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observatório ecopolítica

ano III, n. 40, outubro de 2018.

Mercado do ressentimento nas eleições no Brasil de 2018.

 

 


O traço distintivo da política moderna é a promessa de racionalização da violência. Seja nas formulações de suas ficções ou molduras jurídicas, seja na operação regular das tecnologias de governo, o Estado garante sua continuidade na promessa de afastar a violência não legítima do corpo de seus governados. A essa promessa de segurança, somam-se as promessas da salvação. Ao se impor a tarefa de livrar os corpos dos cidadãos das demais violências virtuais e reais, o Estado também promete prover ou regular os meios para conservação da vida biológica do conjunto dos que se encontram sob seu governo.


Desde suas formulações iniciais, o Estado expressa o consentimento a uma autoridade que, sob o signo do medo, promove a esperança de paz entre os governados. Desta maneira a resultante da promessa de paz é a centralização da guerra, das disputas, dos conflitos que passam a se organizar em torno do Estado, que se pretende maestro da pacificação das lutas sociais, evitando a iminência cotidiana da guerra civil. Enquanto se perpetua com esta estratégia geral, opera suas táticas regulares de renovação dessa pretensa eficácia de centralidade e da promessa de paz, desde que a disputa pelo monopólio da violência esteja em conformidade com a continuidade e controle do Estado. Nas democracias modernas uma das estratégias principais dessa renovação uniforme é o regular processo eleitoral por meio da representação política.


As eleições majoritárias de 2018, no Brasil, expõe esse expediente de forma muito evidente. Qualquer um capaz de dar um passo ao lado ou levantar, ainda que levemente, a cabeça, nota o quão ridículo, chantagista e miserável é esse processo de justificativa regular procedimental, domínio estatal democrático que no Brasil contemporâneo começa com a herança da ditadura-civil militar: o voto obrigatório.


Ainda que se saiba que a vida segue e que as práticas de governo passam ao largo, ao lado e abaixo da institucionalidade estatal, o período eleitoral é o momento de resplendor dessa tecnologia social moderna nomeada como Estado. E precisamente por ser o centro que valida os fluxos de poder, mesmo que exista uma via ascendente e descendente de validação de condutas, o espetáculo ritualístico amplamente legitimado autoriza em suas franjas condutas que até então eram socialmente vergonhosas ou mesmo legalmente reprováveis.


No pleito de 2018, o chamado embotamento cognitivo e a mobilização sentimentalista e moralista governam candidaturas e eleitores. Isso não equivale a dizer que todas as figuras que disputam o amor do eleitorado são iguais, mas notar que o sentimento que levará cada votante a apertar o botão verde situa variados temores e algo de vingança. Assim, logo que as cortinas deste espetáculo dantesco, cada vez mais assemelhado a um reality show, fecharem a resultante será a continuidade das violências legítimas e truculentas como o terror de Estado, as seletividades penais acentuadas, as programáticas de governo de crianças e jovens, a variabilidade de dispositivos de segurança, de monitoramentos, de perseguições em maior ou menor grau, a depender da reação de perdedores e vencedores, sejam eles eleitos ou eleitores. Somado a isso, a violência social pode se agudizar, especialmente entre aqueles que não reconhecerem o resultado final do pleito. Novamente, isso não equivale a dizer que seja qual for o resultado tudo será igual, mas notar que uma forma social é vitoriosa de antemão: a violência política condensada institucionalmente no Estado e em seus dispositivos de segurança e monitoramento. Em poucas palavras: a forma procedimental de pacificação social pela violência racionalizada e legítima, neste ano débil, dá sinais de uma intensificação do terrorismo de Estado. A história mostra que, em gradações, ela sempre se ajusta para efetivar a vida governada também pelos próprios súditos. O sangue nunca deixou de escorrer nas frestas desse processo e o banho de sangue não é metáfora, mas produto de caudalosos confrontos.


Neste ano, o ressentimento e a iminência da catástrofe produzida pelo outro foram a tônica dominante na comunicação contínua e eletrônica de eleitores e candidaturas. O clima geral de fim de mundo com o devido Juízo Final pelos ventríloquos condutores moralizadores fez com que cada candidatura projetasse o apocalipse na vitória de seu adversário com ou sem uma programática de governo.


Em uma relação na qual está em jogo condutores e conduzidos, a via nunca é de mão única e tampouco há o maniqueísmo dos que mandam sobre os que obedecem. Não há candidatura que não expresse a forma como gostaria de ser governada a sua parcela do eleitorado, e nisso o fascismo é somente a ponta mais amedrontadora. Se o pleito atual expõe condutas fascistas e autoritárias que se encontravam incubadas até poucos anos atrás, não será o fim do processo eleitoral que fará com que essas condutas desapareçam da vida social cotidiana.


