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observatório ecopolítica

ano III, n. 60-61, novembro de 2019.

 

mapeando forças em luta em hong kong

 

Nos últimos meses, uma das regiões da China ganhou os noticiários por conta de incansáveis manifestações de rua: Hong Kong. Trata-se de uma região administrativa especial, assim como Macau, onde há um governo local que não precisa estar necessariamente alinhado com o governo central da República Popular da China, como o acesso à internet em Hong Kong, que ocorre nos moldes estadunidenses.

 

As recentes manifestações ganharam a mídia internacional por serem consideradas como uma luta em defesa do liberalismo e da democracia. Porém, identificar as lutas dessa maneira é impor o olhar ocidental e ofuscar confrontos não interessados nessa pauta. Entre as muitas forças em luta em Hong Kong, há os anarquistas, que inventam outros costumes, combatem a polícia – seja ela qual for e de onde for –, assim como o Estado e a propriedade.

 

A presença anarquista na China não é efeito de alguma hashtag, de compartilhamentos ou de qualquer outra ação nas redes sociais. Quase desconhecidos no chamado Ocidente, os libertários chineses traçaram inúmeros percursos por lá, rompendo as fronteiras impostas tanto pela Dinastia Qing, como pela República da China ou pela atual República Popular, governada pelo Partido Comunista da China.

 

Alguns dos muitos registros das atividades dos anarquistas podem ser facilmente encontrados na internet. Essas histórias de lutas permanecem vivas e compõem tanto os combates nas ruas de Hong Kong, como estão presentes nos anarquismos pelo planeta.

 

Memórias

 

Em combate contra os incessantes massacres perpetrados pela expansão do Império Japonês no começo do século XX, os anarquistas nascidos na China viajaram pela Ásia e Europa fundando associações, divulgando seus escritos, falsificando documentos, e tomando parte em revoluções. Dessas destaca-se, por exemplo, a Comuna Shinmin, na década de 1930, onde hoje se encontra a Manchúria, e que foi massacrada tanto pelo Império do Japão, quanto por forças chinesas e coreanas.

 

Em meio a essas ebulições, ao aumento do interesse pelas práticas dos niilistas russos e pela leitura de textos de anarquistas, principalmente, Kropotkin, e também às notícias vindas da França pelos imigrantes chineses que por lá fundaram associações; o libertário Zhang Ji não temeu afirmar: “o campo de batalha do anarquismo é o século XX”.

 

Esse campo de batalha teve como efeito práticas anarcoterroristas compreendidas tanto como o ataque a uma autoridade, quanto como a decisão de dar fim à própria vida. Em 1900, o anarquista Wu Zihui tentou suicídio em protesto contra o governo. Em 1907, a jovem Qiu Jin assassinou o governador da província em que vivia e se recusou a fugir. Continuou com suas atividades como professora e sua militância contra o casamento e os costumes que oprimiam os corpos das mulheres chinesas. Foi presa pois um de seus amigos não resistiu à tortura. Ela então afirmou os seus atos diante da polícia e da dinastia Qing. Foi torturada e decapitada.

 

Apesar de sua luta contra o governo e o Estado, Qiu Jin virou uma boneca de cera em um museu chinês e é invocada pelo Partido como um exemplo de autosacrifício, em nome da revolução e do nacionalismo.

 

No começo do século XX, antes do sufocamento de libertários pelo maoísmo ou pela posterior captura de suas práticas, um jovem músico e anarquista em Hong Kong, conhecido planetariamente como Shi Fu, interessou-se pelas práticas anarcoterroristas. Em uma passagem pelo Japão para aprimorar seus conhecimentos musicais, aproveitou para complementar sua formação aprendendo sobre a fabricação de explosivos.

 

Quando soube dos levantes camponeses na revolta de Kwantung, Shi Fu retornou à China e se estabeleceu novamente em Hong Kong, tornando-se redator em um jornal. Dali, acompanhou as movimentações no campo e passou a traçar outros planos, a partir dos conhecimentos que obtivera no país vizinho. Em 1907, quando as revoltas ainda ferviam, ele e outros anarquistas entenderam que seria vital assassinar o governador de Kwantung ou o comandante da marinha. Shi Fu preparou o explosivo. Entretanto, por algum descuido, este acabou falhando e estourou em suas mãos, fazendo com que Shi Fu perdesse os dedos da mão esquerda e sofresse graves ferimentos no restante do corpo.

 

Shi Fu acabou capturado e condenado a 3 anos de prisão. Ao voltar às ruas de Hong Kong em 1909, associou-se a outros anarquistas para planejar o assassinato do príncipe regente. Com a revolução nacionalista de 1911, que levou à abdicação do imperador, Shi Fu e seus amigos não viram mais sentido em dar continuidade aos planos e fundaram uma nova associação voltada à destruição da sociedade. A propaganda anarquista era um meio de propagar práticas de liberdade. Como propaganda, eram consideradas a ação direta incluindo a inserção de libertários em sindicatos, a divulgação de escritos, e também insurreições e outras práticas terroristas. Acometido por uma tuberculose, Shi Fu morreu poucos anos depois.

 

O ano de 1912 iniciou-se com o estabelecimento da República da China após a revolução encabeçada pelo partido Kuomintang, que pretendia unificar o país, desenvolver a economia e expulsar os comerciantes ingleses — presentes desde o século XIX e em número crescente após as Guerras do Ópio — que circulavam por Hong Kong, assim como os opositores do antigo regime (Dinastia Manchu) e pessoas procedentes de inúmeros outros locais.

 

A revolução proibiu a circulação de navios ingleses pelo sul da China, atingindo diretamente a economia de Hong Kong. No entanto, esta logo seria reaquecida com a I Guerra Mundial, período em que a China conseguiu relativo sucesso econômico por meio do desenvolvimento de sua indústria, da exploração de trabalhadores e, principalmente, com a diminuição da presença inglesa.

