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observatório ecopolítica

ano III, n. 30, março de 2018.

 

A linha do equador


sin novidad


Eleito presidente do Equador em 2006, Rafael Correa reformou o Estado em plurinacional. Lenín Moreno participou ativamente desse processo constituinte conhecido como Revolução Cidadã e ocupou por seis anos o cargo de vice-presidente.


Após alguns anos fora do país como enviado especial à ONU, Moreno foi a grande aposta nas últimas eleições presidenciais. Segundo os cálculos marqueteiros, a sua distância da administração pública ajudaria a obter baixos índices de rejeição: ele seria a novidade que o já desgastado grupo de Correa precisava diante de uma opinião pública adversa... e deu certo! A “novidade”, somada aos 30% fiéis a Correa, elegeu Moreno presidente no começo de 2017. Porém, depois de eleito, o vencedor logo rompeu com seu antecessor, optando por mais reformas econômicas e incentivando investigações policiais sobre casos de corrupção no governo de seu antigo padrinho político.


No início de 2018, o presidente equatoriano convocou um plebiscito propondo reformas imediatas na constituição e consultas sobre mudanças em leis a serem selecionadas. Foram sete as perguntas e temas do plebiscito: corrupção, reeleição, participação cidadã, delitos sexuais, proteção ambiental, especulação imobiliária e petróleo. Todas elas fundamentadas na eterna necessidade de “reforma do Estado”, agora, a partir de convenções e diretrizes internacionais em torno da defesa do meio ambiente, dos direitos humanos e das crianças, e contra a corrupção.

E, novamente, deu certo! O “sim” venceu em todas as perguntas com mais de 60%. Quase 11 milhões de pessoas votaram. Com a vitória, o ex-vice e atual presidente afirmou que “os velhos políticos não voltarão, eles têm a obrigação de se renovar”. Mas qual a novidade? O combate à corrupção, a qual é inerente a qualquer Estado, foi o estopim para o rearranjo das forças governantes. Segue a atualização do axioma da envelhecida renovação da política... e com quase nada de memória.


As perguntas em que o “sim” ganhou com mais folga são de caráter punitivo. Dizem respeito à proibição de condenados por corrupção ocuparem ou permanecerem em cargos “públicos” e ao fim da prescrição dos crimes sexuais contra crianças. Na sequência no ranking do “sim”, está a proposta de fim da exploração mineira em áreas protegidas, como quis o movimento indígena organizado. Os lobistas do setor imobiliário também foram contemplados com o fim do limite de lucro para o setor. Além disso, o fim da reeleição indefinida afastou a possibilidade da volta de Correa ao governo.


Correa, que fez campanha pelo “não” apenas nas perguntas contra o fim da reeleição e na que propunha a reformulação do Conselho de Participação Cidadã, julga ter sido vítima de “uma restauração conservadora”, de “uma nova direita” que “tomou o poder pela força no Brasil, pela eleição na Argentina e pela traição no Equador”. Ao mesmo tempo, declara-se impressionado com a Venezuela que administra seu “conflito em paz e democracia”. Pouco importa a fome, as execuções e todas as violências patrocinadas pelo Estado, na Venezuela, no Equador, no Brasil ou onde quer que seja: os golpistas são sempre os outros. Seja à esquerda ou à direita, todos se dizem democratas e a solução é sempre a punição dos outros.


negócios venezuelanos


Hugo Chávez foi eleito presidente da Venezuela, em 1998, com 56,2% dos votos. No ano seguinte, a coalizão governista obteve 92% dos 131 assentos da Assembleia Nacional e, com o apoio de 87,5% dos votos, convocou uma assembleia constituinte para produzir a nova Constituição Bolivariana.


Em 2010, por meio de referendo, o governo de Chávez aprovou a reeleição indefinida para todos os cargos de eleição popular, inclusive o de presidente. Nesse mesmo ano, pela primeira vez desde sua primeira eleição, a coalizão governista não alcançou dois terços da Assembleia Nacional, obrigando o governante a negociar com a oposição para compor o governo.


Ainda no ano de 2010, o governista Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) publicou o “Livro Vermelho”. O documento combina o estatuto do partido com o programa de governo. Logo na introdução, exalta-se a figura do “comandante Hugo Chávez”, o “líder da revolução bolivariana” que, como um semideus, profetizou o “fim total da dependência do povo venezuelano para os ‘próximos 20 anos”. Ainda segundo o documento, o PSUV, “enquanto expressão da unidade do povo”, deve “tomar o papel de vanguarda” nesse processo de independência em relação ao “império norte-americano”. Portanto, em 2030, segundo a profecia chavista, a Venezuela estaria livre dos “interesses imperialistas, soberana e socialmente justa”. A data, não por acaso, marca os duzentos anos de morte do “libertador”, o líder da independência hispano-americana, o general Simón Bolívar.


