações de “jovens” de direita, surgidas no interior dos movimentos de denúncia da corrupção, começa-se a falar em “guerras culturais”, em especial, após o cancelamento da exposição Queermuseum, em Porto Alegre, no Santander Cultural e da polêmica ocorrida recentemente no “Panorama de Arte Brasileira”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).

 

A direita daqui parece ter importado tardiamente a reação ao que eles identificam, de forma genérica, como pautas esquerdistas. Todavia, desconsidera, por ignorância ou omissão, que a defesa e institucionalização dos chamados direitos de minoria, ou de direitos de terceira geração, já fazem parte, há algum tempo, da agenda da Organização das Nações Unidas (ONU) — instituição demarcadamente tributária dos valores liberais e que pode, dentro desse léxico, ser classificada como irradiadora de uma política de centro.

 

De qualquer modo, a direita engajada atual encarna, com certo delay, o imperialismo do universal estadunidense que produz seus efeitos ao sul da América, conectando ativistas que se identificam como conservadores ou de direita.

 

Para alguns analistas, que se declaram à esquerda desse debate, as duas ocasiões (Quermuseum e MAM-SP) expressam uma conduta similar ao ocorrido nos Estados Unidos do final dos anos 1980. Para tais experts da ocasião, entre os detonadores de campanhas e hashtags em defesa da família, contra uma arte “imoral, “blasfêmea” (sic), “erótica”, “pedófila” que visa implementar “uma narrativa de extrema-esquerda”, estavam não os políticos tradicionais, mas, sim, “novas” organizações à direita que utilizam com destreza as redes sociais e aproveitam o ardor por polêmicas em feeds e timelines. Assim, os reacionários se mantêm “vivos” no debate nacional, mesmo após o “sucesso” da campanha pelo impeachment, e garantem os financiamentos que alimentam suas organizações.

 

Em conclusão, o diagnóstico para os acadêmicos das “guerras culturais” é que menos do que atacar a arte ou condenar a “pedofilia”, tais grupos visam estrategicamente disputar um espaço político (dentro do conceito liberal de “esfera pública”) antes dominado pela esquerda, mirando as próximas eleições, sua relevância no catálogo político e nas linhas de financiamentos.

 

Todavia, apesar do crescente interesse bibliográfico relacionado às “guerras culturais”, do frêmito causado nos corredores de algumas universidades com a importação de concepções estadunidenses, não há nada de novo no front. Pelo contrário, se nos Estados Unidos, como os próprios teóricos apontaram, as “guerras culturais” foram o fruto de uma reação às institucionalizações de algumas das lutas oriundas dos anos 1960 e 1970, no Brasil, o que vimos foi o retorno do ranço de uma velha violência contra práticas e costumes identificados como diferentes do modelo de família convencional, aquele mesmo modelo que marchou na década de 1960, aliando-se às medidas militares, supostamente de defesa da democracia.

 

Diante de tantos jovens já velhos, obtusos e obsoletos, cabe indagar: parte das minorias seguirá enredada ao poder, alimentando a própria política que de tempos em tempos reage à consolidação de suas reivindicações, ou retomará o processo que a distingue da maioria numérica— processo de invenções de outros costumes, liberados do modelo e das modulações esperados atualmente, como situou Deleuze.

 

A história é sempre mais do que registram as teorias, como esta que forjou o conceito de “guerras culturais”. Há sempre o que lhe escapa, o intempestivo. E já que um dos alvos da “nova direita” brasileira são certos artistas, vale lembrar que ao norte da América, simultâneo ao reconhecimento identitário das minorias e seus graduais efeitos em políticas de Estado, como as ações afirmativas, foram precisamente alguns artistas libertários que afirmaram outras possibilidades de existência, afastadas da sombra do Estado e longe da renovação dos governos das condutas — afirmações nítidas, por exemplo, em algumas das invenções e proposições de John Cage.

 

Na segunda metade dos anos 1970, Cage instigou os movimentos flower e black a abandonar o qualitativo power, pois “poder é aquilo de que não precisamos”. Argumentou ainda, dirigindo-se a seus contemporâneos maoistas, que qualquer transformação radical precisa também estar atenta à desmilitarização da linguagem, ou seja, ao combate aberto à violência de Estado sem substituí-la por outra.

 

Pouco tempo depois de Cage, nas décadas de 1980 e 1990, Hakim Bey animou a ação direta de artistas radicais contra a captura da arte de contestação por museus, galerias e bancos. E depois deles vieram muitos outros, anônimos encapuzados black-blocs, pussy riots, squatters espalhados por vários cantos... Esta é uma batalha que não se submete aos modismos teóricos-explicativos e, tampouco, às periodizações geracionais ou da ciência da História.

 

Anarquistas artistas sabem, não é de hoje, que a guerra é a saúde do Estado. A guerra redefine posições, reafirma a centralidade e a legitimidade da violência dos governos, e produz o que as minorias numéricas almejam: reconhecimento. Isso tudo sem alterar desigualdades e assimetrias, mas as reforçando pelo governo das desigualdades no catálogo das identidades e na agenda da racionalidade neoliberal.

 

A guerra é a disputa pelo mesmo, a busca por ocupar o mesmo lugar no jogo das hierarquias, mesmo que muitas vezes, como hoje em dia, hierarquias sejam reivindicadas como horizontalidades visando fomentar autonomias. Por isso, o que se chama de “guerras culturais”, ainda que varie o conteúdo entre novas e velhas “pautas” e “atores”, é apenas um up date, a forma contemporânea dos autoritarismos e do pequeno fascismo no interior do pluralismo democrático liberal.

