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observatório ecopolítica

ano III, n. 48, abril de 2019.

 

A vida vale a Vale?

 

Tidos como integrados à sociedade nacional nos anos 1960, ou seja, praticamente extintos, os Pataxó, esgueirando-se pelas matas e mantendo-se quase camuflados, conseguiram durante séculos driblar as perseguições de colonizadores e fazendeiros, que se apropriavam de suas terras. Muitos tentaram de fato se integrar à sociedade nacional, denegando sua história.

 

Reapareceram assumindo-se indígenas nas últimas décadas do século XX. Porém, não cessaram os mesmos embates com proprietários de terra e o mesmo racismo da sociedade nacional.

 

Ao longo dos últimos trinta anos, expulsas do sul da Bahia devido às disputas pelas terras que utilizavam, famílias integrantes da aldeia Pataxó Naô Xohã se deslocaram para Minas Gerais. Algumas delas passaram a habitar o núcleo urbano de Belo Horizonte, vivendo da produção comercial de artesanato e de empregos temporários. Em pouco tempo, tornaram-se endividados, pauperizados e afastados um dos outros.

 

Mais recentemente, as famílias da aldeia Naô Xohã se reuniram e decidiram sair das áreas urbanas. Seguindo uma das tradições Pataxó, os deslocamentos pelo território em busca de locais habitáveis temporariamente pela coletividade, ocuparam uma área de 370 hectares, abandonada pela empresa de mineração do falido empresário Eike Batista, no município de São Joaquim de Bicas, às margens do rio Paraopeba. Um processo de reconhecimento pelo Estado dessa área ocupada como Terra Indígena está em curso.

 

Os Pataxó são marcados por uma associação ancestral às águas, como situa a constelação de seus mitos e rituais. Aos rios e à fauna aquática, dedicam festas e homenagens: são seres vivos. Em abril haveria a Grande Festa das Águas na aldeia. Entretanto, na madrugada de 26 de janeiro, o rio Paraopeba foi se tornando turvo, e os peixes agonizaram nas margens fluviais sem oxigênio. Em poucas horas, o rio tornou-se um mero dreno de lama, envenenado para qualquer uso, inclusive irrigação, perigoso até para quem dele se aproximasse. O rio morreu.

 

No dia 25 de janeiro, às 12h28, na bacia do Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, a base do paredão de uma barragem se liquefez, e, em poucos segundos, uma onda gigantesca de lama com aproximadamente 13 milhões de metros cúbicos de rejeitos da exploração de minério de ferro pela Vale do Rio Doce avançou a até 80 km por hora, soterrando e destruindo tudo em seu caminho. Sirenes de emergência não tocaram. À jusante, moradores e trabalhadores foram pegos de surpresa. Quase 300 pessoas morreram em poucos minutos. 125 hectares de mata nativa foram soterrados. Plantações foram cobertas por metros de lama. Estradas e pontes caíram. Casas se despedaçaram. Poucos animais da área, domésticos ou selvagens, se salvaram. A massa viscosa seguiu mais liquefeita pelo rio Paraopeba, e há indícios de que partículas mais finas atingiram o rio São Francisco.

 

Essa barragem fazia parte do Complexo Minerário de Paraopeba, que, em 2017, produziu 26,3 milhões de toneladas de minério de ferro, cerca de 7% da produção da empresa. A Vale extrai em torno de 400 milhões de ferro por ano, e seu valor total na bolsa de valores está cotado em 260 bilhões de reais.

 

Três anos antes, em novembro de 2015, um evento similar ocorrera em um distrito da cidade de Mariana. Uma barragem de contenção da SAMARCO, empresa parceira da Vale do Rio Doce, com 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos, estourou matando 19 pessoas, destruindo o distrito de Bento Rodrigues, contaminando o Rio Doce, com impacto em 43 municípios e na aldeia indígena dos Krenak. A lama entrou pelo mar, chegando até os corais do Parque Nacional Marinho de Abrolhos, na Bahia. Indenizações e medidas mitigadoras da destruição ainda estão pendentes. As multas ambientais não foram pagas. Em todo caso, a empresa prometeu, na ocasião, eliminar as 19 barragens, a montante que ainda possuía, inclusive a do Córrego do Feijão. Nada foi feito, porém.

