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observatório ecopolítica

ano II, n. 27, outubro, 2017.

 

violência em medidas


O Atlas da Violência, publicado neste ano pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), propõe discutir novas diretrizes reformadoras para a segurança a partir de alguns eventos e fatos recentes.

 

Segundo o Atlas, a rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, e o massacre em um presídio no Rio Grande do Norte revelaram a “completa falência do sistema de execução penal nacional”.

 

A publicação pretende retomar a discussão e as propostas de reformas do sistema penitenciário visando a sua continuidade. Abre-se espaço para os mais reprisados e insistentes discursos sobre a necessidade de políticas racionais, efetivas, calcadas na garantia dos direitos humanos com suposta isonomia diante dos chamados “crimes” e na relação destes com a violência.

 

Nesta argumentação, a agenda da segurança pública une-se à da saúde pública e à do desenvolvimento econômico e social relacionando as implicações da violência aos alvos frequentes: jovens, homens e negros (perfil de 71% dos mortos violentamente nos últimos anos).

 

As “causas” da violência elencadas pelo Atlas são atribuídas à difusão ilegal de armas, principalmente no norte e nordeste do país. Desse modo, aponta-se para a necessidade de programas conjuntos que as restrinjam, bem como para que se elevem os baixos índices de desenvolvimento humano naquelas regiões.

 

Na tentativa de reiterar a separação do Estado de sua violência, insiste-se na distinção entre, de um lado, policiais corruptos e que matam (a famigerada banda podre) devido a uma falha da justiça estatal (de acordo com pesquisas do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de SP, mais de 90% dos casos classificados como “resistência seguida de morte” são diretamente arquivados) e, de outro lado, policiais que são exemplo de cidadania, espelho institucional do cidadão e a imagem invertida da banda podre. Em ambos os casos apresentados, considera-se que os policiais são vítimas da violência — também quando matam e torturam — por medo e “descontrole”, sob o stress inerente à profissão. Assim, a violência é generalizada pelo Atlas para simplesmente elaborar meios de gerir o que é inestancável.

 

O FBSP tem como objetivo difundir seu trabalho de cooperação técnica na gestão da segurança pública do país. Para isso, busca envolver empresas e organizações privadas nestes processos, atribuindo-lhes importância e responsabilidades como agentes econômicos de peso. Reitera-se o interesse geral da sociedade em colaborar com a promoção da segurança pública e a prevenção da violência, principalmente tendo em vista que “intervenções baseadas exclusivamente nas instituições policiais ou na justiça criminal não oferecem resultados duradouros”.

 

Como exemplo desses esforços, há o relatório recentemente publicado pelo FBSP intitulado Participação do Setor Privado na Segurança Pública no Brasil, que cita um modelo derivado dos trabalhos discutidos em um artigo publicado por uma ONG de Nova York, o Vera Institute of Justice. Ressalta a importância do apoio da comunidade empresarial privada para a reforma policial, tendo como referência os encontros organizados pela Fundação Ford no Quênia — país considerado Estado Falido pela ONG estadunidense Fund for Peace — para descortinar novas possibilidades de intercâmbio público-privado. Um exemplo de sinergia entre organizações públicas (leia-se estatais) e privadas é o Instituto Minas pela Paz, criado pelo Conselho Estratégico da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG) para propor ações preventivas à violência, entendida como prejudicial aos “negócios”, promovendo a integração entre governo, empresas e sociedade.

 

As duas produções recentes do FBSP aqui apresentadas — o Atlas da Violência e o relatório Participação do Setor Privado na Segurança Pública no Brasil —,ao generalizarem a violência e repaginarem o papel da polícia enquanto principal instrumento da “segurança pública”, investem em sua ampliação, enfatizando a polícia enquanto modelo de uma conduta a ser seguida. Em 2003, o Instituto Sou da Paz criou o Prêmio Polícia Cidadã, viabilizado com apoio de diversos parceiros privados, de bancos a universidades, com o intuito de divulgar práticas policiais tidas como exemplares, incentivando a ação conjunta entre organização não estatal e Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

 

A busca de um padrão ainda mais eficiente aos esforços na ampliação da conduta policial dá-se por meio de investimentos educacionais. Projetos como o “Juventude e Polícia”, da Polícia Militar do estado de Minas Gerais, em parceria com o Grupo AfroReggae e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, investem em oficinas para jovens e na capacitação de policiais para aproximá-los e evitar o repertório “antiPM” que, segundo o relatório do FBSP, é comum entre os jovens classificados pelos índices como vulneráveis.

