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observatório ecopolítica

ano III, n. 46, março de 2019.

 

Notas sobre a tirania democrática.

 

Há uma característica da democracia pouca comentada: a tirania sobre os dissidentes.

 

A situação planetária pautada pela racionalidade neoliberal ao introduzir práticas democráticas na vida cotidiana como nas relações entre as pessoas, em suas famílias e localidades, nas empresas e nas instituições, incita à convocação de cada um à participação contínua. Em linhas gerais, provoca no leque que compõe as forças políticas, ênfase pendular, ora em governos de esquerda voltados para o aumento de políticas públicas, a proliferação de direitos inacabados de minorias, a crença no parlamento, ora em governos à direita voltados para condutas individualizantes, nacionalistas e patrióticas.

 

Com isso, amplia-se o número de partidos políticos que convertem movimentos sociais em organizações partidárias, ora dando legalidade a mobilizações regulares de extrema direita que adentram o parlamento para conter políticas de esquerda, ora proporcionando novos partidos que sintetizam as críticas à falta de capacidade de absorção dos movimentos pelos antigos partidos, ampliando o bloco à esquerda. A história das práticas de esquerda concentradas nos parlamentos, contemplando o imperativo democrático da racionalidade neoliberal, também abre as portas para a tirania contra os dissidentes.

 

Assiste-se, na atualidade, no ambiente planetário ao exercício-limite do resultado eleitoral democrático legítimo que situa a vitória das forças de direita acomodadas no Executivo e que governam como se tivessem um mandato da sociedade para realizar o que elas desejam. Amparadas em um suposto passe mágico que as colocam como proprietárias de uma verdade inquestionável, reformadoras imperativas da ordem e faxineiras ideológicas, estas forças pretendem transformar o leque em abano.

 

Para não serem vistas como autoritárias, ou explicitamente tiranas, encenam relações normalizadas com o parlamento, objetivando modificar radicalmente suas condutas e impondo uma nova maneira de se fazer política, ou seja, esperam que o parlamento emende os projetos do Executivo, explicitando que o verdadeiro projeto de governo é o do Executivo consagrado pela legitimidade obtida nas urnas, acrescido de sua calculada maioria assentada no parlamento. Em poucas palavras, cabe à oposição ser construtiva, colaborando com o projeto do governo no Estado, e que sua ala mais radical seja, gradativamente, silenciada sob o manto da legitimidade obtida pelo resultado eleitoral.

 

A tirania democrática depende do contingente mobilizado (nas ruas ou nas redes sociais) e da ação reativa das forças de esquerda empacadas em não mudar suas condutas ou pretendendo acatar os projetos de governo dentro das balizas de negócios anteriores, que caracterizavam a política democrática. As forças de esquerda encontram-se em um impasse: não têm como sair da sua conversão à democracia e ambicionam encontrar brechas para os negócios que repercutirão em votos futuros com a conservação ou proliferação de políticas compensatórias, ou políticas públicas.

 

A tirania democrática das forças à direita pretende endireitar o Estado, contendo suas intervenções com privatizações econômicas, redução dos efeitos de Estado em educação e saúde aos patamares de suas propostas individualizantes, levando adiante o saneamento das contas públicas e ampliando o rol das condutas criminalizáveis. A esquerda só discorda dos redutores em saúde e educação e pouco compreender a nova rodada de negociações.

 

A tirania democrática, à direita e à esquerda, depende das Forças Armadas e de polícia; de agências de inteligência e controle afiado sobre as comunicações eletrônicas; de código penal cada vez mais duro e que não fere qualquer constituição.

 

A tirania democrática coloca dificuldades na relação entre os chamados três poderes de Estado, dificuldades estas que podem crescer ou diminuir, segundo a mobilização de fluxo de seus seguidores. Os governos de esquerda e centro tendem a comandar seus seguidores em patamares institucionais como modo de fortalecimento da democracia e do Estado. Os governos de direita podem seguir o mesmo trajeto ou alterá-lo na medida em que o parlamento estiver cercado por efeitos de práticas anteriores condenadas pelo atual exercício do Executivo, que também conta no “atacado” com parlamentares ajustados a seu modo de fazer política e que no “varejo” pode discordar enquanto se ajusta às novas práticas que se pretendem sólidas e contínuas. A direita e a esquerda dependem de mobilizações constantes de seus seguidores.