 

Passado o prejuízo com a SAMARCO, a Vale voltou a faturar. De 23 bilhões de dólares em 2015, ano do acidente em Mariana, o faturamento chegou a 36 bilhões até setembro de 2018. Antes do rompimento em 2019, seu valor de mercado estava em torno de 77 bilhões de dólares, o que a colocava entre as cinco maiores mineradoras de ferro do mundo. No entanto, o investimento total, incluindo a manutenção, diminuiu. Passou de 8 bilhões de dólares em 2015 a 3 bilhões em 2018, até setembro. Em barragens e pilhas de rejeitos, o investimento caiu quase pela metade: em 2014 era de 474 milhões de dólares; em 2017, passou para 202 milhões. Em uma audiência pública sobre a barragem, o então presidente da empresa, placidamente, disse: “A Vale é uma joia brasileira que não pode ser condenada por um acidente que ocorreu em sua barragem”.

 

A Barragem do Fundão, da SAMARCO, já apresentava problemas estruturais identificados na época do desastre, mas a Barragem do Córrego do Feijão não estava incluída na lista daquelas com risco iminente de rompimento, apesar de “classificada em zona de atenção” em um documento interno da empresa, acessado pelo Ministério Público após o acidente. Segundo outros documentos internos, reconhecia-se que o dano, caso ocorresse, seria alto, inclusive quanto ao número de vítimas, como de fato ocorreu. Em um estudo datado de 2015, a Vale previa que a cada óbito resultante de rompimento de barragem seria paga uma indenização de mais de nove milhões de reais ― valor que não impediu a empresa em manter sua política de lucros, seus relatórios de consultores e óbitos a serem computados.

 

Ao lado do auxílio aos atingidos direta ou indiretamente pela lama, iniciou-se a busca de culpados e o circo das detenções, amplamente divulgado pela mídia: dois funcionários da Vale, mais três engenheiros que assinaram laudos foram presos acusados de homicídio, crime ambiental e falsidade ideológica. Depois, foram soltos. Em seguida, presos de novo junto com outros, e de novo soltos. Colheram-se depoimentos dos responsáveis pela manutenção e monitoramento da construção. Veio a público um laudo de uma consultoria externa em que se reportavam problemas sérios na estrutura já no fim do ano anterior, e que a Vale contratou outros consultores que logo em seguida assinaram um atestado de segurança da Barragem. Ambos os consultores silenciaram. Afinal, este é o jogo de pareceres e contra pareceres, dentre outros, constitutivo do lucrativo negócio de barragens e mineradoras.

 

A empresa prometeu, em três anos, desativar dez barragens similares, retirando os rejeitos e recuperando a área, ao custo de reduzir a produção de ferro em 10%. Cabe lembrar que o minério de ferro é o segundo produto mais exportado pelo Brasil, depois da soja e antes do petróleo. Prefeitos lamentam uma possível perda dos impostos recolhidos pelas atividades minerárias. Habitantes da região temem o rompimento possível de várias outras barragens que poderão destruir suas casas e propriedades, mas, também, temem por seus empregos e pelas atividades de apoio à mineração.

 

O Ministério do Meio Ambiente, recém-empossado no mês do rompimento, anunciou a cobrança imediata de uma multa de 250 milhões de reais para o IBAMA. Recentemente, o ministro do Meio Ambiente transformou a multa em exigência de investimento da Vale em sete parques estaduais de Minas Gerais, visando o fomento da atividade ecoturística. Segundo ele: " é uma grande oportunidade para o estado de Minas Gerais ter um grande investimento nesse montante de R$ 250 milhões, investimento esse que traz não só conservação do meio ambiente, mas justamente a oportunidade de emprego e desenvolvimento de um estado que está muito fragilizado por causa dos problemas da mineração".

 

Muitos interesses se entrecruzam nessa lama, soterrados ou não. Os indígenas, frente ao rio morto da aldeia que tentavam construir estão nas palavras de Ãngohó, mulher Pataxó: “Quanta gente, quantos peixes ainda vão precisar morrer por causa de minério, de ouro, de prata. Nossa vida vale mais do que isso”.


 

Sem terra, sem vida

 

Associar a conservação das terras indígenas, TIs, à salvaguarda da população indígena parece óbvio; contudo, sabe-se que tanto o processo de demarcação de terras indígenas como a preservação sociocultural das diversas etnias existentes no Brasil são constantemente permeados por confrontos e violências, poucas vezes noticiados pelos grandes meios de comunicação e, quase sempre, resultando em assassinatos e invasões.