 

Um dos nomes exponenciais que por ali passaram foi Ba Jin, falecido aos 101 anos em 2005. Ba Jin forneceu um dos principais relatos sobre os anarquistas no Japão e como eles resistiam à ascensão do fascismo por meio de práticas anarcoterroristas. Tinha sido muito próximo a Furuta Dijirô, fundador da Giroshin Sha, associação anarcoterrorista que realizava assaltos a bancos e pretendia assassinar o Imperador japonês para estancar a série de assassinatos de anarquistas. Furuta e todos os integrantes da Giroshin Sha foram presos e executados pelo Estado japonês antes de alcançarem seu objetivo final.

 

Segundo Ba Jin, em The anarchist movement in Japan: martyrs of Tokyo, Furuta não nunca negou suas intenções, mesmo diante do tribunal e da certeza da morte: “Eu não suporto essa sociedade. Nós não podemos mais suportar essa vida e é isso que nos levou ao terrorismo”.

 

Em outro momento de suas recordações, Ba Jin explicitou os seus propósitos com o pequeno escrito que circularia pelo planeta na década de 1930: “vou tentar um esboço, com sangue e lágrimas, para que o mundo europeu saiba que nos países do misterioso oriente existiam e existem aqueles que morreram e morrem pela anarquia”.

 

Quando escreveu sobre os anarcoterroristas no Japão, Ba Jin já havia fugido do fascismo e estava na China, percorrendo Hong Kong e Shangai. Seus escritos ecoaram nos anos seguintes, atingindo seu objetivo de ser divulgado pela Europa e circular entre os jovens chineses.

 

Ba Jin também trocou cartas com Emma Goldman e Alexander Berkman. No começo da década de 1930, quando estava em Shangai, publicou um livro inspirado em O que é o anarcocomunismo de Berkman, chamado Do capitalismo ao anarquismo. Foi banido imediatamente pelo Kuomitang. O livro só voltaria a circular em 2009, em Hong Kong, com impressão restrita a 1.000 cópias.

 

A divulgação das práticas anarquistas na China não ficou restrita somente aos EUA e à Europa. Em janeiro de 1922, o periódico anarquista La Antorcha, sediado na Argentina, traduziu relatos de uma carta de Hun de Bai, estudante anarquista de Beijing, para um anarquista na Alemanha e noticiou o sucesso dos boicotes e greves impulsionados pelos libertários e que se espalhavam por algumas regiões do país.

 

Entre uma dessas regiões, estava a cidade de Fujian, ao sudoeste da China, próxima de Taiwan e, razoavelmente perto de Hong Kong. Antes de sua morte prematura, Shi Fu indicou a seus amigos a necessidade de partir para aquele local da China camponesa. Sinalizava que a revolta no campo poderia se estender às cidades, ao contrário do proposto em outros textos, que professavam o desenvolvimento dos meios de produção enquanto acirramento das classes e que levaria à sonhada tomada do Estado e expropriação desses meios pelo proletariado.

 

Na China, os libertários inventaram associações autogestionárias para regular a produção dos grãos, como viria a acontecer quase uma década depois na Comuna Shinmin. Diante das pressões comunistas para interferir nas experiências anarquistas e estabelecer uma hierarquia, Hun de Bai afirmou, ao final de sua carta, a prática internacionalista dos libertários na qual não havia um centro de onde irradiariam as subsidiárias na forma de sindicatos e partidos, e enfatizou que cada libertário é um propagador da prática anarquista pelo planeta.

 

Entretanto, a resposta a Fujian não demoraria. É possível mapear por meio do estudo de Arif Dirlik que, na década de 1920, aportou ali Gregory Voitinsky, agente do Komintern, a convite dos comunistas, que deveria orientar o desenvolvimento da cidade de Fujian. Alguns anarquistas se converteram ao comunismo e não se teve mais notícias de outros, apesar do registro de que, desde 1919, muitos eram contrários aos soviéticos.

 

Simultaneamente ao apoio soviético em muitas regiões, o governo chinês também procurava apoio para conter os massacres perpetrados pelo exército japonês em seu território. Entretanto, em ambos os países, os anarquistas tentavam ampliar contatos, tanto para sobreviver quanto também para enfatizar uma atitude antimilitarista.

 

Nos anos seguintes, o massacre de parte da China pelas forças nipônicas, bem como a tentativa revolucionária na década de 1920 com a organização do PC em Shangai, Guangzhou e Hong Kong, levaram a um certo arrefecimento das práticas anarquistas.

 

Data deste período, também, a aliança do PCCh com uma ala do Kuomitang, mais tarde referendada por Stálin, com a justificativa de apoiar a burguesia chinesa contra as agressões da Grã-Bretanha. Entre seus principais articuladores, estava o então jovem Mao Tse Tung.

 

As ebulições libertárias no começo do século XX foram reacesas na década de 1970, com o grupo Minus (Menos), que lançou o periódico homônimo, hoje disponível na internet. Entretanto, as demais publicações eram selecionadas e voltadas à atualização da esquerda na configuração da New Left e dirigida aos trotskistas chineses. Porém, os escritos também circulavam entre jovens atentos, que passaram a se interessar pelos anarquismos, apesar destes terem praticamente desaparecido após a Revolução Cultural liderada por Mao naquela mesma década.

 

Século XXI

 

Desde o grupo Minus, as perseguições perpetradas pelo Partido atingem não somente aos libertários como outros que se colocam contra o regime, atingindo desde religiosos até grupos que reivindicam a independência.

 

Na última década, os libertários passaram a agitar as ruas de Hong Kong destoando de determinadas reivindicações voltadas ao enaltecimento de uma certa autonomia que a região possui em relação ao governo central chinês. Não querem fazer a reforma do Partido ou decretar uma nova revolução para recolocar o Estado. Estão interessados em inquietações que inventem novos costumes apartados da autoridade centralizada.

 

Desde meados de 2019, todos os distritos de Hong Kong são regularmente tomados por manifestantes. No dia 09 de junho ocorreu o primeiro protesto, quando cerca de um milhão de pessoas saíram às ruas contra a lei de extradição.

