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observatório ecopolíticaano III, n. 41, outubro de 2018. as identidades digitais
No Brasil, há anos se comenta sobre o RG digital, um documento capaz de centralizar RG, CPF e título de eleitor em um único chip. Recentemente, a discussão ganhou força com a obrigatoriedade do uso da biometria nas eleições em inúmeros municípios e com o uso do aplicativo e-eleitor. Entretanto, para muitos entusiastas da tecnologia computo-informacional, o RG digital já é obsoleto. A nova solução, ou seja, a última versão de identificação, viria com a Identidade Digital (ID) aos moldes da existente na Estônia Com o aperfeiçoamento da ID na Estônia, hoje, todos devem ter um Registro Nacional compondo um grande banco de dados gerenciado pelo governo em parceria com empresas de comunicação. Com a ID é possível realizar inúmeras ações sem ter de se dirigir ao órgão prestador do serviço. Por exemplo, a ID serve tanto para ter acesso à saúde pública como para votar de qualquer canto do planeta; serve também para abrir uma empresa na Estônia onde quer que o portador da identidade esteja, assim como enviar a declaração de imposto de renda. Tudo isso pode ser realizado por meio de um computador com conexão à internet ou por meio de um leitor de um smart card vendido por cerca de 10 euros.
No ano de 2011, esse sistema também foi integrado aos cartões SIM, conhecidos como chips de celulares. Assim, uma boa parte dos cidadãos já pode ser identificado apenas com o celular e por meio de um procedimento de autenticação de códigos. Segundo o site da e-Estônia, “o ambiente de solução eletrônica da Estônia inclui uma gama completa de serviços para o público em geral e, como cada serviço possui seus próprios bancos de dados, todos eles usam o X-Road. Para garantir transferências seguras, todos os dados de saída do X-Road são assinados e criptografados digitalmente, e todos os dados recebidos são autenticados e registrados”. Em funcionamento desde 2001, o X-Road, renomeado recentemente para X-Tee, é saudado pelo governo estoniano como a espinha dorsal desse sistema. Desenvolvido em parceria com a Finlândia, é um grande sistema descentralizado de transmissão de informações com base de dados separadas em inúmeros compartimentos virtuais. É semelhante ao protocolo BitTorrent, muitas vezes utilizado para realização de downloads de filmes e programas. Por ser uma rede P2P (peer to peer), o BitTorrent transfere arquivos de vários compartimentos virtuais que seriam outros computadores. Desse modo, se vários usuários do protocolo BitTorrent possuem um filme que você deseja baixar, em vez de você fazer o download de apenas um deles, fará o download de várias partes do filme desses vários outros usuários espalhados pelo planeta. Simultaneamente, se um dos usuários for interrompido ou se perder a conexão por quaisquer motivos, como não há uma central contendo o filme, ainda restarão inúmeros outros usuários para lhe fornecer o arquivo. Este protocolo ficou famoso no começo dos anos 2000, quando muitos entusiastas acreditavam que ele traria uma revolução no compartilhamento de dados e que poderia até derrubar Hollywood; proclamavam ainda que a internet, apesar de suas procedências militares, seria completamente descentralizada e livre de governos; que os programas finalmente poderiam ser acessados por qualquer um que tivesse um computador sem ter de pagar valores absurdos... Entretanto, seus efeitos foram outros. Na Estônia, apesar do projeto X-Road estar em funcionamento desde 2001, foi somente no governo de Ilves que a ID se fortaleceu e se expandiu. Com o banco de dados em funcionamento, só foi necessário digitalizar os serviços e recolher os dados da população. Hoje, o X-Tee engloba inúmeras dados de vários serviços, como de bancos, da companhia telefônica, da Receita Federal, dos serviços públicos, de registros da população estoniana... Todos eles interagem “para melhorar seus próprios processos”. Com a ID é possível que qualquer médico acesse o histórico de saúde do paciente e, caso necessário, emita aos farmacêuticos a receita do