Com a morte de Chávez em 2013, seu vice e genro, Nicolas Maduro assumiu a presidência. Quando Maduro assumiu, o governo tinha 60% das cadeiras da Assembleia contra 40% da oposição. Entretanto, a partir de 2014, com a baixa do preço do barril de petróleo e de todo uso para fins privados das chamadas “contas públicas”, o país entrou em crise.


A popularidade do governo se dissolveu. Em 2016, a coalizão de partidos da oposição, a chamada Mesa de Unidade Democrática (MUD), elegeu 112 assembleístas, enquanto o governo, somente 55. Apesar da derrota nas urnas, o grupo chavista não estava disposto a perder o controle das instituições. No dia da cerimônia de posse, o muro em frente à Assembleia amanheceu com uma mensagem clara pichada em letras garrafais: “VOCÊ ESTÁ EM TERRITÓRIO CHAVISTA!”.


Em julho do mesmo ano, Maduro convocou, por decreto, a eleição para a Assembleia Nacional Constituinte, que passou a exercer o poder legislativo no lugar da Assembleia Nacional. A repressão aos protestos foi violenta. No dia da eleição, 14 pessoas foram assassinadas pelas forças do governo. A Assembleia Constituinte, controlada pelo governo, agora tenta antecipar as eleições presidenciais, assim como as da Assembleia Nacional. Segundo o líder do governo, “poderes imperialistas e poderes factuais desataram uma campanha sistemática de ódio contra a Venezuela. Se o mundo quer aplicar sanções, nós aplicamos eleição”. Por mais que algumas lideranças do MUD afirmem que a oposição não participará das eleições, por não considerá-las legítimas, a poucos dias do prazo final de inscrição, ainda não se posicionaram de maneira oficial. Mesmo com o golpe na Assembleia Nacional, a única certeza que deixam no ar é a de que em nome de uma guinada no governo tudo é possível.


Se pelo Estado tudo pode, é porque ganha-se muito com o Estado. A Revolução Bolivariana na Venezuela, apesar de seu discurso anti-EUA e de soberania nacional, mantém lucrativos acordos com grandes indústrias petrolíferas transnacionais. Entre elas a Chevron, de capital estadunidense, que, como outras, mantém contratos de joint venture (empreendimento conjunto,em portuguêscom a empresa estatalPetróleos de Venezuela (PDVSA), e suas filiais, para a exploração de petróleo onshore (no continente) e offshore (em alto mar).


Em 2016, o presidente Maduro criou, por meio de decreto, a Zona de Desenvolvimento Estratégico Nacional Arco Mineiro de Orinoco. Na região, que corresponde a 12,2% do território venezuelano, 150 empresas multinacionais de 35 países diferentes têm concessão para a exploração, em larga escala e por um período de quatro décadas, de jazidas de ouro, diamantes, cobre, ferro e bauxita.


As cifras são altíssimas: só o acordo de nacionalização de 55% da produção da mineradora canadense Gold Reserve, custou para o governo US$ 700 milhões. Noticiou-se, pelo menos, três operações do Exército Bolivariano na região que terminaram com um saldo de 30 garimpeiros ilegais mortos. Enquanto isso, diariamente, centenas de miseráveis entram no rio Guaire – um grande esgoto a céu aberto na capital Caracas – à procura de alguma coisa que possam vender. Os “garimpeiros do esgoto” afirmam ser possível encontrar entre os dejetos, pequenas quantidades de ouro e prata, ou até joias inteiras que descem pelo vaso sanitário dos mais ricos. A soberania venezuelana produziu um grande empreendimento comum; um consórcio formado pelo partido do governo, o PSUV, e as grandes indústrias transnacionais de mineração.


turnê tropical


O Secretário de Estado estadunidense, Rex Tillerson, ao estilo do governo Trump, sugeriu um golpe militar para a solução do problema venezuelano, dias antes de sua turnê pelo Caribe e pela América do Sul. Tillerson passou por México, Argentina, Peru e Colômbia, conduzindo negociações prévias para a Cúpula das Américas, a ser realizada no Peru, em abril de 2018.


