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observatório ecopolíticaano III, n. 53, junho de 2019.
Meio Ambiente
5 de junho é o Dia Mundial do Meio Ambiente, instituído pela ONU, em 1972, na primeira Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo. Próximo a esta data, anualmente, surgem reportagens específicas, novos planos e campanhas para o planeta são anunciados, imagens referentes ao tema da vez bombardeiam os sentidos.
Em 2018, foi lançada pela ONU a campanha contra o lixo jogado nos oceanos, destacando-se a poluição por plásticos. Dentre os efeitos no cotidiano, além da divulgação exaustiva de imagens do lixo plástico, basta observar, por exemplo, a diminuição da oferta de canudos plásticos para nossos sucos. A campanha de 2019 trata da necessidade de medidas contra a poluição do ar. Veremos os efeitos...
A questão do meio ambiente passou a ser do dia a dia dos habitantes do planeta há pouco menos de meio século. Antes disso, a palavra meio ambiente tinha apenas uma acepção vaga de atmosfera moral, de um lugar específico natural ou artificial com alguma qualidade delimitada, ou então apenas associada à natureza. Na atualidade, mais do que um conceito ou uma palavra com definição estrita, meio ambiente funciona enquanto um dispositivo, ou seja, um conjunto de elementos antes dispersos que, ao se unirem, respondem estrategicamente a alguma demanda urgente, no caso, uma demanda envolvendo o futuro do planeta e de seus habitantes, especialmente, os humanos.
No Brasil do governo federal, recentemente, vem ocorrendo uma indisposição ao dispositivo meio ambiente. Busca-se desagregar institucionalmente os elementos que o compõem, ora para dissolvê-los, ora para fundi-los a outros assuntos ou isolá-los, ou mesmo provocar uma decomposição.
1. O dispositivo
Nos anos posteriores à recuperação econômica dos países envolvidos na II Guerra Mundial, especialmente na década de 1960, houve frequentes debates envolvendo entre outros, cientistas, movimentos sociais, empresários, organizados ou não em associações institucionais, sobre o futuro da humanidade e a finitude dos recursos naturais da Terra. O crescimento econômico zero chegou a ser aventado em nações industrializadas diante dos impactos das atividades econômicas na saúde humana e no meio natural. Os efeitos deletérios de tais ações ultrapassavam as fronteiras nacionais e ao mesmo tempo ameaçavam os chamados bens comuns da humanidade, destacando-se os oceanos, a atmosfera e o espaço sideral. O Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU, em 1968, decidiu convocar uma discussão internacional que ocorreu no encontro realizado em Estocolmo, na Suécia, país que passava pelos efeitos da poluição decorrente do parque industrial da Alemanha.
Foi na Conferência de 1972, com a presença de quase todos os países-membros da ONU nas conversas e debates sobre as questões de crescimento econômico e a proteção aos recursos naturais da Terra, que se consolidou a emergência do dispositivo meio ambiente. Ao combinar temas heterogêneos como saúde humana, produção econômica, proteção ao meio natural, ciência ecológica e combate à pobreza, unificou a humanidade em torno de algumas proposições para proteger a vida no planeta e incluiu entre os direitos humanos fundamentais o acesso a um meio ambiente de qualidade.
Porém, o estabelecimento de políticas para regular a produção econômica em nome da defesa do meio natural foi aceito por poucos países. Os encontros prévios ao evento foram acalorados: os países menos desenvolvidos protestaram contra a redução das atividades econômicas e de medidas contra o chamado “desenvolvimento”. O Brasil ficou do lado desenvolvimentista, mas, junto com outros países do chamado terceiro mundo, seus diplomatas enfatizaram, além da soberania nacional, a questão da pobreza resultante da estagnação econômica, e o assunto entrou na pauta ambiental. Apesar disso, os debates internacionalistas, sob a égide do sistema ONU, continuaram ao longo dos anos seguintes em busca de um consenso.