 

Anunciado pelo governo em abril, o projeto de lei de extradição tornou-se a força motriz das manifestações. Direcionado aos “infratores fugitivos” e à “assistência legal mútua em matéria de legislação penal”, previa extraditar pessoas não apenas para o Reino Unido, os EUA e os outros 18 países com os quais Hong Kong já possui acordo para tal procedimento, mas, também, para a China continental, Macau e Taiwan.

 

Um caso criminal pontual serviu para tentar emplacar o projeto em meio à opinião pública. Foi o assassinato da jovem Poon Hiu-Wing pelo seu namorado, Chan Tong-kai. O casal estava de férias em Taiwan; a mulher grávida foi estrangulada e seu corpo, enfiado em uma mala abandonada em uma mata. Chan retornou a Hong Kong, onde foi preso após esvaziar a conta bancária de Poon. As autoridades argumentavam que ele deveria ser extraditado para Taiwan, para cumprir a pena pelo assassinato que lá fora cometido. Taiwan, considerada rebelde por Pequim por reivindicar total independência, declarou desde o início que, mesmo com a aprovação da lei em Hong Kong, não pediria a extradição de Chan.

 

Apesar do apelo passional do caso, o efeito foi reverso e a proposta de lei rapidamente mobilizou muitas pessoas em protesto contra o que seria um aval para maior sujeição à China, prejudicando a pretensa autonomia de Hong Kong. Casos extrajudiciais de “extradição” para Beijing endossavam a argumentação contrária à lei, como o sequestro em 2015 de cinco pessoas com atuação importante na Causeway Bay Books, uma livraria alternativa em Hong Kong, muito procurada por chineses em busca de livros censurados, e também o sumiço do empresário bilionário chinês, Xiao Jianhua, sequestrado em sua casa, em Hong Kong, em 2017.

 

A chefe do Executivo, Carrie Lam, prometeu que os procedimentos seriam norteados pelo respeito aos direitos humanos e às leis de Hong Kong, extraditando apenas condenados a penas de 7 anos de detenção ou mais.

 

Alardeou-se entre os honcongueses a ameaça às liberdades liberais acarretada pelo projeto. No entanto, diretamente, apenas três grupos seriam mais afetados: os super-ricos chineses residentes em Hong Kong, que possuem problemas judiciais/comerciais ou políticos com o Partido Comunista Chinês; ativistas políticos honcongueses; organizações e indivíduos de todo o planeta que mantêm relações com a China, mas não têm permissão para entrarem em território da República Popular.

 

De acordo com a análise de anarquistas que vivem em Hong Kong, o temor produzido pelo anúncio da lei de extradição encontra seu fundamento nas crenças acerca da constituição dessa região administrativa especial: “Não é um exagero dizer que o mito fundador dessa cidade é de que refugiados e dissidentes escaparam das perseguições comunistas para construírem um oásis de prosperidade e liberdade, uma fortaleza de liberdades civis, salvaguardada pelo Estado de Direito”.

 

Este foi o impulso para a maioria das pessoas que se encontram em uma situação boa ou mediana em Hong Kong; elas entenderam que a proposta de lei era uma ameaça à sua identidade e à sua propriedade. Diferente do capitalismo “vermelho” chinês, Hong Kong é devota ao capitalismo de livre mercado. Nos distritos pobres, mais afastados e rurais, a situação não é boa, como promete o sonho capitalista, ao contrário, eles sofrem com sucessivas pilhagens e com a destruição de suas terras e moradias pelo governo e suas medidas legais. Por isso, a maioria das pessoas à frente dos protestos que ganharam mídias por todo o planeta não é pobre, mas de classe média.

 

Pesquisas realizadas com manifestantes, entre 9 de junho e 4 de agosto, indicavam que de 70% a 90% possuíam formação superior; aproximadamente metade tinha entre 10 e 30 anos e se definiam como de classe média. A única mudança no perfil de quem ia para as ruas foi em relação ao gênero, a proporção passou de 1:1 (homem/mulher) para 3:2 (homem/mulher).

 

De antemão, é importante frisar, diferentemente do que se noticia genericamente na imprensa internacional, que este não é um movimento por democracia.

 

Muito do contexto honconguês apresenta semelhanças com outros lugares do planeta, inclusive em democracias consolidadas, onde recentemente eclodiram variados protestos. Dentre os pontos em comum estão: insatisfações quanto ao trabalho, sua má regulamentação e más condições; o excesso de freelancers e slash workers (troca de área de emprego constante), e desempregados. Aos aposentados, não há um regime de pensão oferecido pelo Estado e o sistema de saúde pública é deficitário. Na educação, as crianças e jovens passam a maior parte do tempo estudando, tempo maior que o tempo médio de atividade de um trabalhador honconguês; eles não veem vantagens em se dedicar a uma boa escolarização e na formação superior, uma vez que o mercado de empregos está saturado; o número de suicídios na faixa de 10 a 20 anos é cada vez maior. Em relação à moradia, não há habitação pública e a maioria dos cidadãos gasta de 30 a 60% de sua renda para pagar aluguel. Quanto aos gastos públicos, prevalece a incongruência do investimento em megaprojetos e a inexistência de políticas de “bem-estar social”. Em suma, o tom majoritário é: “todos dizem que não conseguem enxergar o futuro”.

 

Dentre as demandas gerais, específicas dos honcongueses em movimento, além da relação com a China, há uma proposta para se expandir o direito igualitário de voto, também reivindicado como “sufrágio universal”. Este tema foi retomado na última onda de manifestações ocorrida em Hong Kong, em 2014, com o occupy.

