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observatório ecopolíticaano III, n. 43, novembro de 2018.
Prisões, cobaias, cobras e lagartos
Ela já foi chamada de a peste branca, a tísica, o mal do século (XIX), a doença do peito... Ela é a tuberculose.
Para os adeptos dos genéricos nada é pessoal. Danem-se os genéricos e seus adeptos. A vida é sempre uma questão pessoal.
Anotações de Kafka em seu diário: “há duas noites seguidas escarro sangue (...) poderia dizer que dilacerei a mim próprio. O mundo e o meu eu, comprometidos num conflito insolúvel, estão em vias de dilacerar o meu corpo.”
Pequeno comentário de Manuel Bandeira: “não chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimento, febrinha, um pouco de tosse, não ─ caiu (...) de sopetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu.”
É em nome do combate à tuberculose e à sua prevenção que uma caterva de adeptos do genérico e das generalizações deu início, no ano de 2017, a um projeto de pesquisa que durará cinco anos com encarcerados em presídios no Mato Grosso do Sul - Brasil, incluindo testes de novo medicamento nos presos.
O projeto foi viabilizado por um convênio entre a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, a Universidade Federal de Dourados - MS, a Secretaria de Saúde do Mato Grosso do Sul, a FIOCRUZ, a Universidade de Stanford (EUA) e o Instituto Nacional de Saúde Pública dos EUA, a quem caberá o comando da pesquisa.
Os responsáveis pelo projeto alardeiam: “pesquisa inédita no mundo que promete encontrar um conjunto de medidas para reduzir em até 66% a transmissão da tuberculose. No Estado, 5 mil presos serão examinados e parte da população carcerária será tratada com medicamento que seria capaz prevenir a doença nos presídios”.
Como se não bastasse estes pesquisadores usarem a carne, o osso e o sangue, que não é deles, como cobaias para exames e testes, alimentam-se, ainda, da continuidade do aprisionamento em nome do “combate e prevenção à tuberculose nos presídios”.
Uma das justificativas para o projeto ser desenvolvido no Brasil, segundo Jason Andrews, pesquisador da Universidade de Stanford (Palo Alto, Califórnia, no Vale do Silício), responsável pela investigação, pauta-se no fato de que é o maior país da América Latina e o quarto mais populoso no mundo, e principalmente, porque no Brasil o nível de contaminação pela tuberculose é 30 vezes maior em presídios do que fora dele.
Ora, se até em lugares extremante assépticos como hospitais e salas cirúrgicas os bacilos proliferam, disseminam-se e tornam-se mais persistentes, o que queriam? Que um lugar infecto, como qualquer prisão mesmo a mais lustrosa e brilhante, produzisse o que?
Entretanto, a continuidade da prisão e da miséria permanece um lucrativo negócio em múltiplas dimensões. Não é fortuito que as pesquisas em andamento que Andrews está vinculado sejam levadas a cabo em lugares onde a miséria abunda, além do Brasil, no Nepal (Índia), na Etiópia (África), dentre outros.
Por sua vez, Júlio Croda da UFMS, UFGD e da Fiocruz, médico infectologista e pesquisador co-responsável pela pesquisa destaca, também, que os “presos que estiverem ingressando nas penitenciárias serão voluntários nos testes do medicamento que evita a doença. O remédio já foi testado em humanos e o estudo sobre qual o impacto a substância teria para prevenir a tuberculose nos presídios também tem aval do Ministério da Saúde. ‘É uma droga nova e barata. Estamos fazendo um ensaio clínico’”.
Em 1913, pesquisadores médicos testam tuberculina em crianças no orfanato St. Vincent na Filadélfia. O teste provocou cegueira permanente em quase todas as crianças. Mas os magnânimos, sempre adeptos do genérico e das generalizações, falarão que isto pode acontecer em “ensaios clínicos” e faz parte da estatística do progresso científico.