Em 2018, como o ressentimento é enorme, e se generalizou, a oferta de pacificadores não foi variada. Para efeito de análise, a oferta do mercado do ressentimento pode ser resumida em: 1) o condutor austero, autoritário, violento, verborrágico e soldado patriota, capaz de mobilizar o vazamento da legitimidade convencional do Estado; 2) o Ideal condutor benevolente, responsável e que já deu provas de sua bondade, capaz de mobilizar a nostalgia, o messianismo, o perdão e as esperanças vãs por meio de seu preposto; 3) o pastor evangélico insensato, que condensa de forma caricata e cômica as imagens 1 e 2.


Num primeiro momento o leitor identificará uma das imagens a um sujeito que disputou o pleito, mas com um pouco menos de ansiedade por respostas, é possível notar que as três imagens aparecem em todos os candidatos, variando em grau e intensidade. Comum a todos foi a oferta de salvação diante de um mundo degenerado e degradado em decomposição.


Em torno da primeira imagem estão grupos insensatos — e o insensato é o reverso do que se espera por tolerante —, nos quais o ressentimento desperta ódio a tudo que não seja o fielmente idêntico ao ideal de si. Na segunda, estão os fiéis benevolentes, que se desejam moralmente superiores e afáveis, que diante do lobo raivoso vendem, às ovelhas negras do rebanho geral, proteção na submissão, na adesão e na razoabilidade do possível e do “necessário neste momento”. Nestas duas imagens, dispostas como polos equivalentes, mas não simétricos, o moralismo e a arenga do ressentimento tomou o lugar da política tal qual foi definida desde o Renascimento: uma forma racional de adequação de meios a fins. Se autoproclamar honesto, dadivoso, justo, benevolente, pai austero ou extremoso, tornou-se a via para conquistar corações mentes — e se o pai desde o direito romano é o dono da prole, do rebanho, da mulher e da casa, o tempo ajustou a figura do pai provedor ao de figura compartilhada na gestão do rebanho. A figura de Deus como vingador ou o garantidor dos verdadeiros valores religiosos de respeito à vida foi invocada invariavelmente para abençoar o conteúdo discursivo das figuras 1 e 2 de candidatos pastores, servidores de Deus, fundindo o vingador Deus do Antigo Testamento e o amoroso Deus do Novo Testamento. A resultante disso reitera o Estado como a forma laica do poder pastoral capaz de prover com amor ou vingança, o que recebe o nome de justiça.


As pesquisas, na semana final das eleições, mostraram que a disputa de segundo turno ficaria entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), mandatário de Lula; ou, no limite, com o primeiro ganhando no primeiro turno, ou ainda, de repente tendo outro contendor que abocanharia a segunda vaga como surpresa nada descartável, o que é previsível em corridas eleitorais, principalmente quando o voto é obrigatório. É evidente que a figura 1 traz os traços de Bolsonaro e a figura 2 de Haddad. Mas se olharmos bem, há elementos de 1 em 2 e de 2 em 1, assim como podemos identificar traços das duas figuras em outros concorrentes ao pleito. Aliás, não faltou candidato ao posto de intermediário como figura de centro, ou seja, um outro pacificador de ocasião.


Importa nesse mercado do ressentimento constituído nestas eleições que a oferta do pastorado laico terá sempre como resultante a possibilidade de exacerbação do terrorismo de Estado. Seja para efetivação da vingança final, seja em nome do triunfo do amor. No caso do vingador, o mais preocupante é o incentivo à conduta violenta que sua vitória ou derrota eleitoral já autorizou.


No entanto, uma análise anarquista e antipolítica, e esta não é sinônimo de política de apartidarismo, não pode se resignar à política do amor que vencerá a vingança. Antes de tudo, o que se chama por medo é apenas a possibilidade de interdição temporária da palavra e das mobilizações livres, isto é, o medo do estado de dominação produzido por medidas econômicas ou militares que impedem relações livres dentro dos cânones da política convencional. Entretanto, o fascismo vingador não cessará com o resultado da eleição e a manifestação e a organização da vingança e da violência que hoje se manifesta na candidatura líder das pesquisas prossegue nas dobras dos corpos que cruzamos diariamente nas ruas. E é a reiteração do cidadão-polícia despido da polidez civil.