medicamento que este irá buscar; se um bebê nasceu, não é mais preciso levá-lo ao cartório, os dados do hospital já vão direto ao governo e a criança já está registrada; o mesmo ocorre no óbito, o governo recebe imediatamente a informação e já corta qualquer auxílio que a pessoa estivesse recebendo em vida. Hoje, somente quatro atividades precisam ainda ser feitas presencialmente em cartório: casar, divorciar, vender um ou comprar um imóvel. Para além dessas, não há mais as inúmeras papeladas que precisariam ser assinadas, confirmadas, autenticadas e preenchidas. Todos documentos são atualizados nos diversos registros, por meio de certificações, protocolos e assinaturas digitais. Entretanto, isso já não é mais exclusividade da Estônia, a tecnologia passou a ser exportada. Segundo Ilves, como o país não possui outros bens de consumo ou matéria prima para comercializar, sua saída foi exportar tecnologia computo-informacional, como já fizeram nos anos 2000 com o software de videoconferências Skype. Assim, o sistema de ID também foi um ótimo empreendimento para enriquecer o país nos últimos anos. O X-Tee já está presente na Finlândia, Azerbaijão, Namíbia e Ilhas Faroe. E como usam o mesmo sistema, todos poderiam trocar dados, mas por enquanto, isso ocorre somente entre a Finlândia e a Estônia. Um dos principais parceiros do governo da Estônia para garantir o funcionamento das ID é a Microsoft, responsável pela segurança do armazenamento dos dados em nuvem. A Microsoft, junto com a Fundação Rockefeller, a Gavi Alliance (parceria público privada de vacinas e imunização que reúne vários países e a OMS, UNICEF, a Fundação Bill e Melinda Gates e outros) e a Accenture Institute for High Perfomance (empresa de tecnologia voltada para segurança na construção civil, tratamento médico, desenvolvimento de energia sustentável entre outros), fundaram a ID2020, para o desenvolvimento e aprimoramento da ID. A ID2020 é descrita como uma “aliança global para melhorar a vida por meio da identidade digital”. Nesse momento, seu principal alvo e laboratório são os campos de refugiados. outros laboratórios Nos campos de refugiados comumente é necessária uma série de documentos que certificam o status de refugiado: uma carteira de identidade, cartão de racionamento de comida, um cartão de saúde etc. Com a ID seria possível unificar todos esses dados e recolher outros tantos, como já está acontecendo em alguns campo-laboratórios. A ID ainda é uma possibilidade de atingir um dos pontos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. O objetivo 16 preconiza: “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis” e, em seu item 16.9, destaca: “Até 2030, fornecer identidade legal para todos, incluindo o registro de nascimento”. Sob esse lema que a ID2020 fornece a tecnologia, a ACNUR fornece apoio operacional e o governo do país onde um campo está sediado faz os registros necessários para a ID. No nordeste do Quênia, no qual há 100 quilômetros da fronteira com a Somália, o complexo dos campos de refugiados de Dadaab também passou a adotar as IDs. O campo possui capacidade para cerca de 90 mil pessoas, mas atualmente, abriga 5 ou 6 vezes mais. Muitos refugiados têm boicotado as convocações para o registro por não quererem compartilhar suas biometrias e também por não desejarem se adaptar às tecnologias computo-informacionais (às quais nunca tiveram acesso) para sobreviver. Entretanto, caso não o façam, não terão nem o que comer. O campo de Kakuma, localizado no norte do Quênia e em operação desde 1992, é conhecido por utilizar energia sustentável; por ter abrigado a primeira parada gay em um campo; e por ter realizado com e para refugiados, o primeiro TED (uma série de conferências realizadas em vários cantos do planeta para e com empreendedores sob o lema: “ideias que valem a pena partilhar”). Agora, Kakuma também faz parte dos laboratórios das IDs. Inúmeros perseguidos pelo Estado queniano tiveram de fornecer seus dados, que agora passaram a ser compartilhados entre a ONU e o governo. No evento do TED, em junho de 2018, ocorreram palestras com