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observatório ecopolítica

ano III, n. 34, maio de 2018.

Um rio de sangue amazônico

 

O nome do Bom Futuro é morte

 


Bom Futuro, comunidade de Barcarena, cidade distante 40 quilômetros de Belém, Pará. Ali, entre 2015 e 2017, em uma das áreas mais afetadas pela extração de bauxita — minério utilizado para a fabricação de alumínio —, pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) coletaram amostras de fios de cabelo de 90 pessoas. Concluídos no início de 2018, os estudos indicaram a contaminação por substâncias tóxicas, três delas cancerígenas: chumbo, cromo e níquel. Segundo os mesmos pesquisadores, uma criança apresentou em seu corpo um nível de alumínio 100 vezes acima da média considerada tolerável. Em depoimento, depois de contar que, devido à recorrente falta de água a família se banhava no igarapé mais próximo, a mãe da criança declarou que o filho sofre com constantes problemas de pele, coceiras e dores de cabeça.


Além das pesquisas recentes acerca do chamado impacto ambiental da extração e transformação da bauxita em alumina, em fevereiro de 2018, após dois dias de chuvas fortes, os moradores de Bom Futuro foram surpreendidos por uma enchente pouco comum: “água vermelha, cor de sangue”, como definiu uma moradora. Vizinha da mineradora norueguesa Hydro Alunorte, a segunda maior empresa de alumínio do planeta, Maria Salustiana contou em uma reportagem que a enchente invadiu sua casa e o poço de onde retira água diariamente: “Estou com uma ardência, uma queimação dentro de mim, principalmente no estômago. Tem horas que não posso nem almoçar ou comer alguma coisa porque esse ardimento no meu estômago não deixa. Eu estou secando de uma hora para outra por dentro, me sentindo mal”.


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A bauxita foi descoberta na primeira metade do século XIX, em Les Baux, na França, entretanto é largamente explorada em países tropicais ou subtropicais. Atualmente, o Brasil ocupa o terceiro lugar do planeta em relação à produção do minério, seguindo Austrália e China. Barcarena, município que abriga a comunidade de Bom Futuro, no Pará, estado brasileiro com maior índice de jazidas de bauxita, passou a ser o lugar central pela disputa do minério, prosseguindo os investimentos da ditadura civil-militar (1964-1985) que miravam a “ocupação da Amazônia”.


Desde meados dos anos 1960, os governos brasileiros concederam incentivos fiscais e creditícios a proprietários que se deslocaram para a região norte do país. A partir da década de 1970, sobretudo, na bacia do rio Trombetas, iniciou-se a extração exaustiva de bauxita no Pará pela Aluminium Limited of Canadá (Alcan). Interessado não somente na retirada do minério, mas, também, em sua transformação em alumina, o governo de Garrastazu Médici, o mesmo responsável pelo período de maior perseguição, tortura e execuções de resistentes ao Estado, articulou-se às empresas internacionais de tecnologia. Para suprir o aumento abrupto da demanda de energia elétrica na região em decorrência da atividade mineradora, Médici criou, em 1973, a Eletronorte, que rapidamente iniciou grandes obras de aproveitamento energético dos rios amazônicos, com destaque para a usina de Tucuruí, minando as resistências dos indígenas e da população local. Em 1974, quase simultaneamente, a ditadura civil-militar dizimou a guerrilha do Araguaia, organizada desde 1967, no encontro entre Pará, Goiás e Maranhão, próximo à região da grande hidrelétrica.


Pouco a pouco, na ultrapassagem dos anos 1970 e na primeira metade da década de 1980, estimulada por políticas como o Programa Grande Carajás (PPC) — conjunto de medidas tomadas pelo governo com o objetivo de levar infraestrutura para cidades próximas às atividades de mineração —, Barcarena tornou-se um importante polo da bauxita. Nos anos 1980 e 1990, no ocaso da ditadura, a cidade cresceu velozmente, devido especialmente à aliança do Estado com proprietários ligados à exploração mineral, cuja porta de entrada já fora aberta no governo de Getúlio Vargas.


Apesar da repercussão da chacina de Eldorado dos Carajás, no Pará, entre 1996 e 2018, muitos outros foram assassinados pela polícia militar, polícia federal ou pelas polícias contratadas por fazendeiros ou proprietários ligados a mineração, fazendo com que o estado mantivesse sua posição no topo do ranking da matança de trabalhadores do campo no Brasil. A morte mais recente ocorreu precisamente em Barcarena, em 12 de março de 2018, dois dias antes da execução de Marielle Franco, no Rio de Janeiro, e menos de um mês depois da enchente cor de sangue relatada por Maria Salustiana.