 

Mesmo constatado por autoridades governamentais e especialistas que a permanência das etnias em suas terras contribui para a preservação da floresta ― condição imprescindível para manutenção da biodiversidade, de estoques de carbono e outros quesitos ambientais ― mesmo havendo muitos projetos apoiados por órgãos internacionais, objetivando salvaguardar a Amazônia e conter sua destruição, ano após ano permanece a investida contra indígenas, ora mais amena, ora acintosamente violenta.

 

A criação das APs, áreas protegidas, foi uma das medidas adotadas para a proteção da floresta, mas, apesar de sua implementação, presenciam-se ameaças e pressões políticas de grupos ligados ao agronegócio para instalar a exploração nesses territórios, acentuando a ocorrência do “desmatamento ilegal”, vinculado à extração de madeira e ao garimpo, além das ameaças e efetivas construções de hidrelétricas, etc.

 

O instituto Imazon apresenta a cada trimestre um relatório a partir do SAD (Sistema de Alerta de Desmatamento, plataforma colaborativa com Google), mostrando as áreas protegidas sob ameaças, onde a exploração ocorre a 10 km de uma AP, e sob pressões, onde a exploração ocorre em seu interior. Diante dos dados exibidos no relatório, referentes ao trimestre de agosto a outubro de 2018, já se tem noção da dimensão do desmatamento e, consequentemente, da ameaça aos povos indígenas. Considerando 1437 células atingidas pelo desmatamento, 891 delas (62%) estavam em situação de ameaça e outras 543 (38%) em situação de pressão, sendo que a ocorrência de desmatamento foi 60% maior do que no mesmo período em 2017. As Unidades de Conservação Federais representaram 80% das áreas protegidas dentre as 10 mais ameaçadas na Amazônia. Os estados do Acre e Rondônia concentram áreas sob pressão principalmente em Florex Rio Preto Jacundá (RO) e na APA Triunfo do Xingu (PA); nas Unidades de Conservação federais, destacaram-se ameaças na Resex Chico Mendes (AC) e na Flona do Iquiri (AM), sendo que a Resex Chico Mendes passa por ameaça e pressão. As terras indígenas Karipuna e Jacareúba/Katawixi foram as mais ameaçadas em 2018. Em janeiro de 2019, o SAD identificou 108 quilômetros de desmatamento na área da Amazônia Legal, sendo 7% em TI e 5% em Unidades de Conservação. Comparando com o mesmo período do ano anterior, verificou-se um aumento de 54% no desmatamento.

 

Embora se constate a continuidade de disputas violentas por terras e conflitos armados que resultam na execução de indígenas desde 1500, o ano de 2019 já trouxe “inovações”, que acirram essas violências e enfraquecem até mesmo a possibilidade jurídica de mitigar os massacres e espoliações dos povos indígenas.

 

As TIs são propriedades do Estado, habitadas por uma ou mais etnia, e se configuram enquanto “direito de natureza originária e coletiva”. Por não se caracterizar como propriedade privada, todo o processo de demarcação ocorre por meio de “natureza declaratória”, de acordo com o Decreto 1775/96 baseado no Artigo 231 da Constituição Federal, e leva em conta o uso futuro da terra para conservação dos costumes e sobrevivência. As TIs, atualmente, representam 12,2% do território nacional e apesar de localizadas em todos os biomas, concentram-se na Amazônia Legal, ou seja, nas terras indígenas Yanomami (AM/RR) e Raposa Serra do Sol (RR).

 

O processo de demarcação de terras indígenas segue as regulamentações do Decreto nº 1775/96, por meio do cumprimento de etapas que vão desde o estudo de identificação e delimitação, feito pela Funai, passando pelo Ministério da Justiça, pela homologação da demarcação pela presidência da república e pelo registro das terras feito pela Secretaria de Patrimônio da União.

 

Sob a justificativa de que as linhas de transmissão de energia elétrica que saem da Venezuela para abastecer o Brasil pudessem ser interrompidas, devido aos últimos acontecimentos no país o atual governo anunciou em fevereiro de 2019 que definiria uma ilha de transmissão entre as cidades de Manaus (AM) e Boa Vista (RR), valendo-se das prerrogativas do artigo 231 parágrafo 5º da CF sobre a “alternativa energética estratégica para manter a soberania nacional” para justificar e viabilizar a utilização de terras indígenas sem consultar a Funai e, obviamente, ignorando as comunidades e lideranças indígenas envolvidas.