 

Movimento dos guarda-chuvas, como ficou conhecido o movimento Occupy Central with Love and Peace ou Occupy Hong Kong, possui similaridades, para além do nome, com o Occupy Wall Street e outros movimentos como os Indignados na Espanha. O acampamento honconguês ocorreu em setembro de 2014 no distrito central, onde se concentra o business da região. A principal reivindicação foi precisamente pressionar a reforma eleitoral, proposta institucional feita em 2013 pelo ministro Chu Yiu-ming, pelo professor de direito na Universidade de Hong Kong, Benny Tai e pelo professor de sociologia na mesma instituição, Chan Kin-Man. Após o fracasso no trâmite legal da reforma, o trio incitou protestos populares por meio da desobediência civil. No ano seguinte, ganhando força com organizações estudantis como Hong Kong Federation of Students (HKFS) e o Scholarism, iniciou-se o Occupy, em setembro, depois de dias de atos espaçados ao longo de meses. O Occupy Central with Love and Peace foi reivindicado pelos próprios organizadores e lideranças como Umbrella Movement. A ocupação terminou em dezembro de 2014, após investidas policiais, com o trio do Occupy se entregando voluntariamente para as autoridades.

 

No Occupy Hong Kong tudo foi norteado pela legalidade e marcado pela disputa entre os grupos articuladores e suas lideranças-digital influencers, que hoje, apenas tuítam sobre a situação de Hong Kong. Mesmo assim, muito escapou do controle e da direção dos mesmos, apesar da curta duração do acampamento.

 

Ao mesmo tempo, para muitos liberais, o movimento foi saudado como frutífero por ter conseguido unir a direita e a esquerda em torno de reivindicações comuns. Diante das investidas policiais, foram vistas pessoas correndo ou se ajudando, e segundo algumas análises, essa teria sido uma grande manifestação de como a direita e a esquerda poderia se unir diante de uma situação em comum.

 

Há quem tente encaixar as manifestações atuais numa linearidade em relação ao movimento dos guarda-chuvas. Anarquistas em Hong Kong reiteram que o occupy foi dominado pelas diretrizes institucionais e “ossificado em acampamentos tensos, puritanos e paranoicos, obcecados com um comportamento policialesco para mantê-lo alinhado ao script previsto”. Em uma entrevista aos libertários do Crime Thinc, em junho, estes anarquistas sinalizaram diferenças entre o occupy e o que estavam vendo pelas ruas agora. Durante o occupy as tensões entre ativistas pacifistas e manifestantes mais radicais produziram denúncias e cisões determinantes para os rumos do movimento. Hoje, outro aspecto de uma diferença crucial é a inexistência de líderes, ou mesmo de ativistas profissionais e digital influencers em destaque. O anonimato é uma questão crucial para os manifestantes que, desde o início das manifestações deste ano, enfrentam grande repressão policial.

 

Isso também foi um dos efeitos das intensas discussões abertas pelo governo de Hong-Kong ao censurar a internet e intensificar a coleta de dados dos manifestantes. Ao contrário do que acontece no restante do território chinês, em Hong Kong ainda é possível acessar a internet nos moldes ocidentais com os sites liberados e firewalls mais modulares. Entre as discussões do governo, optou-se por não seguir com o bloqueio, pois parte da economia da região administrativa especial, como é reconhecida por Beijing, depende de transações realizadas pela rede.

 

Entretanto, a internet não está somente sob o monitoramento de Hong Kong. Tornou-se público em dezembro de 2019, que o governo chinês já havia lançado mão de uma série de ações para sabotar os fóruns dos manifestantes. Outros sites, como o Station For Open Cultures também estavam sob constante monitoramento, sendo o alvo principal o fórum LIHKG, o mais acessado pelos manifestantes. Vale ressaltar ainda, que o site Station For Open Cultures foi construído por programadores e hackers chineses que não se identificam com o popular conceito entre os liberais e a esquerda de cyberativista ou hackativista, mas como hackers cívicos. Ou seja, delimitam que suas ações e reivindicações seriam causas legítimas, legais e democráticas.

 

Em outubro, a Google e a Apple, empresas com sede no Vale do Silício nos EUA, retiraram de suas lojas digitais qualquer aplicativo que pudesse ter uma relação com as manifestações em Hong Kong. O jornal do Partido Comunista, o People’s Daily, dirigiu seus ataques principalmente à Apple – principal concorrente aos smartphones chineses –, divulgando que a empresa fornecia aplicativos tóxicos.

 

Foram retirados desde jogos em que o avatar do usuário era um manifestante em Hong Kong até serviços que identificavam onde estava a polícia. Em resposta a quem estava na rua, a Apple disse estar preservando a segurança dos moradores e ajudando na manutenção da ordem.

 

Algumas táticas criadas em meio ao occupy foram retomadas nas manifestações recentes, como o uso de guarda-chuvas durante os protestos para se protegerem inclusive das câmeras de segurança e drones, e também da formação das chamadas Lennon Walls. Estas consistem em murais, compostos a partir da colagem de textos, desenhos, panfletos, enfim, de diversas formas inscritas de protesto, dispostos ao longo de muros nas proximidades de prédios do governo. No dia 30 de junho, a polícia destruiu o primeiro Lennon Wall feito este ano, na região central. Surgiram então outros muros de Lennon em todos os distritos de Hong Kong. Esses murais funcionam também como um meio de comunicação não virtual entre os manifestantes.

 

O cuidado para se manterem incógnitos e dificultarem o monitoramento leva à adoção de práticas e táticas tais como o uso de máscaras cobrindo os rostos, muitas delas também servindo como proteção para os olhos e contra a inalação de gases; a utilização de bilhetes unitários de metrô, para burlar o monitoramento do sistema de transporte; o uso de capacetes de construção civil e dos próprios guarda-chuvas como adereços de proteção e para dificultar a identificação. Em alguns protestos nas proximidades de delegacias e prédios oficiais, os manifestantes cobrem as câmeras de segurança com fita isolante ou tinta spray. Também utilizam lasers para interceptar as filmagens de drones. Há os que destroem as torres de câmeras de reconhecimento facial instaladas em ruas de Hong Kong.