 

A tirania democrática não aspira usar a polícia e as Forças Armadas contra a esquerda, mesmo porque a polícia e as forças armadas servem a qualquer governo de Estado. Mas, também, passa a ser de pouca valia os recursos diplomáticos dos Estados, posto haver nestes governos a crença que um país forte se firma com políticas moralizadoras, em regime democrático e na defesa da população empregada, ainda que precarizada, e produção de novos empregos. Este contingente é fundamental à tirania democrática por construir sua conduta com base na esperança de melhorias. Os benefícios para todos passam pela capacidade de investimento capitalista e pela sua competência ao implementar a inovação no capital humano. E se este está precarizado somente uma educação “militarizada” é capaz de proporcionar acesso aos filhos dos precarizados de hoje para ascenderem à condição de efetivo capital humano. Se o dispositivo diplomático funciona intensamente nas empresas, instituições de governo e nas demais (como ONGs, fundações e institutos), ele deve chegar às escolas, praticamente anulado ou minimizado. A politização, como se sabe, começa na escola, difundindo a obediência na competição, mas agora agregada ao respeito hierárquico rígido para se aprender a galgar no futuro um posto como capital humano. E quando a politização começa militarizada, o efeito futuro no atual dispositivo diplomático nas relações produtivas e sociais tenderá à anulação.

 

A tirania democrática no espaço das relações entre capital e capital humano anseia permanecer diplomática e democrática, com governos à direita ou à esquerda do Estado. Dos políticos à direita e à esquerda exige-se que direcionem, preferencialmente, suas atividades para maximizar a produção de empregos. Para tal, dissemina-se a crença que somente se produzem empregos com competição acirrada entre capitalistas para aumentar a produtividade e entre o capital humano para ampliar sua capacidade de inovação. Todavia, recomenda-se a estes políticos que não esqueçam que o capitalismo é cada vez menos uso da força mecânica e cada vez mais consumos das energias inteligentes do capital humano. Por um exercício lógico, a produção da miséria, de tempos em tempos, será maior ou menor, mas não há, como nunca houve no capitalismo, possibilidade de pleno emprego, mesmo porque protecionismo algum garante ocupação da mão de obra nacional, contra ou a favor da incorporação de imigrantes. Aos dissidentes resta o consolo normalizador ou a imprecação diante dos muros.

 

A tirania democrática sob a racionalidade neoliberal ultrapassa os efeitos de política governamental e de exercício do parlamento. Ela confina a antiga força de trabalho aos novos ajustes como capital humano em uma economia computo-informacional, amplamente monitorada que abrange desde o interior das empresas, instituições e escolas até as ruas, a casa e os equipamentos eletrônicos pessoais. A diplomacia nas relações individuais e coletivas funciona, então, como a imagem do medo acoplado ao terror que cada um vive diante da ameaça do tribunal e da prisão.

 

A tirania democrática tem seu fundamento na cultura da punição que habita indivíduos dividualizados por ocupações e direitos, empoderados ou não, pretendendo melhor qualidade de vida para si e sua prole, e empolgados na defesa da cultura de paz e com práticas de denúncias, ou de um belicismo aberto, no interior dos Estados ou contra Estados vizinhos.

 

A tirania democrática conta também com a possibilidade de uso de sua força legítima e das ilegais para combater, imobilizar ou suprimir não só as demais forças dissidentes, assim como as que aos seus olhos são vistas como combatentes inimigas. A tirania democrática é própria da democracia, uma característica que não pode ser negligenciada, porque atinge, além dos dissidentes, os guerreiros defensores de práticas de liberdade que se voltam tanto contra a naturalização das desigualdades como contra a historicidade com base na competência instaurada pela racionalidade neoliberal. São práticas que se voltam contra o consolo das utopias e contra a eternização da utopia liberal, em que a luta por direito é luta pelo direito à vida, recusando-se à condição de portadores de direitos.

 

Os defensores da democracia não devem se esquecer destes detalhes, pois a política democrática está sempre acoplada à tirania. Hoje, muito mais pela tirania da racionalidade neoliberal conduzindo condutas do que pela ação governamental mais à direita. Essa é apenas um episódio histórico da conservação capitalista democrática. E como o capitalismo funciona independentemente de regimes políticos, lançando mão de ditaduras e autoritarismos em nome da grandeza nacional ou da reposição institucional da democracia, ele acaba tragando para o interior da política os contestadores de regimes e governos, ou seja, quase todas as forças imantadas no leque de esquerda institucional, e segundo circunstâncias, compondo com os liberais. Com isso, o capitalismo segue pela grande avenida pavimentada definindo, de tempos em tempos, quem são os suspeitos e os perigosos, transformados em alvos a serem combatidos pelas forças políticas institucionalizadas. Fortalece, cada vez mais, a crença na punição, seja com um discurso meramente fiscal, religioso, nacionalista ou ecumênico, simplesmente porque a razão moderna não está dissociada de religião. E se a religião aparecer como contestação da ordem, cabe às suas respectivas instituições a correção de rota; se a religião aparece compondo com o Estado estará na rota certa, desde que dispensada de fundamentalismos, ou seja, do terror imposto a outros Estados. A racionalidade neoliberal sabe desfrutar dos governos à direita e à esquerda.

 

Enquanto se gasta palavras na crítica aos governos de direita para se ajustarem ao centro, ao mesmo adestramento a que se impôs a esquerda, permanece muito claro que a língua não é sinônimo de linguagem. As práticas de liberdade abalroam a gramática e a sintaxe.

 



R A D. A. R

 

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O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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