 

Como era de se esperar, em governos a direita e a esquerda, o Conselho de Defesa Nacional, ao enquadrar a obra nesse critério, parte do princípio de que os interesses econômicos e políticos para a defesa nacional se sobrepõem às vidas indígenas. Decisão semelhante já fora tomada no caso da Raposa Serra do Sol durante o processo de demarcação de TI no ano de 2009. Em 2013, após muitas pressões, o STF, por acomodação, decidiu por unanimidade que esta decisão se aplicaria ao caso específico da Raposa do Sol, não tendo caráter circulante para outras situações. Porém, em 2017, por meio da Advocacia Geral da União, o governo determinou que todos os processos envolvendo demarcação de TI deveriam seguir o entendimento do STF sobre a ocorrência Raposa do Sol.

 

Embora o atual governo tenha se valido desta nova determinação, a decisão de aplicá-la no caso da linha de transmissão de energia elétrica do Tucuruí, conhecida também como Linhão do Tucuruí, não tem respaldo legal, pois não se trata de processo de demarcação de TI, mas sim de invasão em uma TI já constituída, sem os chamados devidos procedimentos legais. Se, de um lado, a invasão por brancos em terras dos índios não é novidade, basta olhar para a História do Brasil, de outro lado expõe como o "legal" e o "ilegal" são distinções convenientes ao Estado e suas relações com proprietários. Como sempre, a lei é dos proprietários brancos, erguida sobre o sangue de povos e etnias considerados inferiores, a despeito de toda hipocrisia igualitária. Este “linhão” está previsto com extensão de 715 quilômetros, dos quais 120 atravessam a TI dos Waimiri Atroari; as obras devem iniciar até dezembro de 2021.

 

Desde o começo do mandato, o atual presidente declarou que pretende rever as demarcações das TIs sob a alegação de que há necessidade de ampliar a exploração das terras, principalmente por conta da mineração, tendo como premissa a alegada improdutividade dessas terras ocupadas pelos indígenas. Adotando justificativas de que a Funai e o próprio Ministério do Meio Ambiente, dentre outros, seriam antros de doutrinação [sic], o governo transferiu a Funai, do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que passou a responsabilidade pela identificação, delimitação e demarcação de TIs para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

 

Em paralelo ao processo sucessivo de desmatamento, segue o aniquilamento sistemático das populações indígenas, seja por conta do assassinato de muitos deles, seja pela saída compulsória de suas terras, desencadeando o êxodo de indígenas para os centros urbanos e sua decorrente pauperização. Eles passam a ser beneficiários de programas de transferência de renda e se aglomeram em casebres improvisados, muitas vezes praticando mendicância. Diante da militarização do MAPA, com a nomeação de oficiais das forças armadas e policiais militares ligados à fiscalização ambiental para ocupar cargos como secretários e diretores, conclui-se que esta estrutura corresponde ao desdobramento do papel regulador das forças controladoras e repressivas como parte constitutiva da gestão administrativa, passando a responder pelos interesses do “Brasil“ em nome da tal soberania.

 

A aniquilação dos povos indígenas é aceita por muitos segmentos da sociedade nacional, pois políticos, governantes e empresários ligados ao agronegócio têm investido no argumento de que os indígenas teriam muitas terras improdutivas; que o crescimento econômico do país depende da exploração de mais e mais terras; que o indígena é cidadão como qualquer outro brasileiro e, portanto, deve viver como tal.

 

Além de equivocar-se com as leis de proteção, a “nova política” desse governo pode custar a continuidade das 300 etnias existentes em todo o país, que hoje somam quase 900 mil pessoas, e isso é simplesmente inaceitável. Eles precisam da terra e somente sobreviverão se estiverem em seus territórios, pois seus hábitos e costumes dependem intrinsecamente dessa relação, não se tratando apenas da mera sobrevivência no aspecto econômico.

 

Não há "equívoco" do Estado em relação as leis de proteção. É uma política que de tempos em tempos expressa cabalmente seu objetivo: o extermínio sistemático dos índios.

 



R A D. A. R

 

Aldeia pataxó está de luto por morte do Paraopeba

 

Lama de rejeitos da Vale chega à aldeia Pataxó Hã-hã-hãe pelo rio Paraopeba; indígenas decidem permanecer na área

 

Ameaças e pressão de desmatamento em áreas protegidas

 

Demarcação de terras - Legislação

 

Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) operacional na plataforma Google Earth Engine

 

 





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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