 

As batalhas

 

Depois da manifestação do dia 9 de junho, a chefe do Executivo, Carrie Lam, veio à público dizer que tinha conhecimento das preocupações da população e que as entendia, mas que a proposta de lei seguia para aprovação no Conselho Legislativo. No dia 12, ocorreu a segunda leitura do projeto no Conselho. Em resposta, agitou-se uma greve de grande repercussão, que levou à paralisação de aulas e de trabalhadores de diversos setores, com o fechamento de grande parte do comércio e de bancos. As ruas ao redor do prédio do Conselho foram bloqueadas por manifestantes desde cedo, assim como outras vias importantes da ilha. Com a chegada do esquadrão antimotim nas proximidades do prédio do governo, barricadas foram erguidas e algumas pessoas tentaram invadir o prédio do Conselho Legislativo. A polícia reprimiu com gás lacrimogêneo e tiros das chamadas balas não-letais. Vídeos de policiais atacando com brutalidade manifestantes “pacíficos” e depoimentos de jornalistas agredidos circularam pelo globo e a Anistia Internacional rapidamente se pronunciou.

 

No dia 15 de março, Marco Leung Ling-kit, de 35 anos, pulou do topo de uma das torres do Pacific Place, um complexo de prédios comerciais, hotéis e shopping center. Ele usava uma capa de chuva amarela com as seguintes frases: “A polícia brutal tem sangue-frio” e “Carrie Lam está matando Hong Kong”.

 

Em outubro, estimava-se que ao menos 9 pessoas tiraram as próprias vidas em decorrência da política e da polícia de Hong Kong, por não verem futuro. Em muitos casos, cartas foram deixadas solicitando que as manifestações não parassem, que aquele que deixava a vida estava apenas desanimado.

 

Tais suicídios, diferente dos realizados pelos libertários no começo do século XX principalmente na China, Coreia e Japão, estão mais próximos de uma reivindicação e espera por uma resposta do próprio Estado. Os libertários que no passado se suicidaram tinham como propósito evitar que a polícia colocasse as mãos em suas vidas. Não estavam disponíveis para assistir a qualquer reforma, pretendiam acabar com suas vidas como uma maneira de lutar contra o Estado. Não se tratava de uma clemência, de um desânimo, mas da convicção de que só se morre uma vez e que essa morte também pode ser uma forma de luta.

 

Novos protestos foram convocados para o dia 16 de junho, enfatizando a defesa dos direitos humanos em detrimento da repressão policial e seus efeitos. No dia anterior, poucas horas depois do suicídio de Marco Leung, Carrie Lam anunciou que o projeto de lei de extradição estava suspenso. Os protestos do dia 16 levaram 2 milhões de pessoas às ruas, um número recorde desde 1997.

 

Os manifestantes começaram a falar em “cinco demandas”; além da anulação da lei de extradição e da reforma eleitoral sufragista, acrescentaram três pontos e um adendo à reforma eleitoral: a renúncia de Lam. As três novas demandas foram decorrentes da repressão e clamavam pela anistia dos presos nos protestos e pela interrupção dos referidos processos penais; pelo reconhecimento das manifestações como legítimas, incluindo a retratação por terem sido classificadas como “distúrbios” e “motins”; e pela instauração de uma comissão de inquérito sobre a brutalidade policial.

 

A definição das cinco demandas veio como estratégia para a não dissolução dos protestos, como ocorrera anteriormente com o movimento dos guarda-chuvas, e também como uma tentativa de angariar visibilidade internacional, às vésperas do encontro do G20, no Japão. No entanto, a situação de Hong Kong não foi tratada nesse encontro, pois foi considerada um “assunto interno” da China.

 

Apesar do que se encaminhava como reivindicações institucionais por meio dessas demandas, um novo alvo para os protestos se consolidou: a polícia.

 

Nos dias 21 e 24 de junho, grupos de manifestantes cercaram o quarteirão da polícia na região central de Hong Kong e também bloquearam o acesso a outros prédios do governo. Ao longo de junho, protestos ocorreram em diferentes distritos de Hong Kong, não apenas na região central, com muitos registros de repressão e enfrentamento com as forças do Estado. No dia 30, interromperam uma marcha pró-polícia cujos integrantes usavam camisetas com frases como “I love HK police”, portavam bandeiras da China e cartazes em defesa do Partido Comunista Chinês e da República Popular Chinesa.

 

Desde a transferência da soberania de Hong Kong à China em 1 de julho de 1997, é realizada anualmente no primeiro dia de julho, uma marcha organizada pelo Civil Human Rights Front. Este ano, a marcha contou com meio milhão de participantes. Os protestos avançaram julho adentro. No dia 18, as pessoas atacaram delegacias pela primeira vez, com pedras, molotovs e usaram estilingues contra os agentes. No dia 21, além dos confrontos com as forças repressivas do Estado, começaram a ser registrados enfrentamentos entre manifestantes e opositores pró-Beijing. Neste momento, apareceu nas ruas uma nova força: homens de camisetas brancas e armados com longas varas de madeira ou barras de ferro, atacando os manifestantes. Membros do Partido Democrata foram ameaçados por esses homens para não realizarem o protesto convocado em Yuen Long no dia 21. Durante o ato, os tais homens de branco perseguiram e açoitaram manifestantes no interior de uma estação da MTR (Mass Transit Railway). Partidários democratas alegaram que chamaram a polícia várias vezes e que suas solicitações só foram atendidas mais de duas horas depois. Após a conivência da MTR com os agressores, muitos trabalhadores do metrô entraram em greve.

 

No último dia de julho, quando centenas protestavam contra a prisão de um casal de jovens em frente à delegacia de Tin Shui Wai, fogos de artifício foram disparados do interior de um carro em movimento contra os manifestantes que continuavam no local, mesmo após a liberação dos dois detidos. Muitas pessoas ficaram feridas. Desde então, noticiou-se situações em que estes homens de camisetas brancas atacaram qualquer pessoa pelas ruas, apenas pela suspeita desta ser contra o governo, suscitada, por exemplo, por estar vestindo roupa preta. Em muitas ocasiões, esses civis atuaram no lugar da polícia uniformizada, tentando dispersar os protestos como fazem as forças antimotim.

