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observatório ecopolítica

ano III, n. 42, novembro de 2018.

 


eu sou um poeta,
um exército de poetas.
e hoje quero escrever um poema.
um poema de apitos
um poema de fuzis.
para pregá-los nas portas,
nas celas de prisões
nos muros das escolas.


hoje quero construir e destruir
levantar a esperança em andaimes.
acordar o menino,
arcanjo das espadas,
ser relâmpago, trovão,
com estatura de herói
para arrancar, arrasar
as raízes apodrecidas de meu povo.

clementina soares (honduras)

 

América Central e o êxodo miserável das caravanas


Coiote: canino abundante nos desertos que hoje são cortados pela fronteira entre México e Estados Unidos.


Desde os anos 1990, no entanto, são chamados “coiotes” os traficantes de pessoas, em grande maioria composta por mexicanos e centro-americanos que tentam entrar “ilegalmente” nos EUA.


Segundo os governos mexicano e estadunidense, tais traficantes cobram entre nove e quinze mil dólares por pessoa para facilitar a travessia, quantia exorbitante para a maioria dos miseráveis que buscam trabalho no país do norte (ainda que fosse 1 cent já seria um acharque!). Mesmo pagando, as pessoas traficadas correm o risco de serem abandonadas ou simplesmente assassinadas. Não há capitalismo sem tráfico, nem Estado sem sangria, com ou sem muros.


A fronteira é uma linha imaginária, imposta politicamente e com fluxos incessantes de pessoas que transitam clandestinamente, de drogas consideradas ilegais, de armas legais e ilegais, e que servem a rentáveis investimentos em segurança; com monitoramentos e condutas policiais de agentes fardados e cidadãos armados voluntariamente dispostos a alvejar os invasores em defesa de suas terras e da nação; com policiais de imigração, militares de ambos os lados e civis que se organizam em milícias nos EUA, a fim de “cumprir a missão cívica” de capturar ou matar latinos pobres, famintos e sedentos.


Eles são considerados uma “ameaça”, fonte de doenças, de hábitos imorais, de drogas proibidas e de competição desleal por trabalho. Os “coiotes” do lado mexicano e sua contraparte do lado norte da fronteira movimentam dinheiro, drogas, pessoas e armas, pagando polícias mexicanas e estadunidenses, usando os mesmos túneis por onde passam armas e drogas, desviando-se dos muros que já, há tempos, erguem-se entre a América Latina e os EUA.


Os “coiotes” de agora, no entanto, recebem um fluxo nunca visto de possíveis “clientes”. Eles vêm aos milhares, numa marcha de fome, cansaço e (des)esperança. Um jogo mortal composto pelo duplo complementar entre esperança-(des)esperança e confiança-(com)fiança-(des)confiança. Enfim o morticínio alimentado por quem se fia na espera do olho que vela, em nome de deus, da razão, do Estado e do capitalismo, ou do que quer que o valha.

Caravanas: o êxodo da miséria


A partir dos primeiros dias de outubro, começaram a se organizar multidões, nas ruas de Manágua (Nicarágua) e de San Salvador (El Salvador). Comunicaram-se por Facebook e por WhatsApp, marcando pontos de encontro nas zonas centrais dessas cidades com um objetivo: migrar, em conjunto, para os EUA.


Os governos desses dois países foram tomados de sopetão e tentaram impedir a saída dos grupos: tropas de choque, veículos blindados, fechamento de fronteiras e outras práticas foram tentadas. Mas eram muitos. A maioria, nicaraguenses, contavam quase quatro mil pessoas. Saíram pelos acostamentos das principais estradas que ligam as capitais à fronteira sul do México. Levavam faixas que diziam “Somos todos americanos” e “Não somos bandidos”.


Andaram por dias, ativaram-se os sistemas de segurança do México e dos Estados Unidos que, prevendo a incapacidade mexicana de conter a onda de pessoas, começaram a planejar como impedir que entrassem em seu território.