O impasse entre a preservação do planeta e o crescimento socioeconômico começou a ser equacionado com o funcionamento do dispositivo meio ambiente ao conectar novas instituições e agências internacionais. Nos debates, especialmente os realizados pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, formada pela ONU em 1983, o dispositivo conectou experiências práticas e temas heterogêneos: energia, vida urbana, clima, indústria, agricultura, ecossistemas, natalidade, segurança alimentar, indígenas, gestão dos bens comuns, uso de recursos naturais, participação de grupos de interesse nas decisões, entre outros elementos. Como resultado, publicado em 1987, no relatório da comissão conhecido como Nosso Futuro Comum ou Relatório Brundtland, surge uma meta estratégica para o planeta: o desenvolvimento sustentável, em que o crescimento socioeconômico a ser estimulado ocorreria sem comprometer os recursos do planeta para que, assim, as futuras gerações pudessem suprir suas necessidades.
Em 1992, realizada no Brasil, com a presença maciça de países–membros da ONU, a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92, conhecida também como Rio-92, consolidou na pauta planetária o consenso em torno do desenvolvimento sustentável. A Declaração do Rio deixou claro que nas próximas décadas a proteção ambiental faria parte do desenvolvimento.
A produção socioeconômica global incorporou, ao menos na retórica, a sustentabilidade — qualidade fundada na avaliação da duração dos efeitos de ações humanas no meio ambiente e da “capacidade de suporte” deste frente a tais ações em uma linha do tempo. Na prática, a busca da sustentabilidade resultou em mudanças pontuais, inclusive no teor de financiamentos internacionais a projetos de desenvolvimento que passou a exigir estudos sobre os impactos no meio ambiente.
O dispositivo meio ambiente tornou-se fonte de critérios normativos para a conduta social e governamentalidade no planeta, expandindo-se para outros setores da sociedade, além da produção econômica. É um tema transversal nas diretrizes educacionais, tornou-se um dos elementos-chave na avaliação da qualidade de vida estabelecida por políticas públicas, incluiu-se nas regras do comércio entre as nações.
Em 2015, as Nações Unidas aprovaram uma agenda com 17 objetivos — os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável— a serem alcançados pelos países membros até 2030, visando o crescimento econômico e o combate à pobreza, sem descuidar da conservação da vida no planeta. Cinco objetivos se referem diretamente a temas estritamente ecológicos: oceanos, água doce, biodiversidade, fontes de energia e clima.
Ainda em 2015, os 193 países membros da ONU assinaram o Acordo de Paris, comprometendo-se a adotar medidas para deter o aquecimento do planeta, conforme diagnosticado e monitorado pela Convenção-Quadro sobre Mudança Climática, fórum intergovernamental, instituído na ECO-92. O Acordo de Paris relaciona-se diretamente ao 13º objetivo da Agenda 2030.
2. A indisposição e alguns de seus prepostos
No Brasil, apesar das críticas governistas às propostas para uma maior proteção ambiental estabelecidas em Estocolmo, foi criada já em 1973, em plena ditadura civil-militar, uma Secretaria Especial de Meio Ambiente – SEMA, vinculada ao Ministério do Interior.
Entre suas atribuições iniciais estavam, ao lado da criação e administração de estações ecológicas e parques, a prevenção e a correção dos “efeitos danosos da poluição industrial a partir da capacidade depuradora da água, do ar e do solo”, sem “obstar indevidamente o desenvolvimento econômico e social do país” (Artigo 3, do Decreto 76.389/1975). Em 1981, foi promulgada a Lei nº 6.938 que rege a criação da Política Nacional de Meio Ambiente, implementada pela SEMA, e regulamentada pelo Decreto nº 88.351 de 1983, legislação vigente com modificações até hoje. As atribuições da secretaria foram ampliadas em 1989, quando recebeu as imputações de órgãos do setor florestal, que estavam alocados no Ministério da Agricultura. A consolidação do Ministério do Meio Ambiente com as características básicas atuais, ao menos até o ano passado, data de novembro de 1992.
