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observatório ecopolíticaano III, n. 36, maio de 2018. 5 anos de junho de 2013:
No meio dos escombros de junho de 2013.
Desde 2003 o MPL (Movimento Passe Livre) promovia manifestações que tinham como objetivo a gratuidade do transporte público a médio ou a longo prazo. Em junho de 2013, anunciava-se um aumento de R$0,20 na tarifa de R$3,00 na cidade de São Paulo. O que se previa como mais uma pequena manifestação tomou outras dimensões. Por todo o país, jovens — e não tão jovens — mostraram que nos R$ 0,20 havia um questionamento sobre o modo e o custo de vida nas grandes cidades. A chamada ampliação do consumo das classes populares, alimentadas por bolsa-isso, bolsa-aquilo, no governo de um partido de esquerda não garantiu a satisfação de uma parte da população. Em pouco tempo, a violência policial incrementou o fogo dos insatisfeitos. Os respingos dessa violência atingiram a mídia oficial e a mídia alternativa. Estas colocaram a truculência policial nas capas dos grandes jornais e na imprensa internacional. Os dias de embates se estenderam e uma parte surpreendente da população aderiu às ruas. Foi impossível estabelecer um consenso sobre a motivação de cada um. As ruas atraíram desde aqueles que afirmavam sua vida contra a propriedade e o Estado, até aqueles que queriam um Estado melhor. A grande cobertura jornalística distinguia os bons e os maus manifestantes em referência à atuação dos black blocs, identificados a princípio como vândalos e, posteriormente, associados aos anarquistas. No ano seguinte, diante da Copa do Mundo, a demanda por mais Estado cresceu com o jargão “padrão FIFA”. Como de praxe, as revoltas das ruas não reverberaram nas eleições e o resultado estampou na reeleição da presidente os índices de abstenções, votos brancos e nulos que de lá pra cá só crescem. Os meios institucionais apenas confirmaram o coro da massa abúlica. Entre a Copa e as eleições cresceu a presença dos chamados coxinhas nas ruas contra o então governo de esquerda. As manifestações “pacíficas”, tingidas de verde e amarelo, sobressaíram. A cobrança pelo fim das impunidades na corrupção tornou-se o mote para os sossegados capangas com suas armas a tiracolo. Os representantes da esquerda — que apoiaram os ataques verbais aos chamados black blocs — passaram a se declarar vítimas e alvos de um golpe, quando o impeachment da presidente foi colocado em pauta na mídia, nas ruas, na câmara, no congresso. Em meio ao processo do impeachment, a então presidente assinou, em 2015, a Lei Antiterrorismo, fato estrategicamente ignorado pela esquerda. Com o triunfo do impeachment da presidente, não tardou para a esquerda cobrar o apoio dos black blocs em suas manifestações, sob a justificativa que o novo governo era uma artimanha contra a democracia. Cinco anos depois da explosão nas ruas, impulsionada pelo mote dos vinte centavos, a tarifa de ônibus em São Paulo chega a R$ 4,00; o popular ex-presidente que elegeu sua companheira deposta soma-se aos tantos outros encarcerados e processados em operações contra a corrupção e a favor do fim da impunidade; uma nova copa do mundo segue em curso na Rússia; o país se prepara para as eleições em que o ressentimento reacionário da população é evidente. A violência policial impera, e as constantes mortes no Rio de Janeiro não parecem comover nem a população nem a grande mídia! Se em 2013 o MPL venceu com a paralisação do aumento da tarifa, cinco anos depois, o aumento imposto pelo governo voltou à normalidade, dando continuidade aos seus negócios com as empresas, as máfias dos transportes municipais. Ao mesmo tempo, prosseguem as paralisações de ônibus como estratégia de negociação entre empresas e governos. No mês de maio, a mesma estratégia foi utilizada por condutores de caminhões, o que paralisou consideravelmente a circulação de produtos e combustíveis no país. Desta vez, relacionada frequentemente à direita, esta greve conseguiu o feito de parar o país às vésperas da recente Copa do Mundo. A esquerda ficou paralisada com medo de golpe. A direita concluiu seus negócios e o país voltou a funcionar a tempo de assistir à Copa do Mundo. A prisão do ex-presidente coloca em xeque a estratégica tentativa de renovação da esquerda, naufragando em judicializações de escândalos de governos passados. Se durante o período em que esteve no governo não faltaram ataques e acusações às práticas contestadoras, alimentando o discurso que igualava anarquistas aos fascistas, agora a esquerda encontra oportunidade de tentar arrebanhar os radicais encapuzados contra os inimigos da ocasião enquadrados genericamente como fascistas e golpistas. Nas pré-campanhas eleitorais, sobressai o “candidato da bala”, enquanto outros pré-candidatos tropeçam aqui e ali em meio às investigações de corrupção. Ao mesmo tempo, a implementação da biometria dos eleitores segue, sem muita (ou quase nenhuma) resistência, reafirmando que a vontade de aprisionamento estende-se normalizada para vida e para o corpo de cada um. As notícias sobre a violência policial seguem acompanhadas pelas notícias de violências contra policiais. A polícia também sabe se fazer de vítima. E enquanto (quase) todos amam a polícia, debate-se a falta de investimento no bom policial, boas condições de seu emprego. A maior parte da população explicita o desejo por polícia, a despeito dos assassinatos praticados por seus agentes, noticiados constantemente na imprensa por todo o país. Enquanto alguns jovens rebeldes de 2013 procuram encontrar o seu fluxo depois da chama que incendiou agências bancárias e prédios do governo, os envelhecidos fascistas, em sua pouca ou muita idade, expandem seus desejos de extermínios, marcando sua posição na pluralidade democrática. Desde 2013 cresceram as variadas organizações liberais, com seus jovens benfeitores com vocação de políticos e de polícia. O que era apartidarismo, aos poucos vai se acomodando em partidarismos ou apoios solidários desta parte da sociedade civil organizada para que o ritual eleitoral ocorra pacificamente.