O presidente estadunidense não teve dificuldades, com seus notórios discursos racistas e xenofóbicos, em pronunciar que ninguém entraria nos EUA. Mobilizou cinco mil soldados, além da polícia de imigração e dos voluntários “patrióticos” que, sentados em cadeiras de praia e munidos de rifles e óculos de visão noturna, começaram a vigiar ainda mais a fronteira com o México. O governo dos EUA prometeu a montagem de centenas de tendas, nas quais as pessoas seriam acolhidas, humanitariamente tratadas, registradas e devidamente repatriadas. Em tempos de eleições parlamentares nos EUA, a “ameaça” de uma invasão latina foi utilizada com habilidade pelo presidente, reafirmando os estereótipos do latino ladrão, preguiçoso e narcotraficante que há mais de um século marcam o moralismo puritano dos estadunidenses.


A marcha dos centro-americanos não parou. Alguns voltaram, mas cerca de 4.000 chegaram à Cidade do México e, a partir do dia 13 de novembro começaram a seguir viagem para o norte. Um grupo menor, de cerca de 400 pessoas, chegou nessa mesma data a Tijuana, fronteira com os EUA, onde foram contidas por forças militares mexicanas. Do outro lado da fronteira, os militares e civis armados estadunidenses seguem olhando… com mirada de coiotes.

 

Uma, duas, três caravanas…


Até o momento, foram três as caravanas que cruzaram a fronteira entre Honduras, Guatemala e México. Calcula-se uma movimentação total de até 10.000 pessoas que são alvo de ONGs humanitaristas e cristãs, forças militares dos países da América Central e do México, além de sicários e matadores profissionais contratados para gerar pânico e forçar um retorno em massa. Caminham a pé ou em improvisados ônibus e caminhões, jovens mulheres e homens, idosos e crianças, muitas delas sozinhas, dizendo buscar um parente (país, avós, tios) que já vivem nos EUA.


Governos do acordo de livre comércio da América Central decidiram revogar, temporariamente, a cláusula da livre circulação de seus cidadãos na região. Agora, é preciso pedir um visto que pode demorar uma semana e, sequer, ser aprovado. A maioria, então, ruma irregularmente, sem papéis, sofrendo prisões e agressões das polícias de fronteira de seus próprios países.


O trânsito de pessoas sempre foi o tema repudiado da prática liberal do livre comércio, aberto aos fluxos de produtos e capitais, mas não ao de gente. Gente, só algumas: aquelas vinculadas à produção e reprodução do próprio capitalismo globalizado — vide o liberal Kant com toda a sua lustrosa edificação em torno da busca de um “equilíbrio de forças”, de um “estado de paz”, Estado Mundial, desaparecimento gradativo dos exércitos, criação de exércitos voluntários como força de paz, muita tolerância, hospitalidade, cosmopolitismo e por aí vai o rosário, que no frigir dos ovos, apraz tanto idealistas quanto realistas, junto com seus críticos, e suas novas vertentes atualizadas por internacionalistas muito bem postos —, interessado mais nas capacidades produtivas e na produção de patentes que na força de trabalho manual.




Trabalhadores manuais são para os trabalhos que não querem fazer as populações brancas, negras e hispânicas dos EUA que já ascenderam social e economicamente na lógica do capitalismo transterritorial: são jardineiros, peões de obra, cozinheiros, lixeiros, prostitutas... São, também, os corpos que alimentam o maior sistema prisional do planeta, com mais de dois milhões de encarcerados em prisões estatais e privadas. Os ilegais são corpos úteis à economia legal, à economia dos ilegalismos e à economia que se articula em torno do combate aos infindáveis ilegalismos.




As caravanas, no entanto, são a concentração desse fluxo constante de “ilegais”, “clandestinos”, “perigosos” que há mais de um século cruzam a fronteira entre México e EUA. Os países da América Central, assim como o México, têm recebido, desde os anos 2000, bilhões de dólares para treinar tropas e fortalecer suas polícias, a título de combater o narcotráfico, mas também de conter a marcha de imigrantes. Esses países foram transformados em fossos prévios à muralha física e eletrônica que os EUA procuram construir e renovar na sua linha de fronteira.