No entanto, logo depois de eleito em 2018, o atual presidente anunciou uma drástica redução dos ministérios, que, entre outras medidas, levava à absorção do Ministério do Meio Ambiente pelo Ministério da Agricultura. Houve, porém, protestos de vários lados, tanto de organizações ambientalistas e de associações de cientistas, quanto de ruralistas e de exportadores de commodities que dependem do cumprimento de metas ambientais acordadas internacionalmente. Na ocasião, tampouco a futura ministra da Agricultura se entusiasmou com a proposta: as atribuições ambientais ultrapassariam o escopo da interface com a atividade agrícola. Então, o Ministério do Meio Ambiente não foi extinto.
Na realidade, a partir daí começou a dissolução das instituições ambientais, além de uma desqualificação do discurso de proteção ao meio ambiente, impulsionadas por duas vertentes correlatas: a ação das forças que alavancaram a pessoa escolhida para ser o ministro do meio ambiente e o enfraquecimento da capacidade decisória e de articulação do ministério.
O ex-Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Ricardo Salles, cujo mandato (e contato com a “causa” ambiental) se estendeu de julho de 2016 a agosto de 2017, foi escolhido para ser o ministro. Candidato a deputado federal pelo Partido Novo em 2018, não obteve votos suficientes para ser eleito e ficou com a suplência. Os financiadores de sua campanha eleitoral foram majoritariamente empresários do agronegócio. Entre eles estava um empresário causador do desmatamento de 290 km², em uma área provavelmente grilada, em Altamira, Pará, e também suspeito de ordenar o assassinato de uma mulher do Movimento Sem Terra no Pontal do Paranapanema em São Paulo.
Em 2006, o atual ministro e cinco amigos fundaram o Movimento Endireita Brasil, cuja interpretação do endireitamento seria a redução do Estado a um acessório do mercado e, explicitamente a serviço das iniciativas dos proprietários, “em nome da liberdade” destes. O endireitamento volta-se para as seguintes práticas: exaltação do golpe civil-militar de 1964, apoio à liberação do porte de armas, combate ao casamento gay, defesa de uma repressão armada ao Movimento Sem Terra – MST, além de divulgação de boatos e fake news. Obviamente, o grupo apoiou o presidente eleito nas eleições de 2018 e continua divulgando notas e campanhas de defesa do mesmo em facebook, twitter e similares.
O caso do ministro do meio ambiente e sua trajetória ilustra como atua um serviçal dessa direita quando se empenha e obtêm o acesso a instrumentos de governo garantido pelo uso da força monopolizada pelo Estado. Quando Ricardo Salles foi escolhido para ser ministro, recomendado pela Sociedade Rural Brasileira, (associação centenária que trabalha pelos interesses dos produtores rurais do país), esta comemorou a decisão: “a experiência de Salles [na Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo] pode trazer modernidade, segurança jurídica e eficiência para a gestão da pasta do Ministério”. Nabhan Garcia, que na ocasião era o presidente da União Democrática Ruralista – UDR e hoje ocupa a Secretaria dos Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, afirmou com entusiasmo: “Porque Salles à frente do Meio Ambiente significa o fim do Estado policialesco e o fim do Estado confiscatório (sic) em cima de quem trabalha e produz nesse país”. Não se deve ao acaso que Nahban também possua terras no Pontal do Paranapanema, região paulista de antigas terras devolutas e ocupadas ao longo do século XX com a força de capangas (hoje, também chamados de milicianos).
Voltemos às experiências de Salles em seus 12 meses e alguns dias na gestão ambiental paulista, citando apenas algumas das mais conhecidas medidas:
1. A tentativa de vender para empresários conhecidos o prédio do Instituto Geológico no município de São Paulo, pertencente à Secretaria do Meio Ambiente, alegando existência de um parecer favorável à venda elaborado pela Consultoria Jurídica do órgão. Na verdade, o parecer era contrário.
2. Outras tentativas de transação comercial do patrimônio ambiental paulista. Desta vez, foi aberta uma consulta junto a interessados em comprar ou explorar 34 áreas de pesquisa florestal, que funcionam como áreas de preservação, no sentido de identificar quais florestas seriam liberadas para a venda ou mesmo concessão temporária, mediante legislação específica a ser elaborada pontualmente. O processo todo foi, porém, suspenso pela justiça.