O evento, convocado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), segundo a própria, “é vital para o estabelecimento de metas comerciais comuns para os Estados do continente”. A situação da Venezuela foi assunto entre os chefes de Estado e, pelo que se viu, governos latino-americanos veem o governo Trump como um modelo a ser seguido: alguns dias após a visita de Tillerson, a Colômbia restringiu a entrada de refugiados venezuelanos e a chanceler peruana declarou que Nicolás Maduro não será bem-vindo à Cúpula das Américas enquanto seu governo continuar “desrespeitando os direitos humanos” e os princípios democráticos.


Nesse pulso, a situação venezuelana deve ser a principal pauta do encontro, com um uníssono em torno de práticas articuladas que beneficiem a oposição a Maduro. O governo estadunidense, como todo governo, usa seletivamente as convenções internacionais que assina. Assim, tudo indica que novos negócios lucrativos poderão ocorrer abençoados pela defesa dos direitos humanos.


A ressentida e reacionária “imprensa especializada” brasileira afirmou que o fato de Tillerson não ter visitado o Brasil foi um “grande erro estratégico” que demonstrou uma “total falta de conhecimento da geopolítica da região”. São os mesmos analistas que comemoraram a vitória do “sim” no plebiscito equatoriano, como “um grande golpe no bolivarianismo latino-americano”, o “fim de uma era marcada pelo populismo, pelo caudilhismo autoritário, o desperdício e a corrupção”, e dizem que “um novo caminho [para as políticas da região] é possível”. Também defendem a iniciativa de empresários bem-sucedidos para investirem na formação de novas lideranças políticas que possam reestabelecer a confiança na democracia representativa. Dessa maneira, pretendem garantir a ampliação dos seus negócios. Reputam que a alternância das forças no governo, assim como a renovação dos representantes, são dois processos fundamentais para a manutenção e aprimoramento do Estado. Sanguessugas do Estado, os que se consideram “revolucionários”, “reformistas” ou “pragmáticos” trocam acusações e violências buscando o mesmo botim: a extração das riquezas e lucratividades provenientes das forças inteligentes e o emudecimento – pelo torpor, pelo oferecimento de migalhas, pela morte ou miséria – da maioria da qual pouco ou nada se pode sugar.


R A D.A.R


El Libertario (Venezuela)

 

El movimiento indígena ecuatoriano

 

Los Okupas, anarquistas del siglo XXI

 

Turba Negra, Belo Horizonte, Brasil


A política e o direito


Seja mais à “esquerda” ou à “direita”, no governo ou na oposição, a disputa na chamada política partidária se dá pelo privilégio de participar dos negócios do Estado.

 

As transações, negociações e negociatas fazem parte do cotidiano dos corredores ministeriais, dos palácios e dos parlamentos, quer seja nas democracias tidas “em formação”, como as latino-americanas, quer seja nas consideradas “estáveis” e “consolidadas”, como as da Europa ocidental. Lá como cá, o que se vê são os grandes acordos entre partidos de princípios opostos em nome de se manter no Estado.

 

Um exemplo disso é a recente coalizão governista alemã que pretende reprisar, pela terceira vez, a união de sociais-democratas do SPD e conservadores cristãos da CSU e CDU. Os três partidos vêm perdendo eleitores e alcançaram, na eleição de 2017, o pior resultado da história da Alemanha no pós-II Guerra Mundial.

 

Para seguir à frente do governo majoritário, a chanceler Angela Merkel, da União Democrata Cristã (CDU), deverá ceder cargos estratégicos do governo para o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD). Por sua vez, o SPD, em troca de um pacote de sete ministérios que inclui o Ministério das Finanças, sob controle da CDU desde o primeiro mandato de Merkel, aceita permanecer na base governista, para o descontentamento de parte de seu eleitorado.

 

O líder do SPD, Martin Schulz, que dissera jamais participar do governo Merkel, aceitou em um primeiro momento assumir as finanças, mas, diante da pressão interna do próprio partido, voltou atrás e recusou o cargo. O acordo beneficiou o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), neonazista, eleito com um discurso anti-imigração e islamofóbico e que, dentro do parlamento, tornou-se o maior partido da oposição.

 

“Esquerda” e “direita” ainda são ideias que agitam os militantes e as eleições. Mas é o duplo situação-oposição que faz funcionar a política aprisionada pelo Estado, tanto nas bandas de lá do Atlântico, quanto nas de cá. Quando a oposição se torna maioria, e o governo não se dispõe a negociar, é esperado que se use de mecanismos jurídicos para se tornar governo. As políticas sociais antes atribuídas às “esquerdas parlamentares” foram diluídas em medidas neoliberais, assumidas por antigos conservadores e reformistas.