economistas, cineastas, refugiados, residentes do campo, músicos etc. A ID2020 de Bill Gates participou do evento e contratou como sua porta voz, a atriz africana Nomzamo Mbatha, ídolo incontestável no continente. Em sua fala, ela estimulou os residentes do campo a “elevar as fronteiras da mente e começar a se ver como um só, como cidadãos globais”. A empolgação durante a palestra estava na promessa canalha para aqueles que vivem há décadas aprisionados: com a ID irão “superar seus próprios desafios” e começar suas vidas empreendedoras dali do campo. Na Jordânia, o campo de Zaatari está localizado a 10 quilômetros da Síria e, atualmente, conta com 75.000 residentes. Na periferia do campo, há o supermercado Tazweed onde os moradores fazem suas compras. Para pagar não é necessário dinheiro, cartão ou até os antigos cheques, basta só olhar para uma caixa preta que contém uma câmera. Pronto! Agora é só recolher o recibo e os alimentos. O campo de Zaatari é festejado como um dos maiores exemplos de sucesso dessa tecnologia, com a participação e adesão rápida dos refugiados. a índia Atualmente, a Índia também passou a aplicar a ID e usa as informações da biometria e da íris das pessoas. A Identidade Digital no país da Ásia Meridional chama-se India Stack e parte de 4 princípios: presenceless, paperless, chashless e consent. Ou seja, por meio da digitalização: menor presença, menos papel, menos dinheiro em espécie e, o último e fundamental para que tudo funcione, consentimento. Na parceria com empresas, startups e desenvolvedores, o governo indiano possibilita que as pessoas possam acessar os serviços públicos por meio da digital em qualquer lugar do país; diminuindo o armazenamento de papel e unificando todas as contas bancárias e cartões de crédito de uma pessoa em apenas um aplicativo. Essa iniciativa fez com que a Microsoft firmasse um contrato com mais de 2000 startups envolvidas no India Stack. A empresa se interessou por alguns dos desenvolvedores que construíram esse imenso banco de dados e, simultaneamente, forneceu o serviço em nuvem para o armazenamento dos dados. A Microsoft ainda almeja ser o parceiro da autenticação Aadhaar, leitura da biometria e de íris, do sistema India Stack. Essa seria conectada aos seus produtos e assim, haveria um cruzamento simultâneo dos dados do computador pessoal ou smartphone de usuários do Windows com os dados destes no governo. Pouco importa quantas pessoas existem em uma região para serem catalogadas, seja na Estônia com 1,3 milhão de habitantes, seja no campo de refugiados com 75 mil pessoas ou na Índia com sua população de 1,2 bilhão. Para muitos, a principal vantagem da ID está em acabar com a montanha de papeis, com os documentos empoeirados que se perdem, com as segundas vias, com as filas para registros etc. Entretanto, no algoritmo, a questão não é de armazenamento de dados, isso é problema de arquitetura e de gerenciamento de espaço; sua eficácia está em colher dados, cruzar e localizar qualquer informação rapidamente. Se uma das conhecidas procedências dos computadores foram os cartões perfurados, usados nas fábricas têxteis para determinar o tear e, posteriormente, desenvolvidos pela IBM para realização dos Censos demográficos e amplamente usados nos campos de concentração de extermínio e concentração na Alemanha nazista, hoje a identificação já não se dá por um número. Afinal, não se trata mais de identificar um indivíduo no meio da massa quando este é obrigado a mostrar o seu RG, mas garantir que não exista duplicidade, sem brechas no fluxo e que o monitoramento seja incessante. Garantir com o consentimento que seus dados sejam recolhidos full time, em seu smartphone e em seu computador. Em resumo, todas as informações biográficas e biométricas devem ser fornecidas e atualizadas a todo momento. E seguem, todos felizes usando seus apps. R A D.A.R Partnering for a path to digital identity Transformando o nosso mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável Comitê Invisível Foock of Google
O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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