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observatório ecopolítica

ano III, n. 35, maio de 2018.

70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

 

Ela

 


Em 1948, o impacto produzido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) explicitou a aversão ao nazismo e realçou a imperativa democracia representativa estadunidense. Desde o início e por meio da ONU foi um dos meios para situar uma guerra diplomática contra o socialismo soviético — parceiro da vitória dos aliados na II Guerra Mundial, que expandia seus domínios político e militar pela Europa e Oriente e ameaçava dilatar-se por dois continentes de terceiro mundo como África e América Central e do Sul.


Em seus considerandos a DUDH destaca a dignidade da “família humana” cujos fundamentos da liberdade, justiça e paz estão ancorados em “direitos iguais e inalienáveis”; na liberdade de palavra, de crença e de “liberdade de viver “a salvo do temor e da necessidade”; na proteção dos direitos humanos pelo “império da Lei” para evitar a rebelião contra “a tirania e a opressão”; nas relações amistosas entre as nações; na Carta da ONU, pela qual os povos das Nações Unidas reafirmaram, “sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla”; na cooperação entre Estados-Membros e ONU na defesa dos direitos humanos; na compreensão comum para o cumprimento do compromisso. E proclama o ideal comum a ser alcançado por todos os povos e nações, garantindo a sua observância em todos os territórios.


A DUDH ficou arredondada em 30 artigos voltados para a asseveração da liberdade e de sua segurança, a prevenção contra rebeliões, a relação amistosa entre nações para evitar uma nova guerra mundial, o fortalecimento da ONU, o compromisso de cumprimento dos direitos humanos.


O projeto da declaração foi iniciado por John Peters Humphrey, então diretor do secretariado de direitos humanos da ONU, que compôs uma grande comissão contando com Eleonor Roosevelt dos EUA e René Cassin (que receberia o Nobel da Paz em 1968) da França entre os mais entusiastas e perseverantes para que em 10 de dezembro de 1948, com 48 votos a favor e nenhum contra, a declaração fosse finalmente proclamada. A URSS não a assinou juntamente com outros 5 países aliados seus; outros dois países se abstiveram: Arábia Saudita e África do Sul. Os direitos humanos passaram a ser o trampolim para o novo ajuste mundial em torno de democracia representativa e capitalismo por meio do combate diplomático contra o socialismo.


O documento passou a ser uma referência constante na política mundial depois de esquecido durante o apoio às incursões dos Estados democráticos do ocidente contra o perigo comunista fomentando golpes, mesmo depois da URSS aceitar a DUDH durante as negociações sobre a détente, entre 1973-1975, em Helsinque, e que redundou na criação da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). A DUDH também foi deslembrada diante das várias ditaduras na Europa e África depois de sua promulgação e que permaneceram funcionando. Mas a vasão dos direitos humanos na política mundial ocorreu mesmo após Helsinque, considerando-se a conferência como um dos marcos no desmantelamento da URSS.


Entre nós, a abertura política durante a ditadura civil-militar se solidificou com a política de direitos humanos funcionando como garantia para a transição pacífica para a democracia, escorada na ênfase dada nos direitos humanos pelo governo de Jimmy Carter (1977-1981) nos EUA, que lhe valeu um Nobel da Paz em 2002, a partir do acordo de Camp David. Os mesmos EUA que estiveram presentes de modo decisivo no golpe de Estado de 1964, financiando um regime ditatorial como meio necessário para a devida reforma institucional em direção à democracia que lhes interessava, agora sabiam lembrar, com eficiência, a importância da DUDH para a efetivação do ajuste final em direção à democracia representativa no Brasil.



Por aqui, as forças reativas viam, até recentemente, os direitos humanos como política de esquerda. Hoje, metamorfoseadas em sentinelas democratas já não se assustam com o poder de abrandamento desta declaração e usam os direitos humanos como meio para contestarem movimentos antipolíticos vistos como ameaça de rebelião à legitimidade soberana, e cujo apogeu aconteceu com a promulgação da Lei Antiterrorista pela então presidenta Dilma Rousseff, uma ex-guerrilheira. Hoje, as forças reativas formam o baixo chorus line aos que pleiteiam direitos de minorias, abrilhantando o espetáculo dos moderados.



A DUDH inaugurou o que vivemos neste momento com a profusão de direitos de minorias, criminalizações de condutas, formais igualdades de gênero, apego à sustentabilidade, à punição e à continuidade de encarceramentos desde que estes sejam humanizados.


Hoje


A DUDH complementa, por meio da fraternidade, os outros dois vértices de liberdade e igualdade do triângulo isósceles herdado da Revolução Francesa. Trata-se, agora, de depositar e consolidar as esperanças no amor entre os povos, no cosmopolitismo kantiano, no investimento em paz. A fraternidade entre Estados deve ter como correlata a paz interna, ou seja, a produção de uma cultura de paz capaz de fazer cessar a iminência da guerra civil e ajustar a rebelião ao âmbito da legitimidade da soberania, o que já era conhecida desde os escritos de John Locke no século XVII.