“Cooperação econômica”, “ajuda humanitária” e “planos militares antidrogas” compõem um tríptico para a política de segurança dos EUA, do México e da América Central, com suas democracias formais de fachada ou não, oligarquias centenárias, misérias infindáveis e violência incalculável entre ex-guerrilheiros, novas e velhas gangues, pobres em geral morrendo de fome, bala ou em decorrência do uso de substâncias de segunda e misturas fatais. Pessoas cujo discurso humanitarista clama para serem tratadas pela lógica da “segurança humana”, ou seja, da proteção dos direitos humanos; são nada mais do que simplesmente “humanos ou quase humanos” tratados como tema de segurança.




As caravanas rumo ao Norte são a tragédia em movimento do que antes se transportava descentralizadamente. As caravanas não buscam percursos inventivos, mas são prisioneiras em seus Estados e das forças que as coagem, assim como da miséria que as assola, levando-as a trajetos previsíveis. O fim disso? Mais securitização de corpos e de miseráveis, presos em campos de refugiados ou repatriados como rebanho depois de caminharem, como gado ao abatedouro, por milhares de quilômetros.



Negócios lucrativos com imigrantes ilegais


Desde 1952, o Ato de Imigração e Nacionalidade, aprovado pelo Congresso estadunidense com maioria democrata, considera ato infracionário a entrada ilegal de pessoas no país. O governo Obama, entre 2009 e 2016, intensificou as deportações de imigrantes ilegais envolvidos com os chamados crimes contra a segurança nacional, membros de gangues ou com passado comprovado de ilegalidades. Deportou mais de três milhões.




O governo atual ampliou a medida do anterior, incluindo a deportação generalizada no rol de sua política de “tolerância zero”. Neste ano de 2018, com a aproximação da caravana iniciada em Honduras, atravessando a América Central e o México, o atual governo conservador criou uma conturbada conjugação de medidas contra imigrantes considerados ilegais, incluindo a separação de crianças de suas famílias.




Ao mesmo tempo, favoreceu os negócios de ocasião para tal empreitada, beneficiando, a partir do Departamento de Segurança Nacional, “espaços” para abrigar e cuidar destas famílias. A mídia chegou a noticiar um plano da marinha estadunidense para construir “acampamentos austeros” para alocar até 25 mil pessoas. Em 2017, o Serviço de Imigração e Controle Alfandegário destinou à iniciativa privada, aproximadamente três bilhões de dólares para custear a detenção de estrangeiros.




Em relatório recente, a ONG MiJente apresentou a parceria do governo dos EUA com empresas de tecnologia computo-informacionais para identificar imigrante ilegais. Empresas como Amazon, Microsoft e Palantir fornecem dados ao Departamento de Segurança Nacional e ao Serviço de Imigração e Controle Alfandegário. A Amazon é praticamente um banco de dados do Departamento de Segurança Nacional dispondo de centenas de autorizações federais para armazenar dados governamentais, que são compostos de biometrias, fotos faciais e da íris dos olhos. A Microsoft, velha parceira dos EUA no monitoramento de dados, fornece o serviço em nuvem e também coleta informações dos usuários. A Palantir é a responsável pela produção dos relatórios e organização dos dados, também é a fornecedora do sistema Investigative Case Management (ICM) que organiza os perfis de uma pessoa, apresentando o histórico de imigração, seus familiares, endereços, biometrias... A partir desses dados, o Serviço de Imigração e Controle Alfandegário pode realizar ações como a separação de crianças migrantes de seus pais.




Os centros e detenção de imigrantes, juntamente com os presídios privados, estão na lista dos negócios mais rentáveis nos Estados Unidos, favorecendo em especial as empresas CoreCivic e o GeoGroup, que também são beneficiadas como empresas de transportes de detentos.