3. A retirada histriônica de um busto rudimentar esculpido por um artista local e de uma exposição de fotos sobre Carlos Lamarca no Parque do Rio Turvo em Cajati, Vale do Ribeira (região pela qual o guerrilheiro passou em 1969), alegando posteriormente que a homenagem “estaria plantando o comunismo no coração das crianças”.
4. A alteração de mapas e do memorial descritivo do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental – APA do Rio Tietê, aprovado em reuniões do Conselho do Meio Ambiente – CONSEMA, órgão deliberativo da secretaria, para assim deixar de fora uma indústria e algumas empresas de mineração, atendendo solicitações da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP. O secretário justificou seu ato ao explicar que “os mineradores não foram ouvidos” nas reuniões do CONSEMA. O caso resultou em uma ação civil pública de improbidade administrativa e a anulação dos mapas adulterados, o que fez Salles pedir demissão. Meses depois, foi condenado, quase na mesma ocasião de sua posse no Ministério do Meio Ambiente sob a proteção do atual presidente, que assim comentou a decisão judicial: “ele [Salles] foi condenado por fazer o certo”.
3. A desagregação
Nos primeiros dias de janeiro de 2019, o Ministério do Meio Ambiente foi reformulado por medidas e decretos presidenciais que extinguiram ou transferiram suas atribuições. Para o Ministério da Agricultura foi repassado o Serviço Florestal, cujo objetivo principal é a gestão das reservas naturais, especialmente das florestas públicas, cabendo-lhe também a gestão do Cadastro Ambiental Rural – CAR, exigência instituída pelo Código Florestal. O CAR deve registrar em cada propriedade e posse rural as áreas que podem ou não ser desmatadas e as que precisam ser recuperadas, viabilizando a fiscalização de irregularidades. A gestão do CAR na Agricultura enfatiza o critério da produtividade da área e não a preservação. Alguns projetos de lei de redução ou mesmo eliminação das áreas a serem preservadas nas propriedades começam a ser aventadas por parlamentares governistas.
Em relação à atividade pesqueira havia a gestão compartilhada da Secretaria Nacional de Aquicultura e Pesca com o Ministério do Meio Ambiente. Em janeiro, a pesca passou a ser gerida apenas pelo Ministério da Agricultura, implicando o fim de exigência de parecer ambiental para a atividade. A gestão da política de recursos hídricos, incluindo a Agência Nacional de Águas (ANA), foi para o Ministério de Desenvolvimento Regional.
O tema das mudanças climáticas praticamente desapareceu do organograma do Meio Ambiente redistribuído pelos Ministérios da Agricultura, das Relações Exteriores, do Desenvolvimento Regional e da Ciência e Tecnologia. A Secretaria das Mudanças do Clima e Florestas foi extinta e com ela dois de seus departamentos, o de Políticas em Mudança do Clima e o de Monitoramento, Apoio e Fomento de Ações em Mudança do Clima. O assunto florestal, incluindo a questão do desmatamento, foi encaixotado em uma nova Secretaria das Florestas e Desenvolvimento Sustentável dentro do MMA.
Em campanha, o atual presidente avisou que poderia “tirar o Brasil do Acordo de Paris” por considerá-lo ameaça à soberania nacional. Ao ser eleito, anunciou que não realizaria a 25ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Mudanças Climáticas, a COP-25, marcada para ocorrer no Brasil em novembro de 2019. Ao tomar posse, recuou da saída do acordo climático, mas manteve o cancelamento. Para o presidente e os seus, a questão climática consiste em “ideologia de esquerda”.
Enquanto isso, o ministro do meio ambiente tem feito jus à sua experiência ambiental. Como endireitista exemplar ele atendeu com zelo a seus apoiadores e aos que lhe deram o cargo.
