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observatório ecopolítica

ano III, n. 37, junho de 2018

A Copa do Mundo...

 

segue o jogo?

 


No dia 9 de maio de 2017, o governo russo de Vladimir Putin anunciou o Decreto Presidencial No. 202, no qual reforçou as medidas de segurança para a realização da Copa das Confederações e da Copa do Mundo. Essas medidas operaram de 1 de junho a 11 de julho de 2017, e neste ano voltam a operar entre 25 de maio e 25 de julho.


Além de proibir qualquer manifestação “massiva” durante os megaeventos, o Decreto estabelece uma “responsabilidade administrativa de violação da ordem” para “piquetes individuais”. Na Rússia, antes mesmo dos recentes eventos internacionais, as manifestações são brutalmente reprimidas pela polícia e, raramente são realizadas com autorização oficial. Não é raro assistir pessoas segurando cartazes com frases de protesto em frente ao Kremlin. É esse tipo de protesto que o Decreto define como “piquetes individuais”.


Desde o início do Mundial, algumas ações como estas aconteceram e seus autores foram detidos. A única ação a ser largamente noticiada foi realizada pelo inglês Peter Tatchell, ativista da causa LGBTQ+ e dos Direitos Humanos. Entretanto, outros eventos semelhantes ocorreram, como o pôster erguido em Moscou, em “área restrita”, durante a abertura do evento, em que se lia “Campeonato Mundial de Torturas”. O protesto foi reivindicado pela Open Russia, grupo em defesa dos Direitos Humanos e que clama pelo que chamam de aperfeiçoamento da democracia no país. No dia 26, também em “área restrita” na cidade de Moscou, a mesma organização manifestou-se em apoio à liberdade de Oleg Sentsova, cineasta ucraniano condenado a 20 anos de prisão por se opor à anexação da Crimeia pela Rússia e que atualmente sobrevive em greve de fome. A Open Russia instalou uma releitura da taça da Copa do Mundo, ampliada e envolta por arame farpado, na qual se lia “Free Sentsova”. Na noite do dia 26, Elena Menshenin, coordenadora da organização, foi detida enquanto panfletava pela liberdade do cineasta. Tanto Menshenin quanto Tatchell foram liberados em seguida.


Alguns ativistas pretendem obter visibilidade durante a Copa e o conseguem. Todavia, mesmo em meio à abundância de jornalistas na cobertura do megaevento, há uma barreira que impede a circulação de informações sobre protestos e ações radicais. Nem a chamada democrática imprensa estrangeira noticia o que está acontecendo agora na Rússia, seja o espancamento de um casal de homens gays franceses, poucas horas antes do início de um dos jogos, sejam os protestos contra a nova lei da aposentadoria, realizados em diversas cidades, desde o dia 16 de junho.


Mais de 50 pedidos de autorização para protestar contra a lei de aposentadoria foram indeferidos até o dia 21 de junho, e apenas 7 cidades permitiram as marchas. Na maioria delas, os protestos serão realizados dentro dos limites territoriais de praças e parques. Em Novosibirsk, uma das tantas cidades que abrigou campos de concentração durante o regime soviético, a Comissão Antiterrorismo negou quatro pedidos diferentes para manifestações sob a justificativa de que os “reais objetivos” das ações estavam ocultos e que, provavelmente, ocorreriam motins e ações incendiárias contra o governo.


Somado aos indeferimentos, na segunda semana de jogos, a Suprema Corte aprovou que qualquer siloviki (oficial das forças de segurança ou militar) pode apreender materiais de “extremismo” e invadir locais sem necessidade de decisão judicial prévia. Apesar de tantas restrições, na noite de 25 de junho, uma senhora escapou das forças de segurança. Nua, saiu pela rua berrando e xingando as autoridades e o projeto de lei da aposentadoria. Foi imediatamente levada para o departamento de neuropsiquiatria do Hospital Regional de Khanty-Mansiysk Okrug, em Khmao.


Com o objetivo de negociar as violências do Estado, no dia 20 de junho, em visita à Rússia, o Secretário-geral do Conselho da Europa, Thorbjørn Jagland, limitou-se a pedir clemência a Putin e exigiu a libertação de Oleg Sentsova “por razões humanitárias”. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, simultaneamente, solicitou a Sentsova interromper a greve de fome e determinou que o governo russo forneça informações sobre a saúde do cineasta. O Tribunal também determinou que a Rússia deve pagar uma indenização de 24.600 euros, por danos morais, a 13 pessoas que foram detidas preventivamente sem quaisquer justificativas.


Deste modo, na Rússia, segue o jogo. De um lado, o Estado e a política defendem sua meta, ou melhor, a propriedade e, de outro lado, cordatos ativistas pouco dispostos a um ataque direto tentam alçar ao protagonismo. Contudo, na Rússia, como em toda peleja, a qualquer instante, algo de surpreendente pode irromper.


é no ataque!


Como parte das operações especiais de segurança para o megaevento, foi iniciado em outubro de 2017 o “caso Penza”, operação antiterrorismo que tem como alvo a Network, suposta rede de associações de anarquistas e antifascistas que teria pretensões incendiárias durante as eleições e a Copa do Mundo. De acordo com o FSB (Serviço Federal de Segurança russo), esta rede usaria explosões para “agitar as massas no sentido de uma desestabilização da situação política no país” com o intuito de “promover uma rebelião armada”. Apesar de pouco divulgado fora do país, o “caso” foi muito noticiado pela imprensa russa – em sua maioria, estatal –, e gerou comoção popular. Segundo as autoridades, as células dessa rede operam em Moscou, São Petersburgo, Penza e na Bielorrússia.