 

A indistinção das políticas de Estado explicita a vitória histórica do capitalismo global e da democracia liberal que se disseminam com violências e seduções, promessas e esmolas, humanitarismo e guerras intermináveis. A fé na política e no Estado vem de baixo, dos que acreditam na melhoria da vida emoldurada por uma inabalável e comum crença no Direito.

 

Ainda no século XIX, o anarquista Pierre-Joseph Proudhon explicitou para seus contemporâneos algo que era claro para os antigos gregos e romanos: direito é força. Tudo que é tido como justo e bom é produto de incontáveis lutas nas quais os vitoriosos impõem suas verdades e sua justiça como se as de todos fossem. Somente depois, a solenidade dos ritos, das mesuras, das leis, dos incensos e das togas reveste de contrito respeito e temor aquilo que a força forjou.

 

Hoje, quase duzentos anos depois de Proudhon, quem se diz de esquerda continua a ignorar o “direito da força”, crendo com devoção no direito, na constituição, nas instituições liberais e na “Justiça”. As reformas legais se justificam em nome de mais direitos ou na recuperação de direitos. A “Justiça” é, como entidade metafísica, criada como algo que se deve captar pelas mentes brilhantes de juristas, técnicos, especialistas, grandes líderes ou políticos “profetas”. Todos acreditam na “Justiça” e a luta política fica capturada nos procedimentos estéreis dos tribunais.

 

Não é preciso ir longe para constatar. Aqui, no Brasil, há pouco, a condenação em segunda instância de Lula mobilizou ondas de repúdio entre militantes, acadêmicos e juristas. Brasileiros e estrangeiros, em uma só voz, denunciaram a “farsa” de uma condenação “sem provas”, afirmando que o país vive um “estado de exceção” ou uma “nova ditadura”. A ex-presidente impedida pelo Congresso em 2016 vira musa internacional da democracia e símbolo da “injustiça golpista”, enquanto politólogos avisam que os golpes, agora, não são mais ao estilo quartelada, mas sim, tramados nas câmaras dos parlamentos. Será que não foi sempre assim? Uma combinação de corredores palacianos, escritórios de empresários e barracas de casernas?

 

Surpreende, no entanto, ver a fé no direito, na Justiça e o apego à Constituição. As oposições parecem esquecer ou, oportunamente, ignorar que o direito e tudo que é considerado legal ou ilegal, moral ou imoral, justo ou injusto é produto de incontáveis lutas, sujeições e rebeldias, no agonismo infindável da vida.

 

A atual esquerda está imobilizada na sua estrutura partidária – que reafirma e valida o Estado e o direito, e deles querem ser parte – ou está dispersa em ongueiros “progressistas”, financiados pelo capital transterritorial, que sustenta demandas por direitos individuais (precisamente, a agenda neoliberal). A sentença do ex-presidente estendeu a um antigo mandatário nordestino e de origem pobre a prática cotidiana bem conhecida da maioria dos brasileiros pretos, pobres, nordestinos, favelados. A condenação e a culpa já estão definidas a priori, sempre, assim como a absolvição de quem não se encaixa naquele perfil. Quem não sabe isso é ingênuo, ignorante ou mal-intencionado.

 

Na política não há mudanças, apenas arranjos.

 

Na política não há invenções, apenas rearranjos.

 

Enquanto isso, bandos de homens e mulheres, na maioria jovens, muito jovens, rasgam constituições e não se conformam aos polos equidistantes das oposições e governos. Na Alemanha do acordo que abre a brecha (de novo!) para que nazistas entrem no parlamento pela porta da frente, há black blocs, anarquistas, okupas, insurretos que atrapalham os encontros de líderes mundiais e solidarizam com os imigrantes. No Brasil da obsessão pela segurança e pelo líder salvador, há quem repudie o “jogo eleitoral”, inventando práticas livres para viver, morar, produzir, editar, ensinar, aprender. Na Venezuela, entre “revolucionários” e “liberais”, há anarquistas corajosos como os editores do jornal El Libertario que mostram um país que não é o que se vê nos telejornais.

 

A linguagem binária de “oposição” e “governo” compõe um duplo indissociável. São lados do mesmo disco. São partes intercambiáveis das mesmas sujeições. O direito não soluciona o agonismo das forças. Tampouco o resume a duas partes equivalentes. Tudo se move. Tudo ferve sob o carvão.

 

Ninguém é inocente!

 

 





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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