E o investimento dos genéricos no combate à tuberculose é, simultaneamente, um grande negócio e uma reluzente vitrine:
“Os pesquisadores da Fiocruz Margareth Dalcolmo, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), e Júlio Croda, da Fiocruz Mato Grosso do Sul, integram a delegação brasileira (...) da Reunião de Alto Nível de Tuberculose (TB), (...) realizada na Assembleia Geral da ONU, [que ocorreu] no dia 26 de setembro [de 2018], em Nova York. O encontro, cuja finalidade é definir estratégias globais contra a doença, [reuniu] chefes e ministros de Estado. ‘Trata-se de uma reunião de extrema importância. O impacto da mortalidade de jovens acometidos pela TB no mundo, o sofrimento humano e a necessidade de erradicação de uma doença que tem tratamento e precisa oferecer acesso igualitário a todas as pessoas serão debatidos pelos chefes de Estado e as Nações Unidas”, afirmou Dalcolmo, nomeada, pelo Banco Mundial, para integrar o Comitê Regional de Apoio a Projetos nas Áreas de Doenças Respiratórias Ocupacionais e Tuberculose para a África Subsaariana. A primeira reunião de Alto Nível da ONU sobre o tema objetiva promover um consenso sobre recomendações para eliminar a doença em todo o mundo até 2030, como determinam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Em 2016, 1,7 milhão de pessoas morreram por causa da infecção - 25% dos óbitos foram registrados entre indivíduos vivendo com HIV. Para o pesquisador Júlio Croda, que preside a Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose (Rede-TB), a reunião é esperada há muito tempo, principalmente porque a TB, mesmo tendo superado o HIV/Aids como principal causa de óbito entre as doenças infecciosas, ainda é pouco valorizada no contexto global. ‘A tuberculose acomete os mais vulneráveis, aqueles que vivem em comunidades carentes, com baixo acesso a serviços de saúde; e isso tem pouca visibilidade entre os stakeholders da saúde pública mundial. O investimento realizado não é suficiente para atingirmos a meta da OMS, ou seja, chegar a menos de 10 casos por 100 mil habitantes até 2035. Se não houver investimento maciço em inovação, não atingiremos a meta estabelecida’”.
Estes pesquisadores e estas pesquisas são financiados por institutos, empresas, Estados e grandes conglomerados de laboratórios farmacológicos. Envolve muito dinheiro, muito negócio legal e ilegal, perpassando diversos campos da gestão compartilhada da miséria e do aprisionamento, de medicamentos de baixo, médio e alto custo. No Brasil, em especial, não é de hoje nem de ontem que as Forças Armadas controlam e produzem, preferencialmente, as medicações para a tuberculose.
Ela é situada como um problema de “vigilância sanitária”, onde todos os “casos” identificados ou em tratamento são notificados, em infectados pelo bacilo ativo e para a quimioprofilaxia, em pessoas positivadas para a tuberculina (prova de mantoux ou reação de mantoux), no caso de transplantados e pessoas com problemas autoimunes que serão imunossuprimidos biologicamente.
O próprio teste com a tuberculina pode ativar a doença, que não se restringe aos pulmões, pode afetar vários órgãos, o sistema linfático e gânglios, dentre outros. Uma tuberculose disseminada pelo corpo pode matar em até, ou em menos, de cinco dias.
Mas é claro que isto é apenas um detalhe dispensável para os médicos pesquisadores que dispõem de corpos, que não os deles, para testarem seus arsenais de “ensaios clínicos”, simulações, experimentos, certificarem-se e certificar seus novos protocolos, tudo em sua bondade infinda.
Eles nem fazem ideia do que seja o efeito das medicações para o tratamento da tuberculose ou para sua quimioprofilaxia no corpo de alguém, para além de suas simulações e estatísticas em seus experimentos e seus “ensaios clínicos”.
Mas qualquer pobre sabe! Para os que gostam de provas ou testes é fácil. Pegue um ônibus lo-ta-do no inverno com todos os vidros fechados e fale bem alto a palavra isoniazida ou pirazinamida, dentre outras. O ônibus esvazia na hora. Todo mundo desce. Simples, porque qualquer pobre sabe o nome dos antibióticos para a tuberculose, seja por experiência própria ou porque convive ou conviveu com alguém muito próximo que já fez uso.
E, ainda, tem de se deparar com “pérolas” como as proferidas por Júlio Croda, que para justificar sua pesquisa em presídios enfatiza: “Mesmo porque, como a doença é transmitida pelo ar, ao identificarmos com antecedência, menor será a transmissão e proliferação da bactéria dentro dos presídios”. A desfaçatez sempre se supera.
Depois não falta quem venha dizer que acabar com as prisões é uma utopia.
Utopia é falar que é possível evitar ou acabar com a tuberculose na prisão.
Entretanto, a prisão sempre foi bem-vinda como espaço de experimentos médicos de toda sorte. É de não esquecer as inumeráveis práticas desta cepa com prisioneiros, seja em cárceres convencionais, ou em orfanatos, abrigos, campos de confinamento, das mais variadas espécies, e por aí afora.
E esta história política está repleta de crianças e jovens, indígenas, pretos, homens e mulheres..., seletivamente, construídos como anormais, perigosos, estranhos... Para depois, constatarem mais uma vez que abusos e excessos foram cometidos; que é preciso erigir outros tribunais para julgá-los e erigir códigos de ética, médica e científica, dentre outros, como uma maneira de prevenir que volte a acontecer. E acontece novamente.
Basta lembrar dos meandros que forjaram uma das áreas da medicina, chamada atualmente de bioética. Seus baixos começos, também se situam em experimentos médicos em prisões, em campos de concentração, no efeito das guerras e do próprio funcionamento da política. Este é um dos itinerários tautológicos do qual sistema penal algum abre mão. E num campo bastante sutil é dele também que a prisão se alimenta com os préstimos da ciência médica.