A caravana que saiu de San Pedro Sula, em Honduras, no dia 13 de outubro, cresceu ao passar pela Guatemala e El Salvador. Segundo analistas, que não abrem mão do Estado seja ele qual for, nem do capitalismo, a caravana aconteceu devido à política neoliberal estadunidense que sustenta o reeleito governo direitista de Juan Orlando Hernández, do Partido Nacional de Honduras, provocando a devastação de recursos naturais e a “superexploração da força de trabalho” na América Central, ampliando a “vulnerabilidade” das populações locais e com a presença marcante da marinha estadunidense defendendo seus interesses na região. O presidente de Honduras e o da Guatemala (Jimmy Morales) formam um dueto dizendo que as motivações são políticas.




A maioria dos componentes da caravana recusou as propostas do governo mexicano, assim como retrucou com pedras a ação da polícia na fronteira que atirou sobre eles bombas de gás lacrimogêneo. Pretendem chegar ao Paraíso do Norte. Pretendem-se limpinhos e ordeiros. Caso contrário, não ficariam acenando faixas onde escrevem que não são bandidos. Uma minoria aceitou retornar a Honduras, acreditando que seu governo os receberá de volta com ofertas de oportunidades “para melhorar de vida em sua comunidade”.



 

Sobre racismo e racionalidade neoliberal


Cada vez mais a ciência vai transmutando a noção iluminista de Homem. Os avanços da biologia mostram que somos milhões de bactérias e vírus. Porém, a alma asseada persiste. Permanece a ficção iniciada com a água que limpa do pecado original e que termina no juízo final, governando a crença na família estruturada, na superioridade branca e na reprodução da espécie. Enfim, no governo sobre o sexo, a tentativa moralizadora de governar o ingovernável.




Do mesmo modo, cada vez mais os humanos superiores estão em busca de ajustar este ser criador de milhões de bactérias em um sujeito limpo, pelo saber em progresso da ciência e do saber estagnado das religiões. E como o Deus dos superiores racistas é branco, permanece a dúvida (o mistério) se de fato Adão tinha ou não tinha umbigo. Apesar das novas verdades produzidas pelos saberes da ciência, a verdade verdadeira sobre o humano ainda jaz metafísica. Assim é que o presidente estadunidense governa como os demais chefes das nações, oscilando entre a fraternidade multilateral e a filantropia nacionalista.




Neste caldo, a caravana em busca do Paraíso do Norte abdica de lutar contra os governos em seus países e contra si mesmos, em busca da aceitação piedosa de quem se julga superior; prefere ser a vítima que pretende aderir ao algoz imaginando-se protegida pelo humanitarismo. Pede a bênção ao laico e ao eterno. Ao primeiro, pretendendo atingir o patamar de capital humano, deixando de ser força de trabalho, aureolado na categoria trabalhador competitivo, consumista e adorador; ao segundo, aceitando sua condição de mortificado, penando pelos terrenos secos, ondulados e encharcados como penitência ininterrupta.




Conselho que já não é necessário em nenhuma parte
do mundo mas que em El Salvador…


Nunca esqueça
de que os menos fascistas
entre os fascistas
também são
fascistas

roque dalton (el salvador)



R A D.A.R


Poemas, inicial e final, retirados da publicação gratuita em meios digitais da treme-terra, 2018: latinoaméricantifa, traduzidos e organizados por Rodrigo Lobo Damasceno.

Fronteras

Negócios com imigrantes e suas detenções:

www.bbc.com/portuguese/internacional-44604153

www.brasildefato.com.br/2018/11/o8/por-que-a-caravana-de-migrantes-da-america-central-tem-como-destino-os-eua/
https://www.europapress.es/internacional/noticia-entran-primeros-ocho-integrantes-caravana-centroamericana-territorio-eeuu-20180501045139.html

https://www.independent.co.uk/news/world/americas/us-politics/antifa-ice-employees-list-immigration-nebraska-github-medium-linkedin-sam-lavigne-a8412496.html

https://www.aljazeera.com/indepth/features/2016/01/deadly-human-trafficking-business-mexico-border-160117073423022.html

https://www.insightcrime.org/news/analysis/routes-to-the-us-mapping-human-smuggling-networks/

 

Relatório da ONG Mijente





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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