Porque todos nascem livres, todos têm direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal e a estar protegido das condições de escravidão e torturas pela lei e o exercício do tribunal (Artigos I a XI). “Ninguém estará disponível à invasão de privacidade e com ‘direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques” (Artigo XII). Há o direito à moradia no território, de sair e regressar ao país, de pedir asilo quando perseguido, de obter uma nacionalidade, de escolher com quem casar e formar uma família (Artigos XIII a XVI). A comunicação imediata com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 é direta e fortalece o seu artigo XVII: “1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”, que, curiosamente, corresponde ao artigo XVII da DUDH: “Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização”. Chega-se, finalmente, ao elemento fundamental da declaração democrática e capitalista fundada na cidadania dos deveres atualizada depois de quase 160 anos.


Daqui decorrem os já sabidos direitos à religião, liberdade de opinião, expressão e associação (desde que não contradiga a formalidade da rebelião, cf. Artigos XVIII-XX). A democracia representativa é definida como exclusiva (Artigo XXI) e aos cidadãos comuns cabem o direito à segurança e aos direitos econômicos, sociais e culturais “indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade” (Artigo XXII) como trabalhador em condições de ocupado ou de desempregado, com remuneração igualitária “justa e satisfatória”, com direito a organizar sindicato e a horas de lazer (Artigos XXIII e XXIV). O cidadão cumpridor de deveres deve ser um bom trabalhador para obter o salário que lhe será satisfatório e justo, assim como poder receber proteção social do Estado quando necessário. O cidadão comum é o trabalhador obediente, seguidor dos governos que ele escolhe e fiscaliza. A democracia liberal e as variações da exploração capitalista, portanto, andam ladeadas pela formalidade de direitos sob o império da lei.


A DUDH passou a funcionar efetivamente a partir de agora, com a interceptação do welfare-state e forçando o trabalhador a se metamorfosear em capital humano empreendedor que deve cooperar com o capitalista, produzindo seu direito a um padrão de vida que lhe assegure a velhice, a maternidade e a saúde das crianças em família (Artigo XXV). Todos os trabalhadores, homens e mulheres, devem ser nivelados pela igualdade salarial e pelo governo das condutas por meio de ajustes com criminalizações e punições acentuadas e variadas. Empodera-se mulheres ao mesmo tempo em que traz as obrigações para o âmbito do compartilhamento entre Estado e o trabalhador (capital humano) na saúde e na educação de crianças em função da participação social, empoderando-se minorias (Artigos XXVI e XXVII).


Os deveres para com a comunidade são enfatizados, produzindo um hommo oeconomicus neoliberal individualista e um sujeito de dever (direito) “coletivista” voltado para a colaboração na gestão de cada comunidade na ordem social internacional, destacando que a liberdade de cada um começa onde termina a do outro (Artigos XVIII-XXIX). Estão assim garantidos os direitos humanos (Art. XXX), seja nas condições imediatas à II Guerra Mundial, com as variadas formas de governos políticos dos interesses capitalistas procurando conter a expansão socialista ou qualquer outra maneira de enfrentamento à propriedade individual ou estatal, seja consolidando o dimensionamento neoliberal a partir do final do século passado.


Convocado a participar, o cidadão trabalhador como capital humano empoderado é também integrante de minorias proativas no governo das comunidades, e dele se espera um monitoramento constante da gestão do Estado, de seus representantes e dos seus parceiros e vizinhos para que tudo siga normalmente. Os Objetivos do Milênio (200-2015) levados a cabo com sucesso foi ampliado em Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2015-2030), pelos quais se compreende não haver mais nações desenvolvidas ou em desenvolvimento, mas nações compartilhando situações que devam levar melhorias para as futuras gerações. Trata-se de uma programática conservadora e moderada que por meio da convocação à participação pretende ativar a cultura de paz no capitalismo, dinamizando a fraternidade.


A DUDH é o documento referência para a continuidade do capitalismo global e de aspiração democrática que, em termos de capitalismo liberal ou neoliberal, é a continuidade do MESMO. Para governar o Estado, o capitalismo jamais prescindiu de outros regimes, mesmo os totalitários, para lhe dar sustentação. Hoje, esta prática está coroada pelo incentivo à sustentabilidade, às minorias e à participação, que também estão produzindo mais fissuras na crença na representação partidária e na rotina eleitoral.


Conservar o planeta segundo as modulações de sustentabilidade é a nova meta a ser alcançada, porém com meios tão variantes que desestabilizam de modo intermitente a globalização idealizada como bem confirma o refluxo nacionalista. Entretanto, como qualquer meta definida pelos superiores da hierarquia é a verdadeira, quando ela passa a ser definida de modo compartilhado com os cidadãos estratificados ela se torna mais verdadeira ainda.


Resistir sob esse cenário é mais que ajustar-se às rebeliões para renomear a soberania legítima. Por isso mesmo, nos dias de hoje, resistir é tido como sinônimo de resiliência em função de uma cultura de paz. E a resiliência faz funcionar a positividade de poder capitalista seja entre os nostálgicos do welfare-state, os reativos nacionalistas, os adoradores da globalização e dos direitos humanos como coroamento neoliberal, à esquerda e à direita.



R A D.A.R


DUDH, 1948.

ONUBR.

OSCE. Organization for Security and Co-operation in Europe.

ODM – Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789.

Lei Antiterrorismo Brasil: Lei 13260 de 16 de março de 2016.

Documentário Ecopolítica Direitos.





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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