 

Os jovens são o alvo da polícia bem como de políticas sociais compartilhadas entre Fundações, Fóruns, Institutos, empresas, Estados, etc.. O interesse é o de gerir e perpetuar a violência legítima de Estado justificada como fundamental na garantia de sobrevivência da população jovem em geral.

 

De acordo com o Instituto de Segurança Pública, de janeiro de 2016 a março de 2017, mais de 1200 pessoas foram mortas pela polícia no estado do Rio de Janeiro. Mesmo assim, foi autorizado o uso das Forças Armadas na Operação Rio quer Segurança e Paz, sob o abrigo da Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Ela foi decretada pelo governo federal em decorrência do “esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem”, segundo o Ministério da Defesa, bem como da alegada “grave crise financeira” e do que se entende por um predomínio de facções criminosas em detrimento da presença de policiais em periferias e favelas. Por isso, em setembro deste ano, em apoio à PM, tropas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ocuparam novamente a Rocinha, zona sul do Rio de Janeiro, junto a policiais de UPPs próximas, unidos em mais “operações contra o crime”, para combater os tiroteios entre “facções rivais”.

 

Depreende-se, portanto, que na lógica destas pesquisas, interessantes às empresas, organizações estatais e não estatais, com seus índices de medições, relatórios e instrumentalizações em prol de mais segurança, o conceito de “crime” é tomado como central e algo dado, sem questionamentos. Estabelece-se a indistinção entre alvos e autores, reforçando e renovando o sistema de justiça criminal. Dilimita-se focos de violências e zonas classificadas como vulneráveis que contém populações e indivíduos sob a mesma condição vulnerável, e que devem ser geridos por todos, com a participação de cada um.

 

A tônica desses relatórios e de seus prognósticos é a produção de condutas policiais, de envolvimento e de participação da população nelas. Esses trabalhos servem para serem difundidos em universidades, institutos e afins; servem para policiais de si e dos outros, escudados na possibilidade de intervenções militares “transitórias” e recorrentes. Eles dão forma à atual gestão da segurança compartilhada que reproduz a mesma violência estatal, a despeito da violência genérica que dizem combater.



R A D.A.R


El Pais. “Justiça ignora evidências para inocentar PMs matadores” in Brasil. 09/02/2016.

 

FBSP. Medo da violência e o apoio ao autoritarismo no Brasil: índice de propensão ao apoio a posições autoritárias.

 

FBSP. Participação do Setor Privado na Segurança Pública do Brasil.

 

FBSP e Ipea. Atlas da Violência 2017.

 

Uol. “9 em cada 10 mortos pela polícia no Rio são negros ou pardos” in Cotidiano. 26/07/2017.





medida da obediência

 

Uma pesquisa do Datafolha realizada com moradores da cidade do Rio de Janeiro e publicada no início de outubro de 2017 indica que 83% dos entrevistados são a favor da convocação das Forças Armadas em operações policiais. Essa policialização das Forças Armadas se intensificou com o programa de pacificação a partir de 2008, o qual ocupou seletivamente alguns territórios para a posterior instalação de 38 Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

 

Entre os levantamentos de opiniões que mostram o quanto a população acredita ou não na polícia, na mudança ou não de alguma coisa nas regiões ocupadas, na alteração da chamada sensação de segurança, etc., etc., etc., destaca-se outra pesquisa de opinião, também do Datafolha, utilizada como referência pelo FBSP para a produção do Índice de Propensão ao Apoio de Posições Autoritárias.

 

Numa escala de 0 a 10, as posições autoritárias no Brasil constituem um índice de 8,1. A referência para criar esse novo índice foi a escala psicométrica criada por Theodor Adorno, quando buscava analisar o preconceito etnocêntrico e mensurar personalidades com características antidemocráticas no pós-II Guerra Mundial. É uma escala de moral mínima para o funcionamento das democracias formais.