O IBAMA foi acusado pelo governo de funcionar como uma “indústria de multas”, as quais “retroalimentam uma fiscalização xiita”. Promoveu-se, então, uma “limpa” nas autarquias ambientais. O ministro exonerou vinte e um dos 27 superintendentes do IBAMA. Quanto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio —responsável pela administração e proteção de unidades de conservação da União, pelo fomento ao extrativismo sustentável e pelas políticas referentes à biodiversidade e ao patrimônio genético—, sua diretoria foi exonerada também. Os cargos estão hoje ocupados por policiais militares, nomeados com o objetivo de acabar com o “arcabouço ideológico” no setor. Planos de reduzir ou privatizar unidades de conservação começam a ser viabilizados por editais prometidos para os próximos meses. Segundo o ministro: “a lógica de ouvir o mercado vai se aplicar para tudo”.
“O que importa quem é Chico Mendes agora?”, gracejou o ministro em uma entrevista, depois de ser questionado sobre seu desconhecimento da importância do seringueiro acreano no movimento ambiental planetário. Chico Mendes tinha criado um movimento de defesa de florestas no Acre, cujo efeito chegou, nos anos 1980, até a ONU e às discussões da Comissão Brundtland. Graças a essa iniciativa, para dar um exemplo, o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID comprometeu-se com a proteção ambiental no financiamento de projetos. Em 1988, Chico Mendes foi assassinado à queima-roupa em Xapuri, Acre, por um proprietário de terras.
O ministro começou a eliminar a presença dos ambientalistas em órgãos deliberativos das políticas para cumprir sua promessa de “preservar o meio ambiente sem ideologia”. O Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA — órgão consultivo e deliberativo vinculado ao MMA para assessorar o Executivo nas políticas ambientais, criado em 1981, e composto de representantes do governo, do setor produtivo, da ciência, dos ambientalistas — foi reduzido de cem para vinte e um integrantes, excluindo entidades ligadas aos indígenas, às populações tradicionais e à comunidade científica, e dificultando a atuação de organizações ambientais.
Outra obstrução ocorreu ao Fundo Amazônia, criado em 2008 e administrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O fundo reúne R$ 3,4 bilhões em doações, na maioria vindas da Noruega e da Alemanha, destinadas à conservação da floresta e à redução do desmatamento. O ministro alegou ter encontrado irregularidades nas contas, prontamente desmentidas pelos responsáveis. Na realidade, a intenção do governo é desviar parte das doações para indenizar proprietários das terras que se tornaram unidades de conservação. Esse uso do fundo foi proibido desde sua formação. A tentativa de desqualificar o programa e de usá-lo para agradar ruralistas criou um impasse, ainda não equacionado, com os países doadores que chegaram a admitir o encerramento do fundo.
A cooperação entre Estados no comércio global e em questões humanitárias, marcada pela produção em moldes capitalistas e regulada pelo sistema da ONU, havia encontrado no dispositivo meio ambiente um facilitador para programas transnacionais discutidos e implantados, em nome da melhoria, ou ao menos da manutenção, da qualidade de vida no planeta. Entretanto, desde a ascensão do governo Trump nos EUA, crescem as forças defensoras de um nacionalismo econômico e social, com limites ao trânsito de mercadorias, de capital e, principalmente, de pessoas. Propostas de equacionamento de questões ambientais abrangentes, como clima, florestas, biodiversidade se tornaram inimigas dessa tendência direitista, que, com ou sem truculência, defende sólidas fronteiras e a soberania nacional.
As três últimas edições do Observatório Ecopolítica cartografaram os movimentos de direita pelo planeta, detalhando-os no Brasil. Vem para a Rua, Endireita Brasil, Movimento Brasil Livre, são nomes de movimentos direitistas, que contam com membros integrando o governo, ou que tentaram se integrar, pela via eleitoral ou indicações, tanto no legislativo quanto no executivo. Sem a visível truculência grosseira de neonazistas musculosos e skinheads, esses elementos são aceitos nos salões e clubes da elite empreendedora e liberal mediante uma atuante defesa de pautas de diminuição da interferência do Estado nas atividades econômicas. Leia-se aqui, interferência do Estado nas relações com os empregados, no uso “livre” e exaustivo dos recursos ambientais e na destinação dos seus lucros; obviamente sem prescindir de um bem armado aparato policial e jurídico de resguardo da propriedade em nome da segurança, ou, no limite da disputa, de bem armadas milícias.