Junho de 2013: cinco anos em brasaAs jornadas de junho de 2013 foram um acontecimento intempestivo. Não há como resumi-las e/ou sintetizá-las. Não é à toa que até hoje se produz uma infinidade de análises, conjecturas e ilações sobre elas e seus efeitos, que se desdobram em diferentes níveis e interesses. Mas nenhuma delas arisca um parecer definitivo sobre o que se passou e o que produziu. Não há como estancar, a despeito das doutas análises, os efeitos produzidos nos corpos dos quem estiveram nas ruas naqueles dias de inverno tropical temperado. São inúmeras as moles tentativas de enquadrá-los em padrões e preferências políticas. Mas, precisamente por ser um acontecimento, todas as tentativas malogram. Por isso mesmo, esse acontecimento não cessa de provocar desconfiança e irritação entre os devotos da política, à direita e à esquerda, que muitas vezes se unem como detratores mais ou menos diretos dos que se envolveram nos embates de rua. As jornadas de junho de 2013 não foram um raio em céu azul, como muitos querem fazer crer, elas têm uma história de emergência contra-histórica. De um lado e de forma mais geral, elas se inscrevem numa onda planetária de movimentos de rua que se desdobraram do movimento antiglobalização, como as diversas “primaveras” no norte da África e os movimentos de ocupação de praças que tiveram especial repercussão na Grécia, na Turquia, na Espanha e nos EUA. De outro lado, as jornadas de junho foram a expressão de um amplo campo de uma juventude anticapitalista desalinhada com o projeto de “Brasil grande”, com sua economia desenvolvimentista, sua política de participação paralisante e seu sistema de justiça inclusivo, superencarcerador e de extermínio, além do diversionismo identitário característico do capitalismo cultural. E para além das análises que tentam diluir tudo na dispersão de pautas ou colonizar eleitoralmente a insatisfação, é preciso estancar a especificidade do que levou ao estouro nas ruas da cidade de São Paulo e depois se espalhou pelo país: a luta contra o aumento da tarifa e a revolta contra a violência policial. As jornadas de junho possibilitaram a emergência do ingovernável diante de um país megagovernado. O Brasil dos megaeventos (Rio+20, Copa da FIFA, Olimpíadas), das mega-obras (Belo Monte e similares do PAC), dos megaprojetos de segurança pública (RDMax, UPPs, GLOs), da megapolítica externa (BRICs e MINUSTAH), enfim, o país do Cristo Redentor decolando na capa da The Economist. A expressão escandalosa desse ingovernável foram os insuportáveis praticantes da tática black bloc e suas relações com a anarquia. Em sua corajosa confrontação direta e corporal com os terminais das práticas de governo (polícia, prédios estatais e símbolos das corporações transnacionais) abriram uma brecha para alertar sobre o intolerável de quem estava sendo pisado por esse gigante. Expuseram como o esplendor de Estado desse “Brasil Grande” era alimentado por acordos escusos com empreiteiras e especuladores, que grassavam nas colunas sociais e museus a céu aberto. Nessa brecha de junho de 2013 passou tudo, inclusive a maioria autoritária, racista, machista, homofóbica e sedenta por punições que sempre habitou essas terras. Trazer esse Brasil à luz do sol não equivale a criá-lo, como querem os detratores dos que estiveram nas ruas naqueles dias. As jornadas de junho produziram um ato de parrésia desinvidualizada, como o rosto coberto de negro de um black bloc, a ponta da revolta antipolítica de muitos que foram às ruas. Em bloco negro, empurraram-se questões incômodas para a luz do sol e, com isso, provocou-se o escândalo. A ira das autoridades governamentais, midiáticas, intelectuais e empresariais que organizaram uma ampla reação, à esquerda e à direita, despertou. Uma reação que vai desde a repressão brutal com tropa de choque, investigações policiais, Exército e Força Nacional de Segurança nas ruas com inúmeras detenções e prisões, até os esforços em salvar a política, com tentativas de fomentar uma “nova política” no campo participativo e identitário, por parte do que se chama de esquerda, e figuras envernizadas como algo novo e se autoproclamando não-políticos por serem gestores de angústias e medos, por parte do que se chama de direita e esquerda. Essa recusa ao enquadramento é o que ainda impacienta e incomoda, quando se lembra e se relembra das jornadas de junho em todo território nacional. Cinco anos depois, o fogo de junho é brasa. Muito de sua revolta antipolítica foi calada à força pela repressão e parte de sua potência capturada pela nova política. Mas, como brasa, segue aquecendo a revolta, forjando o ferro, de forma invisível e imperceptível, como trabalho paciente. R A D.A.R MPL
O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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