 

No mês de agosto as manifestações ganharam outra magnitude. No dia 05, aconteceu uma greve geral, um evento marcante pelo tanto que mobilizou e paralisou. Não foi uma greve geral clássica, com sindicatos e organizações políticas, mas uma articulação por meio de grupos no Telegram que surpreendeu os próprios manifestantes pela dimensão atingida. Mais de 200 voos foram cancelados no aeroporto de Hong Kong, impactando não só a circulação local. Houve também novos episódios de violência perpetrados por cidadãos contrários aos protestos, defensores da pátria chinesa e de sua ordem atual. Um rapaz de camiseta preta foi esfaqueado na perna. Em North Point, fujineses que vivem em Hong Kong aderiram às forças contrárias aos protestos. Apareceram em grupo, trajando camisetas polo branca e laranja, com bandeiras da China, cartazes contraprotesto e armados com barras de ferro.

 

Circularam imagens de policiais arrastando uma manifestante e deixando-a, intencionalmente, sem blusa. Relatos de violências sexuais dentro de delegacias começaram a ser divulgados. Delegacias em vários distritos foram cercadas; em alguns, elas foram atacadas. Em muitos distritos, estes ataques contra delegacias duraram o dia todo. À noite, gangues pró-Beijing, trajando branco e com barras de ferro, varas e facas atacaram quem protestava em frente a delegacias.

 

A brutalidade da polícia oficial nos protestos do dia 11 de agosto aumentou. Muitos manifestantes ficaram feridos e pessoas se intoxicaram com as altas quantidades de gás lacrimogêneo disparadas, inclusive gente que apenas estava pelas redondezas. Neste dia, a polícia cegou uma manifestante. Em resposta, no dia seguinte, o Aeroporto Internacional de Hong Kong foi invadido e bloqueado. Os manifestantes permaneceram sentados nas pistas e passagens do aeroporto até o dia 14. Dois homens foram identificados e agredidos pelos manifestantes, sob a suspeita de serem infiltrados; depois se soube que um deles era jornalista do Global Times, um jornal estatal chinês.

 

No dia 18 de agosto, outra manifestação com ênfase no respeito aos direitos humanos e contra a violência policial atraiu quase 2 milhões de pessoas. A Mass Transit Railway, empresa responsável pelos trens de Hong Kong, o meio de transporte mais utilizado, tornou-se alvo dos manifestantes após os protestos de 24 de agosto, em Kwun Tong. Funcionários da empresa permitiram a entrada de policiais para perseguirem manifestantes dentro da estação e nos vagões. As portas da estação foram fechadas e os manifestantes, impossibilitados de circular ou fugir, permaneceram acuados e sob domínio da polícia.

 

As primeiras ações diretas contra a MTR ocorreram no dia 31 de agosto. Desde então, destruir a entrada das estações e as máquinas de venda de passagem tornaram-se práticas comuns. Assim como os “catracaços”, até então, algo raro em Hong Kong.

 

No dia 25 de agosto, em Tsuen Wan e Kwai Tsing, a repressão utilizou uma nova arma, os canhões d’água. Manifestantes radicais contra-atacaram a polícia com tijolos e bombas de gasolina. No dia 28, foi realizado o Protest Too, após inúmeros casos de violências sexuais contra mulheres manifestantes detidas em delegacias. Há relatos de estupros coletivos por policiais. No último dia do mês foram presos ativistas conhecidos e conselheiros, mas os protestos não arrefeceram. Na virada de mês, houve um novo bloqueio no Aeroporto Internacional. Nos dias 2 e 3, data do retorno às aulas, estudantes secundaristas e universitários entraram em greve.

 

No dia 4 de setembro, Carrie Lam anunciou revogação da lei de extradição. Os protestos continuaram. No dia 8, milhares de pessoas marcharam até o consulado dos Estados Unidos, pedindo uma intervenção de Donald Trump, alegado por alguns como o único capaz de fazer a China recuar. Mas nem todos que estavam nas ruas clamavam pela benção da democracia estadunidense. Certos manifestantes aproveitaram a marcha democrática para incendiar barricadas e atacar a polícia, estações do MTR e prédios do governo. Neste dia, uma jovem estudante afirmou: “Nós não podemos deixar a polícia achar que o que eles estão fazendo nos assusta. Nós estamos fazendo isso porque a polícia bate e prende os nossos companheiros”. Ela e um companheiro de manifestação quebravam a calçada do Hong Kong Club, atirando os pedaços da calçada contra a fechada do “primeiro clube de gentlemen's” de Hong Kong, frequentado por políticos, autoridades e homens muito ricos.

 

Os protestos pedindo intervenção estadunidense pressionavam a aprovação do Hong Kong Human Rights and Democracy Act of 2019 e voltaram a acontecer em outubro, levando milhares de democratas às ruas, embrulhados em bandeiras dos EUA e de Hong Kong. O Act requisita aos Estados Unidos a imposição de sanções pela responsabilização dos governos chinês e honconguês em casos de violação dos direitos humanos em Hong Kong. Solicita que os EUA e organizações internacionais façam avaliações anuais da situação da democracia honconguesa.

 

Nos protestos dos dias 15 e 21 de setembro, grandes confrontos aconteceram entre manifestantes, opositores e a polícia. No dia 21, um novo vídeo foi amplamente divulgado, no qual um homem de camiseta amarela, desacordado, é chutado por policiais. As autoridades justificaram que chutaram “um objeto amarelo”. No dia 29, enfrentando a proibição e os bloqueios policiais, milhares protestaram contra o Partido Comunista Chinês.