Durante os primeiros meses da operação, no fim de 2017, foram detidos em Penza: Yegor Zorina, Ilya Shakursky, Basil Kuksov, Dmitry Pchelintsev, Andrey Chernov e Armand Sagynbaeva. Em janeiro, foram detidos em São Petersburgo: Viktor Filinkov e Igor Shishkin. Viktor Filinkov, Dmitry Pchelintsev, Ilya Shakursky e Igor Shishkin descreveram por meio de cartas algumas as torturas às quais foram submetidos. Trechos destes relatos foram divulgados, via transmissão ao vivo, na página do Facebook da mídia alternativa Media Zona (criada pela ex-integrante da Pussy Riot, e atual ativista dos Direitos Humanos, Maria Alyokhina).


Após a divulgação das torturas, alguns desses libertários foram submetidos a exames para averiguação. Apurou-se que os hematomas não eram o suficiente para a abertura de processos e que algumas marcas oriundas de eletrochoques foram classificadas como “picadas de percevejo”. A menção ao inseto, associada à prisão de militantes considerados perigosos, não é fortuita. Há um século, logo após a revolução de 1917, o percevejo foi identificado como praga a ser combatida pelas campanhas de saneamento implementadas por Lênin. Em 1928, revoltado com os rumos da revolução, um ano antes de dar cabo da própria existência, o poeta Vladimir Maiakovski nomeou de Percevejo sua contundente peça de teatro. Cem anos depois, passadas quase três décadas desde o ocaso da chamada União Soviética, o inseto volta a habitar os pronunciamentos de autoridades que perseguem libertários.


Maxim Ivankin e Mikhail Kulkov, que também estavam na lista de perseguidos do “caso Penza”, conseguiram escapar da Rússia e estão classificados como foragidos. Alguns amigos e companheiros desses anarquistas também deixaram o país. Outros são asilados políticos, como Alexandra, a companheira de Viktor Filinkov, que saiu de Kiev rumo à Finlândia. E as perseguições não findaram, mesmo após a divulgação das torturas. Em abril, novas acusações foram formalizadas, desta vez contra Yulia Boyarshinova e Vasily Kuksov, também sequestrados pelo Estado em Penza. Os acossamentos se ampliaram e ações solidárias aos anarquistas presos foram investigadas e reprimidas.


Para além do “caso Penza”, em Moscou, as detenções começaram em janeiro deste ano após uma ação direta contra um escritório do partido de Putin. Foram presos: Elena Gorban e Alexey Kobaidze, acusados de vandalismo. No mês seguinte, em Chelyabinsk, três libertários fixaram uma faixa no portão do FSB estampando: “FSB: o principal terrorista”. Dmitry Tsibukovskog, Dmitry Semenov e Anastasia Safonov foram detidos, espancados e torturados. Depois, foram detidos o primo de Tsibukovskog, Maxim Anfalov, e o morador de rua Maxim, para “fins investigativos”.


Segundo fontes independentes e não-estatais da mídia russa, as autoridades procuravam obcecadamente o líder da Autodefesa do Povo, uma plataforma anarquista online que se desdobra também em perfis em redes sociais como VK, a rede social mais popular na Rússia. Às vésperas das eleições, em março, novas detenções e torturas, e dessa vez a de Svyatoslav Rechkalov, suposto líder da Autodefesa do Povo. Na Crimeia, no mesmo mês, o anarquista Yevgeny Karakashev foi preso por “suspeita terrorista”. Para justificar a detenção apresentaram como prova uma conversa em um chat de rede social. Pouco tempo depois, em uma operação de busca, invadiram a casa de Alexei Shestakovych. Depois de ser torturado, Shestakovych conseguiu deixar o país.


Às vésperas da Copa, autoridades revogaram o processo contra Dmitry Tsibukovskog, Dmitry Semenov e Anastasia Safonov. Consideraram que a faixa pendurada no portão não é “vandalismo”. Interromperam também o processo contra Sofia Bazhenova e seu companheiro, Igor Martynenko, ambos libertários presos em Irkutsk no dia 14 de junho, devido à suposta participação em manifestações desautorizadas no 1º de Maio. Entretanto, Dmitry Pchelintcev Basil Kuksov, Shakursky Ilya, Andrey Chernov e Viktor Filinkov, todos detidos no “caso Penza”, permanecem sob custódia até o dia 18 de setembro. E Ilya Shakursky foi posto na solitária no dia 25 de junho, por “conversar com outros presos” durante a caminhada. Dmitry Pchelintsev também já foi trancado na solitária, continua preso, e o Estado se nega a oferecer-lhe tratamento dentário. Assim como Bakunin no século XIX, que perdeu os dentes depois de ser encarcerado na Fortaleza de Pedro e Paulo, Pchelintsev corre o risco de perder parte da arcada dentária. A política covarde não funcionou com Bakunin, que mesmo sem dentes fugiu da Rússia e pôde desfrutar de um dos seus maiores prazeres, as ostras. Tampouco funcionará com libertários que não admitem disputar qualquer partida política.


Às vésperas da Copa, a perseguição aos anarquistas na Rússia escancara a maneira como o Estado tenta se manter por meio da violência sistemática, seja em uma ditadura ou em uma democracia. Mas os amantes da liberdade e da bola sabem que somente no ataque é que se ganha este jogo.



R A D.A.R


Ação FSB: o principal terrorista.

Manifestação em Moscou contra o FSB e a prisão de anarquistas, fevereiro de 2018.

Notícias:

http://revbel.org/

https://naroborona.info/2018/06/16/chem-zanimayutsya-anarhisty-v-rossii/

https://vk.com/class__war

https://zona.media/

https://www.khodorkovsky.com/programmes/open-russia/

https://rg.ru/2017/05/10/prezident-ukaz202-site-dok.html





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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