A forma como este pleito é conduzido, e todos os ressentimentos projetados nas candidaturas, mostra a decadência das formas políticas atuais que sempre acabaram no colo dos democratas juramentados e nos seus “deixa disso”, disseminados na crença no sistema de freios e contrapesos que tanto regozija os adeptos de accountability. Apesar do sentimento de vingança contra o sistema político e contra os políticos ou mesmo “contra tudo isso que está aí”, não há sinais de rompimento subjetivo com a política como tecnologia moderna de organização da vida coletiva, muito pelo contrário, transparece a vontade de reforma que se desloca da moderação para a reação conservadora. As apressadas análises que veem o eleitorado de Bolsonaro como antipolítico servem apenas para ilustrar o uso equivocado do termo em comentários e manchetes de jornais. Elas não abalam a crença fundamentalista na política e em um político como capaz de aplacar a “tristeza cívica” no melodrama das classes médias urbanas para mais um embelezamento da burguesia.


Em texto do começo do século XX, o anarquista Errico Malatesta dizia que um anarquista sempre prefere a democracia à ditadura, seja qual for a sua coloração, sem deixar de destacar que a democracia é somente mais um dos regimes de tirania em continuidade, agora fundamentada no ideal de soberania individual do povo sob a forma da representação. Seu argumento era simples: se a liberdade nas democracias é uma mentira, essa mentira sempre acorrenta um pouco o mentiroso. Hoje, esse argumento de Malatesta segue válido. No entanto, nesse começo de século XXI, quando a moderna proposta estatal de racionalização da violência está por demais acrescida de democracia, tanto como arquitetura institucional, quanto como valor social, econômico e ambiental, não há nada de irônico em sublinhar que o sistema erigido para contenção da tirania seja o principal produtor de tiranos. E nessa produção espetacular as eleições se tornaram pura e simplesmente um mercado do ressentimento no qual os aspirantes a pastores laicos exercitam o terrorismo psíquico. Enquanto isso, o cidadão-polícia se refestela no circo dos monitoramentos que vai do policial matador miliciano justiceiro ao policial antifascista (sic). Essa variação mostra que grande parte do que se chama hoje de antifascismo no Brasil é a proteção das convencionais manifestações de opinião nas democracias representativas e participativas.


Nesse espetáculo dantesco ou rocambolesco não é fortuito que com pífias intenções de voto, a figura três dessa breve análise seja o Cabo Daciolo. Ele é cabo dos bombeiros e pastor evangélico, professa um nacionalismo anti-EUA e anti-China, diz ter recebido uma revelação divina para, como Davi, se colocar enquanto mensageiro da verdade entre os Golias da política. Nesse mercado do ressentimento e de dissimulação dos pastores laicos no delírio de quem subirá ao monte ou a passarela do Planalto, estava no Cabo Daciolo o ridículo da democracia hoje, a sua verdade evidente: militarizada, religiosa, desesperada, ecumênica e insensata.


Só a recusa subjetiva com essa forma de organização coletiva contemporânea, uma atitude antipolítica, nos faz estancar e deixar passar este amontoado de ovelhas brancas e negras ruminantes que produzem e seguem essas três figuras da decadência dos governos democráticos, pois guardadas as devidas proporções é isso que se passa pelo planeta, a despeito das vãs esperanças vendidas pelos mensageiros da nova política, enquanto as ovelhas tosquiadas ficarão engordando para seguir ao matadouro, ou simplesmente retornar, em breve, com suas lãs, na próxima estação.


Se no passado recente do século XX os meios de comunicação de massa (rádio, televisão e cinema) funcionaram, para desespero dos liberais, em dissolução do indivíduo na massa e de implosão da sociedade de público, hoje em dia, as democráticas redes sociais, em comunicação contínua, funcionam a favor da ditadura da opinião, suprimindo até mesmo o que ainda havia de público no debate eleitoral televisivo, em favor da ampliação do mercado do ressentimento no qual se instala o cidadão-polícia e as mais estrondosas formas de monitoramentos, redimensionando o governo dos súditos pelos súditos endividados numa autofagia triunfante.

Enquanto isso, o voto permanece obrigatório e sequer os que discordam das candidaturas e comparecem às urnas são considerados. Apenas são desclassificados num cadinho que os excluem como votos válidos.



R A D.A.R


Élisée Reclus. “Por que os anarquistas não votam”.


Errico Malatesta, “Ni democratas, ni dictadores: anarquistas”.


Sébastien Faure. “Abstencionismo”.






 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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