 

Pluralismo muitas vezes defendido inclusive pelos que se contraposicionam ao conservadorismo e autoritarismo em ascensão no Brasil. E, mesmo que apresentem suas justificativas em termos de tática, sob uma estratégia maior e/ou de meios para se alcançar um fim, trata-se de um comodato que tem como resultante a atualização das tecnologias de governo. Ainda que por vias opostas ou diversas, tais pluralistas fazem coro também com o discurso conservador do “choque entre civilizações”; com o discurso trabalhista da terceira via acrescido agora de uma quarta, quinta, e por aí vai...; como também explicitam seu apreço pelo duplo complementar entre relativismo cultural e multiculturalismo.

 

A inovação (em relação aos anos 1960 e 1970) está nas redes sociais digitais e sua vertiginosa ampliação nas duas primeiras décadas do século XXI. Com elas, expandiram-se as convocações à participação e tornou-se possível a variação ad infinitum das identidades e do reconhecimento, ainda que as primeiras sejam modulares e o segundo seja efêmero e/ou restrito a nichos governáveis e monitorados.

 

Não surpreende que seja por meio dos fluxos computo-informacionais e sua variabilidade de possibilidades de conexões planetária que hoje, ao norte, um presidente ameace guerra nuclear pelo twitter, enquanto, ao sul, um general cogite golpe militar pelo facebook. Tampouco que fedelhos encantados com o sucesso de seu ativismo útil aos que governam se arvorem arautos da moralidade nacional, ou ainda que certos professores universitários se comportem como fuxiqueiras de cortiços, também a serviço de quem governa, com claque programada e conectados com circunstanciais oportunistas.

 

Tudo acende e apaga como vagalume. O que persiste é a centralidade do Estado, com suas sanções, violências e a ampliação variável do governo das condutas.

 

Apesar das formulações sociológicas estadunidenses, no Brasil, em 2017, a ampliação de uma “nova direita” — se é que é possível tal associação entre algo novo e aquilo que tem como ranço a proteção de valores obtusos e obsoletos — não é um fato desconhecido. Pelo contrário, faz parte da história política desse território. Não se está diante do novo, pois quando dizem novo, trata-se de fazer inovar o carcomido para reformar. Velho chavão do qual os reformadores não abrem mão para conservar o Estado, o governo e a política, reciclados na atualidade sob a rubrica de “iniciativas inovadoras de gestão” ou “inovar para empreender e empreender-se”.

 

Se hoje o país lidera o ranking de execução de transexuais, ainda nos anos 1970 e 1980, periódicos libertários como O Inimigo do Rei e O Lampião se contraposicionavam contundentemente à violência do Estado que pesava sobre a existência gay. Na memória ativa das lutas, como em O Inimigo do Rei, não há disputa pelo cetro, tampouco pelo centro. Não há a busca pela reposição de hierarquias. Nestes embates não cabe tudo, pois eles são minoritários.

 

Enquanto a maioria faz guerra para alimentar a disputa pelo reconhecimento no centro (mesmo que móvel, variável, modular e efêmero), as minorias potentes ouvem e provocam o ronco surdo das batalhas em lutas descontínuas, dispersas e anárquicas; lutas por justaposição, disjunção, desindividualização. Em vez do reconhecimento, a luta contra o que somos.

 

A guerra quer unificação, aplaca as diferenças em nome do confronto a um inimigo. Nesta disputa, sempre oriunda da falta, pouco importa o que está em pauta, mas apenas a variabilidade das forças que ocupam o centro em nome da sua continuidade. Deste modo, a democracia liberal pacificou as revoluções do século XX no jogo constitucional e, hoje, busca pacificar o que Deleuze chamou de devir-revolucionário, por meio dos empreendimentos ativistas monitorados nos campos de disputa computo-informacionais. E a racionalidade neoliberal tratou de tornar a distinção entre esquerda e direita em somente mais uma variação desse jogo. Variação que, presumivelmente, favorece o campo da conservação.

 

Enquanto intelectuais-ativistas insistem em repaginar a busca por efeitos de hegemonia usando a expressão-conceito “guerras culturais” como via de esclarecimento, a ativação da memória das lutas libertárias afirma o agonismo das forças que recusam a pacificação.

 

Diante do sonho de revolução, revolta e revolução permanente; diante do empreendedorismo ativista, a vida outra como militantismo; diante da política, repaginada por jovens embolorados como nova política, a antipolítica como atitude libertária de interessados que se dispensam do pluralismo, da busca por maioria e/ou efeitos de hegemonia.

A antipolítica trava o combate sem fim ao fascismo, pequeno ou grande, sobretudo aquele que habita os corações e mentes dos democratas de plantão e de cada liberal amedrontado pela virtual perda de seus privilégios.

 

Nas atuais formas repaginadas e “ressignificadas” das guerras (culturais ou não) de Estado e suas plurais e enfadonhas narrativas, o libertário segue afirmando suas batalhas cotidianas, batalhas que tratam de produzir diferenças, como outrora fizeram as minorias potentes. Como publicou um jornal ácrata há cem anos, para os libertários a guerra é contra a guerra, a guerra é contra o Estado.



R A D.A.R


Trump: del conflicto de clase a las guerras culturales.

 

Sin Dios -Guerra a La Guerra (ÁLBUM COMPLETO).

 

Relatora especial da ONU sobre Questões das Minorias visita o Brasil entre 14 e 24 de setembro.

 

Declaração Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas – 1992.

 

Intervenção do observador permanente da Santa Sé na 19ª sessão ordinária do conselho dos direitos humanos sobre o respeito pelas minorias étnicas religiosas e linguísticas (Genebra, 27 de fevereiro - 23 de março de 2012).

 

O que são minorias?

 

Sobre o fechamento da Queermuseum em Porto Alegre.

 

Sobre os desdobramentos do Panorama de Arte realizado no MAM-SP.






 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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