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observatório ecopolítica

ano III, n. 31, março de 2018.

intervenção militar: atualizações securitárias e letalidade estatal

 

preâmbulo

 

Fala-se muito de intervenção militar, da restauração da ordem, da falência da hierarquia policial e incapacidade de garantia da segurança do cidadão no Rio de Janeiro, dos professores de reserva do Exército que fornecem cursos de manejos de armas e estratégias de deslocamentos para as empresas dos ilegalismos... Até que, em 14 de março, a jovem vereadora Marielle Franco foi executada em pleno início da noite na cidade do Rio de Janeiro.

 

O que a polícia, o Exército e as autoridades políticas têm a dizer? É preciso arrancar suas palavras de suas gargantas e crânios. Imediatamente! Nada de aceitar o lugar comum de que o caso será investigado. É preciso arruinar os procedimentos que lhes protegem. Não se trata de ofensa ou risco à democracia. Todo crime é um crime político. Há outro tanto enorme de eventos como esse que sequer são noticiados. Não nos intimidemos diante do terror de Estado e de seus comparsas.

 

http://www.nu-sol.org/blog/marielle-presente-ato-hoje/

 

as coisas estão assim:

 

A intervenção constitucional (segundo o Art. 34 e 37 da CF de 1988) e militarizada na pasta de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro, instituída por decreto presidencial e capitaneada por um general das Forças Armadas Brasileiras, é inédita em seu formato. Todavia, está inserida num fluxo que começou a escorrer com a GLO (Garantia de Lei de Ordem) de 1992, para garantir a ECO-92 na cidade do Rio de Janeiro.

 

As GLOs são realizadas exclusivamente por ordem da Presidência da República para convocar a intervenção das Forças Armadas em situações nas quais se avalia que houve o fracasso das forças de segurança pública em garantir a ordem política e social (CF, Art. 144). Uma GLO, juridicamente, obedece ao Art. 142 e é regulada pela Lei Complementar nº 97/1999 e pelo Decreto nº 3.897/2001, que “fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, e dá outras providências”. Mas foi com a Lei Complementar 136 de 2010 que a GLO foi mais detalhada em seus procedimentos. Após sua assinatura pelo governo Lula, as ocupações dos complexos da Penha e do Alemão (entre 2010 e 2012) foram justificadas assim como, entre 2014-2015, a do Complexo da Maré, de onde provinha Marielle Franco.

 

No início de 2014, no governo Dilma Rousseff, assessores civis e militares, atendendo a uma solicitação do Ministério da Defesa, produziram um “Manual de GLO”. O documento padroniza a rotina e serve de orientação doutrinária para as tropas destacadas para este tipo de atividade exclusiva das Forças Armadas. Portanto, uma prática governamental rotineira e regulamentada.

 

A intervenção federal no governo do estado do Rio de Janeiro deu um passo à frente, do ponto de vista jurídico, e entregou a gestão da violência às Forças Armadas.

 

Feito isso, seguiram os pronunciamentos protocolares das autoridades, escorreram enxurradas de explicações, análises, comentários e opiniões por especialistas que se confundem na algaravia das coisas ditas e escritas nas telas de computadores pessoais, celulares inteligentes e televisores de tela plana, como se Terra fosse mesmo plana e bidimensional. Tudo ocorre como se ainda não fosse o fim último, ao mesmo tempo que não é o começo de nada. O certo é que os massacres continuam e se ampliam com o aval, segundos as pesquisas de opinião, de mais de 80% dos cidadãos cariocas e brasileiros.

 

Essa intervenção confirma a série autoritária nos governos democráticos e, ao mesmo tempo, aponta para os próximos passos de institucionalização desse autoritarismo com o aumento da letalidade do Estado e das forças paramilitares. É curioso notar como isso contradiz as teses sobre o estado de exceção, pois não há democracia que governe sem as exceções.

 

Hoje acompanhamos como é o seu funcionamento quando se combina saneamento monetário (que nada mais é do que realocação de recursos) com endurecimento da violência estatal, com confronto, repressão, controles eletrônicos e aceleração da indústria da construção civil construindo mais e mais prisões. A Justiça Criminal e as Forças Armadas, reconfiguradas para um planeta com fronteiras móveis e elasticamente regulado, têm papel central.