Os efeitos deste redesenho levado adiante pelo atual governo esbarram nos interesses globais defendidos pela ONU. Nem EUA, nem Brasil ainda levaram vantagens significativas, mas de sua parte cada qual vem produzindo uma institucionalização inesperada no dispositivo meio ambiente. Entretanto, trata-se do jogo da política, da definição dos negócios.
4. Monitoramento
Destruir florestas: basta cortar o ‘mato, pôr fogo e deixá-lo fazer o serviço. Depois é jogar umas sementes de braquiária e soltar um gado mirrado ainda sobre as cinzas. Em pouco tempo, parte do solo pode receber extensas plantações do que for mais lucrativo para exportação. Na venda do produto, porém, poderá haver problemas: a falta de comprovação da origem ambientalmente sustentável dessas commodities. Outras nações produtoras poderão acusar que na oferta desses produtos há o chamado dumping ambiental, ou seja, ganho no preço possibilitado pelo não cumprimento pelos exportadores das regras de proteção ao meio ambiente acordadas internacionalmente. Isso é um ponto negativo na competição pelos mercados entre os países agro produtores.
Em 20 de julho, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, alertou, como faz desde 2004, mediante o sistema DETER de monitoramento em tempo real, que 1209 km² de florestas foram derrubadas na primeira quinzena do mês, valor que representa 68% a mais em relação a todo mês de julho do ano anterior.
O presidente reagiu imediatamente: “A questão do INPE, eu tenho a convicção que os dados são mentirosos. (...) Até mandei ver quem é o cara que está a frente do INPE para vir se explicar aqui em Brasília, explicar esses dados aí que passaram para a imprensa. (...) No nosso sentimento, isso não condiz com a realidade. Até parece que ele está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum”.
O “cara que está a frente do INPE”, é o físico Ricardo Galvão, que explicitou a seriedade científica e técnica dos mais de cinquenta anos de atividade da instituição (em passado nada remoto o INPE também foi ameaçado pelos governos José Sarney e Dilma Rousseff e defendido internacionalmente)]. E rebateu: “Bolsonaro fez comentários impróprios e sem nenhum embasamento, fez ataques inaceitáveis não somente a mim, mas a pessoas que trabalham pela ciência neste país. (…) Ele tomou uma atitude pusilânime e covarde, talvez esperando que eu peça demissão, mas não vou”.
O presidente insistiu nas críticas ao INPE e recebeu o apoio do ministro do meio ambiente que já havia colocado em dúvida a veracidade dos dados sobre a Amazônia ao assumir o ministério em janeiro. O ministro da ciência, o astronauta Marcos Pontes, concordou em exigir explicações dos cientistas do Instituto sobre o desmatamento (explicações para como burlar os dados coletados?).
A questão do presidente e de sua equipe não consiste na perda da floresta e seus impactos no planeta, mas no prejuízo que a divulgação de tais dados trazem a uma “boa” imagem do Brasil no exterior e consequentemente aos negócios ligados ao comércio internacional. Como o governo resolve isso? Negando qualquer evidência que o desmatamento tenha ocorrido. Não é tão simples assim, os satélites registram milimetricamente em tempo real o que ocorre na vegetação e na ocupação do solo. Então, para que as nações acreditem que o Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente, desqualificam-se tais registros, os institutos que os disponibilizam e os cientistas responsáveis pelo monitoramento. E exige-se que os dados produzidos não sejam apresentados publicamente sem que antes passem pelo ‘filtro’ dos “hierarquicamente superiores”, a saber, o presidente e seus asseclas próximos. Isso vai garantir a manutenção de uma imagem positiva do Brasil no concerto dos Estados? A história recente desmente. Se o INPE funciona com o dinheiro público, os resultados de suas pesquisas e monitoramentos devem ser prestados a todos e não aos “superiores” que governam. Afinal, isso aqui é uma democracia ou um regime de quem sentou no trono?
R A D. A. R
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