Esta prática, hoje, reveste a prisão de uma glorificação que vai de argumentos cabotinos como a diminuição de dias de cumprimento da pena para prisioneiros voluntários a testes a argumentos putrefatos como os que apregoam que “pelo menos assim os prisioneiros servem para alguma coisa”, ou então, “vejam como nós mesmo os punindo cuidamos de sua saúde”. Diante desta seara os genéricos inclinam-se para alimentar os bacilos da tuberculose, nutrindo um lugar profícuo como o cárcere para sua persistência e disseminação do que encarar as coisas de frente: até mesmo para combater a tuberculose o fim do aprisionamento é vital.
Em 1913, o anarquista Fábio Luz, médico baiano e preto, lançou um pequeno folheto intitulado A luta contra a tuberculose do ponto de vista social.
“O alcoolismo, o ar confinado das oficinas, das miseráveis habitações sem luz e sem conforto, impregnadas de poeiras, de resíduos químicos, de cânhamo, de metais e carvões pulverizados, o ar agitado e rodopiante em colunas, em lufadas girando pela força dos ventiladores elétricos; o trabalho exaustivo na tarefa diária, nos serões, nas noites brancas, a exígua remuneração nos plantões esmagadores e noites mal dormidas; as esfalfantes caminhadas das oficinas para longínquas habitações de aluguéis módicos e pelo frio intenso ou pelos aniquilantes calores estivais, sem agasalhos suficientes para bem resistir ao primeiro, sem roupas apropriadas à atenuação dos outros; as privações de alimentação bastantes à nutrição e de boa qualidade; a miséria enfim, e a fome são os principais fatores dependentes uns dos outros, da pior das endemias reinantes, a tuberculose. (...) Sem que desapareça o regime industrial capitalista, explorador, absorvente, desumano e cruel (...) não se poderá dar combate eficaz à tuberculose.”
O médico anarquista Fábio Luz, da mesma maneira que destoava dos médicos higienistas do início do século XX que se prestaram como serviçais do Estado e do capitalismo para disciplinar a fábrica, decalcada do modelo disciplinar da prisão e internatos para crianças; das moradias dos trabalhadores, dos pobres, como uma maneira de docilizá-los, também, situa-se dissonante e distante anos-luz destes médicos pesquisadores genéricos que tomam carne, osso e sangue pessoais e intransferíveis como aditivos que incrementam e agregam valor aos seus monumentais negócios. Eles lustram e ilustram a miséria da continuidade da prisão e dos tribunais, inclusive os de “ética científica”.
Fábio Luz dizia: “Foi instintiva em mim a ideia anarquista. Assistindo desde menino a cenas de escravatura, rebelei-me contra a autoridade e o Estado. (...) Meu pai foi escrivão e, mais tarde administrador da Receita da Fazenda de Valença, onde nasci. Nesta repartição eram averbadas as escrituras de compra e venda de escravos mediante a cobrança de imposto de transmissão do direito e propriedade. Tornei-me abolicionista por sensibilidade. Constrangido quando observava a miséria, os sofrimentos e humilhações impostas pelos policiais negros nos seus semelhantes. (...) Foi quando, por casualidade, caiu-me nas mãos o livro de Piotr Kropotkin Palavras de um revoltado. (...) Li avidamente tudo o que Kropotkin tinha escrito, e assim me revelava a mim mesmo”.
Kropotkin em seu contundente escrito sobre as prisões afirma: “Diante da pergunta ‘o que fazer para melhorar o sistema penal?’, só há uma resposta: nada. É impossível melhorar uma prisão. (...) não se pode fazer absolutamente nada além de demoli-la.’”
Urge dar um fim ao aprisionamento, ao sistema penal e ao tribunal. Danem-se os genéricos! A vida é sempre uma questão pessoal.
Kafka um pouco antes de morrer já não conseguia comer, devido às ulcerações em sua garganta provocadas pela doença. Em meio a isto, fazendo uma força brutal, revisava seu texto intitulado “Um artista da fome”.
E, Manuel Bandeira, quando alguém veio lhe aporrinhar, perguntando por que no poema Pneumotórax ele usara a palavra ‘tocar’ e não ‘dançar’ no último verso, sua resposta foi simples: “porque não sei dançar”.
R A D. A. R
Projeto contra tuberculose nos presídios do MS servirá como referência nacional (01/07/2017).
Presos serão examinados e vão testar remédio para prevenir tuberculose (26/05/2017).
Fiocruz lança campanha de combate à tuberculose nos presídios (08/06/2018).
Fiocruz participa de reunião da ONU sobre tuberculose (19/09/2018).
Jason Andrews – Stanford University.
Plano Estratégico para o Controle da Tuberculose, Brasil 2007-2015.
Programa Nacional de Controle da Tuberculose, Brasil (2016).
Programa Nacional de Controle da Tuberculose (2018).
Sociedade Brasileira de Infectologia – SBI (Tuberculose).
Técnicas de aplicação e leitura da prova tuberculínica.
Las cárceles y su influencia moral sobre los presos por Piotr Kropotkin (1887).
O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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