 

A Justiça Criminal se amplia e se "democratiza", tornando-se o lócus das decisões políticas em todos os âmbitos (do local-pessoal ao nacional-planetário), consolidando a judicialização da vida, que definitivamente se torna vetor e dá forma à existência pública e biológica das pessoas. As Forças Armadas redefinem suas funções, adequando-se sempre que possível às regras constitucionais e aos protocolos das organizações internacionais, para atuar em espaços seletivos e elegendo novos objetivos estratégicos. Diante dessa redefinição, o cidadão oscila entre ser objeto de proteção (vulnerável) e o virtual inimigo a ser eliminado (ora como terrorista, ora como traficante, ora simplesmente black bloc, enfim, produtor de vulnerabilidades cuja imagem idílica atual é a do corrupto). Ficam escancaradas as novas construções do inimigo público e da máxima "é preciso defender a sociedade”.

 

Confirma-se, assim, o governo como a principal tecnologia de poder moderna, que se configura como governamentalidade (objetiva e subjetiva), ou seja, o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, ainda que complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por forma maior de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Tal tecnologia de governo dos vivos, como situou Michel Foucault, não abre mão do racismo de Estado para existir; ele precisa matar. Em períodos de alegadas crises, essa letalidade aumenta e abre caminho para limpezas, novos negócios e crescimento de ilegalismos.

 

Embora a predominância policial que garante a lei e o direito seja uma constatação perene, nos últimos tempos há uma cidadania policial que se expande no Brasil. Os exemplos são inúmeros. A ampliação das condutas policiais também repercute institucionalmente, produzindo maior empoderamento e legitimação social das polícias propriamente ditas, como a Militar, a Civil e a Federal, além dos Serviços de Inteligência. As Forças Armadas passam a ser acionadas regularmente para se exercitarem como polícia, na condição de destacamento especial para emprego legítimo da violência. No Brasil, depois da ECO-92, com a Operação Rio (1994-1995), o chamamento das Forças Armadas Brasileiras, em especial o Exército, por meio da GLO (Garantia de Lei e Ordem), perdeu seu suposto caráter de excepcionalidade.

 

Com a intitulada operação de pacificação das favelas no Rio de Janeiro e as recorrentes crises da segurança pública no Norte do país, no Espírito Santo e em Goiás, pode-se dizer que o papel orgânico de força auxiliar de reserva do Exército Brasileiro, atribuído às polícias militares dos estados, foi invertido e fez das Forças Armadas os destacamentos auxiliares dos governadores, mesmo a contragosto do comando do Exército que declara, regularmente, não gostar nada disso.

 

Cidadão polícia. Polícia da polícia. Exército como polícia. Governo das polícias. Enfim, a vida polícia.

 

Tudo é possível em nome da segurança. Hoje, ela é o valor central de governantes e governados, ricos e pobres, classe média ou remediados. Tudo vira polícia, mas o alvo são as forças ingovernáveis do planeta. As formas institucionais e as justificativas jurídico-legais de quem é contra ou a favor dão sequência ao jogo. E este jogo é nutrido pela vida-polícia de cada um que clama por segurança.

 

Não devemos nos satisfazer com uma possível elucidação de uma execução de uma representante tenaz! Para a ordem, basta dar uma resposta ao que se passou com a representação política ameaçada e, desta forma, produzir mais crença nas decadentes instituições democráticas de repressão. Isso é encontrar sobrevida para o jargão “democracia é dissenso” regulado pela justiça, o direito penal e a representação, inclusive de minorias portadoras de direitos.

 

anarquistas e antimilitarismo

 

Março de 2018. Um dos maiores sucessos do chamado sertanejo universitário, quinto artista mais tocado nas estações de rádios brasileiras, publicou foto segurando um fuzil. Após declarar apoio irrestrito ao político que, como ele, é obcecado por espingardas de longo calibre, o universiotário defendeu a revogação do Estatuto do Desarmamento, em vigor no Brasil desde 2003. E vomitou: “nossas famílias e casas precisam de proteção”. Até aí, nada de novo. É somente a voz do proprietário, mais um velhaco (apesar dos 28 anos de idade), machinho acostumado a jagunços e capatazes a seu serviço, triste por ter nascido no Brasil e não no interior do Texas.

 

Não foi surpreendente que junto ao canalha, muitos agarraram com unhas e dentes o Estatuto decretado pelo governo no início dos anos 2000. É preciso lembrar que o estatuto inclui o desarmamento em seu título, mas mantém intocadas as armas do Estado, os ilegalismos das transações, os projéteis destinados à defesa das chamadas fronteiras e também para a proteção e segurança particulares de proprietários como o lambe botas do showbiz. No mais, campanhas de desarmamento ou estatutos de desarmamento apenas fazem parte da lógica democrática da continuidade do armamentismo, do capitalismo, e do Estado; afinal, não há comércio separado de produção, da mesma maneira que antes de se produzir riquezas se produzem verdades. O que se pretende intocável, dentre outras, é algo muito ínfimo e explícito: armas matam e são feitas para isto. O resto não passa de falatório para dar aval à matança e à carnificina sob a chancela do que se denomina proteção e paz irmanadas em seus prediletos interstícios aconchegados no belicismo.