 

No dia 1º do mês seguinte, data do 70º aniversário da Revolução Chinesa, as manifestações, mesmo sob forte repressão, não cessaram. As tentativas de conter os protestos incluíram prisões preventivas de supostas lideranças, toques de recolher e orientação para o fechamento de estações de metrô e do comércio. Milhares de pessoas foram às ruas em diferentes distritos. Depois de alguns queimarem bandeiras e acenderem uma barricada em frente à sede do Exército Popular de Liberação chinês, a polícia reagiu com gás de pimenta, jatos azuis de gás lacrimogênio, balas de plástico e borracha. E dessa vez, também balas letais. Um jovem de 18 anos foi baleado no peito, à queima-roupa. A bala atingiu seu pulmão. Mais uma vez, tudo foi registrado pelos celulares de manifestantes e o vídeo circulou instantaneamente. Relata-se o silêncio produzido conforme a notícia chegou aos manifestantes espalhados pelos distritos de Hong Kong. Mas a reação foi ativa. Barricadas foram levantadas, pedras e coquetéis molotov voaram em direção à polícia. Neste dia, a repressão atingiu 51 pessoas, 4 delas foram hospitalizadas em estado grave ou muito grave, e cerca de 260 pessoas foram presas, chegando-se a um novo patamar repressivo.

 

No dia 4 de outubro, a chefe do Executivo acionou a Portaria de Regulamentações de Emergência e promulgou uma lei proibindo o uso de máscaras, ou qualquer outra cobertura sobre os rostos de pessoas em vias públicas de Hong Kong. Essa lei foi respondida com mais protestos e ações destrutivas de propriedades, especialmente as identificadas como pertencentes a pessoas pró-Beijing. Durante essas manifestações, um garoto de 14 anos foi baleado na perna por um policial à paisana.

 

Os protestos em oposição à lei contra as máscaras, sob a fumaça cada vez maior do fogo dos manifestantes e do gás da polícia, continuaram. Isso durou até o dia 18 de novembro, quando a Suprema Corte de Hong Kong decretou a lei inconstitucional e a baniu. Ainda em outubro, a Suprema Corte anunciou uma injunção para banir das redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas quem “disseminar, circular, publicar ou republicar” conteúdos “incitando a violência”.

 

Desde o início dos protestos, os honcongueses utilizam o Telegram e o fórum LIHKG para discutirem propostas de atos e táticas, para se articularem e convocarem as manifestações. Em junho, Pavel Durov, fundador do Telegram, acusou a China de atacar virtualmente o aplicativo, na tentativa de rastrear os anônimos nos protestos. Anteriormente, no dia 12 de junho, durante o protesto, o fundador de um grupo no Telegram que aglutinava mais de dez mil pessoas foi pego pela polícia. Ele usava um aparelho celular Xiaomi, smarthphone chinês feito aos moldes do iPhone da Apple, mas com o sistema operacional da Google. Ordenaram que ele desbloqueasse o celular e acessaram suas mensagens.

 

No momento das primeiras manifestações, o doxxing (divulgação online de dados pessoais de terceiros, hackeados ou stalkeados) foi uma prática constante. Inicialmente, os dados expostos eram de policiais e autoridades. Depois, informações e fotos de manifestantes passaram a ser compartilhados também por indivíduos pró-Beijing, inclusive desde IPs localizados na China e na Rússia. Curiosamente, grande parte dos dados e imagens de manifestantes divulgados por estes cidadãos coincide com pessoas que foram fichadas pela polícia.

 

O mês de novembro chegou e os protestos prosseguiram. No dia 3 de novembro, outro acontecimento incendiou a revolta. O estudante universitário Alex Chow Tsz-lok caiu do terceiro andar de um estacionamento no Sheung Tak Estate. A polícia tentava dispersar a manifestação com tiros e bombas. Manifestantes filmaram a polícia, que impediu por pelo menos 20 minutos a passagem da ambulância para socorrer o jovem. Ele foi hospitalizado e depois de duas cirurgias na cabeça, morreu.

 

No dia 11 de novembro ocorreram fortes protestos contra a polícia, lembrando a vida de Chow. A repressão recrudesceu, policiais atiraram e um manifestante foi internado em estado grave, assim como um jovem de 15 anos, hospitalizado após uma bomba de gás explodir em sua cabeça. No mesmo dia, um idoso não identificado foi morto com uma pedrada na nuca, durante um confronto entre manifestantes e contra-manifestantes. Ainda neste dia, a polícia começou a atacar os campi universitários com projeteis e bombas. Os estudantes da Universidade Chinesa de Hong Kong ocuparam a universidade e contra-atacaram com pedras, bombas móveis de gasolina e molotovs. As autoridades acusaram os estudantes de terem transformado a universidade em “fábricas de armas” e de estarem “a um passo do terrorismo”. Na Politécnica de Hong Kong, os estudantes lançaram flechas contra a polícia. A ocupação da Universidade Chinesa logo se espalhou para as universidades de Hong Kong e Batista, levando a Secretaria da Educação a suspender todas as aulas, do jardim de infância até a pós-graduação.

 

Nos dias seguintes, ao mesmo tempo em que alguns manifestantes ocupavam as universidades, outros interromperam a circulação na cidade, promovendo cortes na eletricidade de semáforos e outros sinalizadores. Afetaram também a região central do business de Hong Kong, ao realizarem manifestações no horário de almoço, levando empresários a respirarem os gases lançados pela polícia.

 

Naquele momento, no encontro dos BRICS no Brasil, Xi Jinping demonstrou preocupação com a violência em Hong Kong, cobrou punições severas e afirmou que não interferiria belicamente no país. Contudo, batalhões da polícia chinesa já estavam juntos da polícia de Hong Kong na repressão; agentes provocadores foram enviados pela força de segurança nacional chinesa; o exército chinês se posicionou na fronteira da China continental com Hong Kong. Quem cruzava a fronteira tinha seu celular e outros aparelhos eletrônicos inspecionados; e a China declarou oficialmente os manifestantes honcongueses como terroristas.

