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observatório ecopolítica

ano III, n. 47, março de 2019.

 

Continuidade da pacificação: a violência de Estado como fabricação da paz.

 

A MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti) foi criada por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, em fevereiro de 2004, e operou sob a liderança das Forças Armadas brasileiras. Até outubro de 2017, os capacetes azuis brasileiros e militares de mais 15 países ocuparam o território haitiano para promover a pacificação após a queda de Jean-Bertrand Aristide. A missão se encerrou, oficialmente, por força de outra decisão das Nações Unidas, em outubro de 2017. O Conselho de Segurança da ONU, em 13 de abril de 2017, emitiu a Resolução 2350, estendendo o prazo da missão por seis meses, que seriam os últimos. Contudo, essa resolução não marca o fim do processo de pacificação da ilha caribenha que, além da ocupação militar, passou por um terremoto em 2010, e a devastação de um furacão em 2016.

 

Os capacetes azuis, liderados por generais brasileiros (os chamados force commander) ao longo dos 13 anos de missão, permaneceram no Haiti sob a justificativa de ação humanitária. Os 37.500 militares brasileiros cumpriram funções de polícia nos dois sentidos: organizando as forças repressivas na condução da UNPOL (polícia da ONU) junto à polícia nacional do governo do Haiti e promovendo atendimentos sanitários, sobretudo para administração da miséria generalizada e para os efeitos dos chamados desastres naturais, como o terremoto em 2010, que vitimou 220 mil pessoas, e o furacão Matthew, em 2016. Nessa missão, os militares contaram com auxílio e participação ativa da chamada sociedade civil organizada brasileira que viu a oportunidade de se projetar planetariamente, como a ONG Viva Rio e o Instituto Igarapé.

 

É sabido como o governo da época comemorou o que é reconhecido como a mais importante atuação brasileira no sistema ONU, exportando um sólido legado do governo civil-militar ditatorial que vigorou entre 1964 e 1985 no Brasil: a associação entre segurança e desenvolvimento. Essa celebração foi compartilhada por acadêmicos, jornalistas, a chamada opinião pública, e especialmente, pelos militares.

 

No entanto, essa combinação transterritorial entre violência sistematizada e cuidado com a população para promoção da segurança e do desenvolvimento, em algum momento teria que ser civilizada, ou seja, internalizada nas instituições civis. E isso se deu numa via de mão dupla: para o Brasil, os force commander hoje estão no primeiro escalão ministerial do atual governo, como os generais Augusto Heleno e Floriano Peixoto, entre outros. Para o Haiti, a MINUSTAH, a partir de 2017, foi substituída pela MINUJUSTH (Missão das Nações Unidas para o Apoio à Justiça no Haiti): a violência militar se transmutou em tribunal para exercer a violência de forma racional, sistemática e em meio às escaramuças de agentes policiais e técnicos civis, contando com muitos brasileiros. O Haiti segue sob processo de pacificação. Do militar ao civil, há um contínuo que vai e volta, para combinar violência e cuidado na produção da vida governada em nome da paz, da segurança e do desenvolvimento.

 

Em meio a esse jogo de vai-e-vem que se desdobra com plateia e participação planetária, desde fevereiro de 2019, o Haiti passa por diversas mobilizações de rua. Os manifestantes exigem a renúncia do atual presidente, Jovenel Moise, e do premiê, Jean Henry Céant. A violência permanece sendo a linguagem comum das forças da ordem, estejam elas sob controle civil ou militar. Entretanto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já manifestou preocupação diante dos registros oficiais que somam 26 pessoas mortas em meio aos confrontos de rua e 77 feridas até o começo de março. Nada de novo neste jogo planetário composto de tensão e distensão na governamentalidade planetária. Também não surpreende que esse jogo tenha arrefecido as manifestações no começo de março deste ano.