Paulo Sérgio Almeida Nascimento e outros integrantes da Associação de Caboclos Índios Quilombolas da Amazônia (CAINQUIAMA), desde 2017, já haviam comunicado as autoridades sobre as ameaças que sofriam de policiais militares, alertas que se perderam, como era de se esperar, no trânsito e nos trâmites entre gabinetes do Ministério Público do Pará (MP-PA) e da Secretaria de Segurança Pública do estado. A aparente omissão do MP-PA e dos funcionários da chamada segurança pública atesta o óbvio: a justiça está sempre ao lado dos proprietários e sua toga asseada. É impossível não notar que ela, assim como o solo próximo à bauxita, está cheia de sangue. Segundo moradores de Barcarena, a partir de fevereiro deste ano, depois de expor publicamente a Hydro Alunorte pela contaminação de mananciais por resíduos sólidos oriundos da produção de bauxita, as ameaças, sobretudo, destinadas a Nascimento tornaram-se mais recorrentes.


Paulo Sérgio Almeida Nascimento foi executado na madrugada em sua casa na vila dos Cabanos, bairro assim nomeado em referência direta à Cabanagem, revolta contra o governo regencial irrompida no Pará em 1835, afirmada, sobretudo, por índios e caboclos. Como escreveu um poeta a pouco mais de duas décadas, diante do que ocorreu em Eldorado dos Carajás, Nascimento é mais um entre os lavradores sem lavra convertidos em “larvas/ em mortuários despojos”. E assim, na vila dos Cabanos, mesmo lugar onde a vida já vibrou em resistências, Bom Futuro anuncia mais uma morte.


Vingança oficial


Não bastasse as regulares mortes a crédito pela contaminação de mineradoras e as execuções de quem resiste a ela, a primeira semana de abril de 2018 registrou 72 mortes violentas em apenas seis dias na região da Grande Belém, na capital do Pará. Às 11 horas da manhã de uma segunda-feira, 9 de abril, um policial militar foi alvejado por tiros no bairro de Sacramento. Horas depois, uma série de execuções tomou conta da região metropolitana da cidade. No dia seguinte, 10 de abril, uma tentativa de regaste de presos no presídio Santa Izabel terminou com um carcereiro morto e a execução de 22 detentos.


Horas após a morte do PM, um Cabo foi alvejado em Ananindeua, grande Belém. Daí em diante foram seis dias de terror. Por toda cidade, motos e carros paravam e alvejavam pessoas nos bairros periféricos. Como é comum, a morte de um policial é respondida com um banho de sangue que deve lavar a honra da corporação. E foi mais uma semana sangrenta registrada no Brasil. Foram 500 mortos em 2006, na grande São Paulo, 200 em 2017 na grande Vitória, e assim a vida urbana no Brasil registra números de guerra e empilha corpos com a mesma justificativa de sempre: o combate ao crime.


A resposta também é padrão. Após o governador do Pará recusar a oferta de envio da Força Nacional de Segurança por parte do governo federal, o Ministro Especial da Segurança Pública anunciou que este estado será a sede do Centro Integrado de Inteligência de Segurança Pública da região Norte, seguido de liberação de verbas para aperfeiçoamento do complexo penitenciário e das forças policiais do estado.


Enquanto a mídia dissemina o terror e o medo relatando histórias sobre as empresas dos ilegalismos, chamadas de facções criminosas, a polícia, como lhe é peculiar, atua também como uma gangue armada e/ou uma facção que funciona segundo a mesma lógica: dinheiro ou bala (para lembrar a expressão de Pablo Escobar: plata ou plumo).


A liberação da produção, do comércio e do uso de drogas, assim como a abolição do sistema penal, são as únicas formas efetivas para que se pare de empilhar corpos. Enquanto isso, segue a via dos reformadores com suas dispendiosas e mirabolantes soluções que, em todo Brasil, no coração da mata ou nas ruas das cidades, apenas engrossam, a produção do maior rio de sangue do planeta, um Amazonas vermelho.



R A D.A.R


Atlas de conflitos na Amazônia

Sobre o vazamento de rejeitos em Barcarena

Cinturão eletrônico do Detecta

Documentos sobre a Guerrilha do Araguaia

Ministro da Segurança anuncia a criação de um Centro Integrado de Inteligência no PA

Mortes em sequência geram pânico na Grande Belém: 16 execuções em 24 horas

Lama de Mariana chega ao litoral do ES com protesto de moradores

Maior massacre desde Eldorado dos Carajás faz 2017 ter recorde de mortes no campo.

Abolicionismo penal libertário







 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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