 

No Brasil, em meio às polêmicas a favor ou contra a utilização de armas, requentada pela intervenção militar no Rio de Janeiro, é salutar recuperar a radicalidade da perspectiva antimilitar anarquista. Desde as agitações antiguerra organizadas pela Confederação Operária Brasileira (COB), em 1915, passando pela publicação do jornal Não Matarás no ano seguinte, somada aos textos de Florentino de Carvalho no Guerra Sociale (1916-17) de ataque direto à implementação do serviço militar obrigatório no país, destaca-se, em especial, a contundência das mulheres anarquistas. Em variados periódicos das primeiras décadas do século XX, nas páginas que circulavam de mão em mão, boca a boca, em bairros operários, corajosas mães insistiam que era preciso educar os filhos para serem livres em vez de devotos da pátria.

 

Escancarava-se que a partir de outros costumes era possível abolir as instituições destinadas a convocar os homens a servir na grande chacina, nome com que muitos designaram a Primeira Guerra Mundial. Apesar das poucas menções feitas por pesquisadores e historiadores do período, ao longo da ditadura civil-militar (1964-1985), as ações antimilitares seguiram adiante. Para notá-las basta o contato – disponível em diversos arquivos, livros e links na internet – com o jornal Dealbar, os registros de Edgar Rodrigues, os romances de Roberto Freire (1927-2008) e a Somaterapia, e, por fim, o escandaloso e debochado periódico O Inimigo do Rei (1977-1988).

 

Mais recentemente, em ensaio publicado postumamente na primeira edição da revista verve, em 2002, um ano antes da aprovação do Estatuto pelo governo brasileiro, o anarquista Jaime Cubero (1926-1998) sinalizou para a importância, em plena democracia, da retomada do combate ao militarismo. Depois de recordar o Congresso Internacional de Bruxelas de 1868 (encontro que completa agora 150 anos e no qual operários decidiram pela greve geral contra as guerras), passando pela invenção do Bureau Internacional Antimilitarista (B.I.A), em 1921, Cubero expôs que, para além das tradicionais guerras, o militarismo se sustenta pelo que chamou “indústria da morte”.

 

Cubero concluiu que é estéril reivindicar o desarmamento sem atacar diretamente o Estado, o capitalismo e a indústria macabra de armas, indústria formada, segundo ele, pela cópula entre cúpulas de governos e empresas internacionais. Conclusão ainda mais atual quando se torna público e notório que são os agentes do Estado que fornecem armas e treinamento aos que compõem o chamado crime organizado que o Estado, hipocritamente, diz combater.

 

Os apontamentos de Cubero, assim como de vários homens e mulheres libertários, são hoje imprescindíveis. Em vez de distinguirem à esquerda ou à direita, acendem novamente a chama do combate ao militarismo associado à abolição do Estado e de suas violências. Poderíamos citar outros antimilitaristas, em vários cantos do planeta e da “História”, de Gustave Courbet, célebre pintor libertário que em 1871, durante a Comuna de Paris, derrubou a Coluna Vendome, monumento de exaltação militar erigido por Napoleão, até o contemporâneo Anarchist Against the Wall, coletivo que de tempos em tempos abre brechas efetivas no muro construído pelo Estado de Israel na Faixa de Gaza. Ou, ainda, a importância das “greves gerais pela paz”, inventadas por Julian Beck e Judith Malina, na segunda metade da década de 1950, nos Estados Unidos, e que certamente foram um dos começos das grandes manifestações contrárias à guerra do Vietnã, a partir da metade dos anos 1960.

 

Em outras palavras, as histórias são muitas e a cada dia são atualizadas por novos episódios animados por jovens corajosos. Como situou John Cage, em “O futuro da música”, desmilitarizar é distinto de aderir a slogans e palavras de ordem pacifistas. Diante dos uniformes, desmilitarizar é inventar em liberdade uma outra, ou melhor, muitas outras, línguas.



R A D.A.R


manual garantia de lei e ordem

grupo tortura nunca mais/rj

 

maria lacerda de moura, “a política não me interessa”

 

antimilitarismo e anarquismo por jaime cubero

 

gustave courbet por pietro ferrua

 

"greve geral de 1917": o antimilitarismo das mulheres anarquistas e de florentino de carvalho

 

o antimilitarismo anarquista durante a primeira guerra mundial

 

entrevista com judith malina

 

anarchists against the wall

 

somaterapia

 





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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