 

O mote específico das manifestações são notícias de casos de corrupção ligados ao mercado petroleiro e da construção civil. Uma via se abre para a pacificação judicial com auxílio da indignação da população haitiana. A suspeita é de que os mandatários da nação tenham desviado mais de 2 bilhões de dólares do acordo Petrocaribe, pelo qual a Venezuela vende petróleo subsidiado para países caribenhos. As irregularidades foram apontadas por uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas do país, que indicou entre 2008 e 2016, 15 ex-ministros e funcionários que ainda ocupam cargos oficiais envolvidos no desvio de dinheiro, incluindo uma empresa que o atual presidente dirigia antes de ser eleito. No último ano de presença oficial da MINUSTAH, abriu-se caminho para que exigem justiça. E ela está chegando, na forma de tribunal. Afinal, a guerra e os tribunais são excelentes instrumentos para expansão de negócios, sejam políticos ou econômicos.

 

As manifestações de rua, convocadas por partidos de oposição e movimentos sociais, tomaram grandes proporções e se espalharam pelo país; tal situação levou o Departamento de Estado dos EUA a ordenar, em 14 de fevereiro, que todo o seu staff e familiares não envolvidos em atividades emergenciais se retirasse do país. No mesmo dia 14, o presidente haitiano se pronunciou pela primeira vez desde o início dos protestos para negar os rumores que circulavam sobre a possibilidade de deixar o cargo, e disse que “lutará para restabelecer a paz e a estabilidade”. Paralelo a isso, reprimiu as manifestações nas ruas de Porto Príncipe e, ao mesmo tempo, anunciou algumas medidas para “minorar o sofrimento da população”: redução do preço dos alimentos, corte de 30% do orçamento de seu gabinete e a disposição para discutir com o setor privado sobre a possibilidade de aumento do salário mínimo. Com essa combinação, o governo haitiano internaliza a política entre e pelos técnicos e militares da MINUSTAH. Independente dos ocupantes da vez, que ora se veem acusados de corrupção pelos zelosos governados, o importante é que os dispositivos de cuidado e segurança funcionem.

 

Não é somente com violência que se contém uma população mobilizada, e a grande maioria se movimenta pelo desejo de um governo justo ou do justo governo que anseiam. Os governantes sabem disso e os governados, assujeitados, também. Esse é o jogo. Por isso, não transformam as suas manifestações indignadas em revolta.

 

As decisões são tomadas para aplacar a indignação: no último dia 18 de fevereiro, o ministro das Relações Exteriores, Bocchit Edmond, anunciou a prisão de dez pessoas, entre elas, cinco estadunidenses. As prisões foram realizadas sob a suspeita de que seriam agentes infiltrados para desestabilizar o governo. E neste jogo de cuidados, acusações e violências se faz a transição — com um tribunal no meio — para o governo civil e autodeterminado no molde jurídico-político moderno. Mesmo com a continuidade dessa referência legal nacional, o processo que resultou nisso perfaz a racionalidade da governamentalidade planetária com sua retórica moral humanitária, que produz as relações das forças legais e das ilegais atravessadas por organizações governamentais e não governamentais.

 

Assim, com militares, policiais, juízes e técnicos da burocracia planetária, a pacificação segue como projeto inacabado no Haiti. Entre o final o século XVIII e início do XIX, a ilha caribenha viveu um processo de independência como uma revolução. A Revolta de São Domingos (1791-1804), de inspiração jacobina, é uma referência de luta maior que a tão celebrada independência dos EUA. Ela apavorou a Primeira República brasileira com os ecos na revolta dos Malês, em Salvador, Bahia. Mas, hoje, está enredada no processo que varreu toda América Latina: a pacificação que se metamorfoseou da cruz e da espada, protagonistas entre os séculos XVI e XIX, para as ações humanitárias, no século XXI: as polícias da governamentalidade planetária.

 



R A D. A. R

 

MINUSTAH

 

MINUJUSTH

 

Fotos dos protesto no Haiti

 

Viva Rio no Haiti

 

Instituto Igarapé e a MINUSTAH

 

Haiti, a history of intervention, occupation and resistence

 

Haiti in Revolt: An Overview and Analysis of Six Months of Revolt

 

 





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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