 

O índice do FBSP relaciona variáveis como escolaridade, renda, faixa etária e região para georreferenciar as concentrações de personalidades autoritárias no país. São utilizados três principais referenciais de medição, a partir das variáveis elencadas: “submissão à autoridade”, “agressividade autoritária” e “convencionalismo”.

 

Segundo os resultados da aferição, a categoria “submissão à autoridade” é a que mais eleva o número final demonstrado pelo índice. Conservadorismo e moralismo, combinados, sustentam a dimensão “submissão à autoridade”. Assim, cria-se uma forma de medição da adesão à autoridade que está longe de questioná-las, mas busca produzir um referencial de manutenção ótima de seu exercício com adesão modular às instituições como a polícia e as regulares intervenções militares.

 

Trata-se de uma moral mínima que garanta a manutenção da ordem e a participação efetiva dos cidadãos nas iniciativas governamentais, ao mesmo tempo em que se pretende criar um referencial de contenção da adesão “abusiva” a essa autoridade vista como obstruidora da produção da autonomia desejada para inovações e aperfeiçoamentos institucionais necessários à manutenção da ordem.

 

Trata-se de um índice que busca qualificar, do ponto de vista dos cidadãos, o princípio elementar do liberalismo clássico ao gosto da racionalidade neoliberal. Mantem-se a prescrição de fobia ao Estado ao recomendar que “o melhor governo é o que menos governa”, mas acresce-se a ela uma prescrição de moral mínima em relação à conduta obediente à autoridade. Não mais o autoritarismo do grande líder que conduz a massa, mas a obediência de todos e de cada um, qualificada e na medida certa. Portanto, empoderamento para a formação do cidadão-polícia, assim como recomenda o FBSP ao policial de farda não cometer excessos, seja de autoridade, seja de obediência.

 

O relatório que consolida os dados da pesquisa Medo da violência e o apoio ao autoritarismo no Brasil ainda chama atenção para o medo que a população sente de ser alvo de violências da chamada criminalidade. As recomendações seguem a linha do Atlas da Violência e seus Anuários, ressaltando que os problemas da violência e do autoritarismo das instituições vinculadas ao sistema de justiça criminal devem sair da esfera policial e penal e agregar propostas de desenvolvimento social e humano. Amplia-se, assim, o raio de ação do que se entende por política de segurança pública.

 

A lógica é a da somatória. Os índices permitem monitorar os problemas a serem enfrentados, renovando o discurso reformador ao atribuir aos prognósticos a previsão econométrica e georreferenciada. Mas, mantem-se o imperativo da necessidade de uma política de segurança pública que seja capaz de aplicar “punições adequadas e céleres”, reconstruindo a confiança nas instituições estatais.

 

Não há paradoxo ao se deparar, nas páginas do relatório sobre medo e autoritarismo no Brasil, com a pretensão anunciada por ele de criar uma “contranarrativa aos discursos autoritários”.

 

Na racionalidade neoliberal existe uma medida da obediência; todos são convocados a serem pastores de si e dos outros e não se trata mais da condução do rebanho em massa. Assim, não se abre mão da segurança e das penalizações, tampouco da relação autoridade-obediência, mas, como todo serviço, segundo a racionalidade neoliberal, elas devem ser moduladas, customizadas com a devida participação do consumidor, o cidadão-polícia.

 

Para isso, é necessária a convocação à participação que produz o envolvimento da chamada sociedade civil organizada (universidades, movimentos sociais, institutos, fundações etc.) e parcerias público-privadas (bancos, empresas, comércio local etc.). Desta maneira, ampliam-se as condutas de policiais cidadãos e de cidadãos-polícia, todos participativos e obedientes na medida certa.

 

Nesta equação matemática que se pretende tão certeira, como nas aulas de aritmética nos bancos escolares, há um resto que precisa ser desconsiderado para que a conta feche. É quando se inicia outra contagem, a do número de corpos nas gavetas geladas do IML, e quando se perde a conta dos desaparecidos.



 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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