 

No dia 18 de novembro, a polícia iniciou uma operação na Politécnica de Hong Kong, cercando o campus ocupado pelos estudantes. No primeiro dia, muitos foram detidos enquanto tentavam fugir, inclusive médicos e outros voluntários. Nos dias seguintes, mais pessoas foram presas, tentando escapar ou se entregando. Manifestantes do lado de fora, que apoiavam os estudantes sitiados, foram alvo de violências e muitos ficaram feridos após a polícia provocar um “pisoteamento”. No dia 23, restavam cerca de 50 pessoas presas no campus, sem comida e mínimas condições de higiene. Ao fim da operação, no dia 29, 1.100 pessoas foram detidas. Com o prédio já esvaziado, a polícia apreendeu supostos armamentos dos estudantes (molotovs, bombas móveis de gasolina, pedras, flechas, produtos químicos). Não se sabe o número de pessoas que conseguiram escapar das forças repressivas.

 

No dia 24, ocorreram eleições para os conselhos distritais, com a maior adesão de eleitores desde 1997. Os partidos pró-democracia ganharam em 17 dos 18 distritos, enquanto os pró-Beijing perderam grande número de cadeiras, inclusive a DAB (Aliança Democrática pelo Aperfeiçoamento e Progresso de Hong Kong), partido da ordem há anos. O resultado foi considerado histórico pelos analistas. E isso pode indicar que os protestos impulsionados inicialmente pela classe média descontente, espalharam-se, chegando aos distritos mais afastados e pobres, que também elegeram partidos pró-democracia.

 

No dia 27 de novembro, sete dias depois de declarar que vetaria o Hong Kong Human Rights and Democracy Act of 2019 por sua “amizade” com Xi Jinping, Donald Trump assinou o documento, aprovado por unanimidade no Senado e no Congresso estadunidenses. A assinatura do presidente causou a desaprovação dos governos chinês e honconguês, que consideraram o Ato pelos Direitos Humanos e pela Democracia em Hong Kong uma afronta arbitrária e uma “grave violação do direito internacional”. No dia 28 de novembro, o “amigo” de Trump avisou que adotará “contramedidas firmes”.

 

Na sexta-feira, 29, em Wenlou, província chinesa de Guangdong, pessoas protestaram contra o projeto de criação de um crematório onde antes se propunha construir um parque ecológico. A polícia chinesa reprimiu brutalmente a pequena manifestação. Questões ambientais costumam incitar pequenos protestos com regularidade na China e não são reprimidos como foi neste dia. O governo chinês também retirou postagens na internet relacionadas à manifestação e à repressão.

 

No dia 30, os manifestantes voltaram às ruas de Hong Kong e houve confrontos com a polícia que lançou bombas de gás. No domingo, dia 1 de dezembro, milhares de pessoas foram às ruas. Uma semana depois das vitórias democratas para os conselhos e poucos dias após a assinatura do Ato pelo governo dos Estados Unidos, houve quem estivesse ainda comemorando. Mas houve também confrontos contra a polícia e propriedades foram depredadas.

 

No dia 2 de dezembro, a porta-voz chinesa Hua Chunying afirmou que não mais seria permitido que embarcações e aeronaves estadunidenses fizessem escala em Hong Kong e que seriam aumentadas as sanções a ONGs estadunidenses como a National Endowment for Democracy, National Democratic Institute, International Republican Institute, Freedom House e Human Rights Watch. O governo chinês considera que estas ONGs “apoiam o movimento anti-China” em Hong Kong, incentivando “atividades violentas, criminosas e separatistas”.

 

A República Popular da China demanda que os Estados Unidos “corrijam seu erro” e parem de interferir em “assuntos internos”. Caso contrário, “tomará novas medidas, se necessário, e defenderá a prosperidade e a estabilidade em Hong Kong, bem como a soberania nacional do nosso país”.

 

O que virá?

 

A repercussão internacional dos protestos em Hong Kong manteve-se meramente informativa durante esses cinco meses. Nem mesmo reprovações em tom diplomático foram feitas por países ocidentais democráticos. Não só no âmbito das relações internacionais. Os protestos em Hong Kong quase não tiveram apoio ou ações de solidariedade em outros cantos do planeta.

 

O Crime Thinc, durante uma segunda entrevista com anarquistas que vivem em Hong Kong, realizada em setembro, comenta que a repercussão dos protestos entre maoístas e leninistas estadunidenses é de acusações à CIA, de que tudo é trama de infiltrados capitalistas imperialistas. Em Hong Kong, houve uma primeira tentativa de Lam de insistir em acusações semelhantes, mas que não repercutiu para além dos apoiadores da República Popular. Há sim ONGs, partidos e entidades que, abertamente, recebem fundos de grupos estadunidenses. Mas se trata de um financiamento democrático, “transparente”, não de infiltrados ou mandantes de ações. Não há “manipulação imperialista ocidental”. Contudo, os que pediram e comemoraram a intervenção diplomática estadunidense indicam uma força que “dá um sabor reacionário, conservador distinto, a despeito de quão radicais e descentralizadas sejam as novas formas de ação”, conforme destacam os anarquistas.

 

Desde 2010, não só os ianques se posicionam como força reacionária, mas também os nacionalistas de direita, cujo discurso ganha adesão a cada ano. Muitos reivindicam serem identificados como honcongueses e não chineses; há casos de xenofobia com chineses — mesmo a maior parte da população (aproximadamente 6 milhões) sendo proveniente da China, ou de descendentes, chegados nos últimos 20 anos —; há quem defenda uma posição separatista de Hong Kong. Atacam a atual política da região em nome da integridade e da identidade nacional honconguesa. Também atacam a polícia por ela se voltar contra o povo de Hong Kong.

 

Os canalhas fascistas, por sua vez, aparecem. Como os oportunistas ucranianos da milícia Batalhão de Azov, recentemente vistos por ali e que fazem turismo para instigar práticas fascistas. Os liberais, por sua vez, se opõem ao governo classificado como autoritário de esquerda pelas ameaças às liberdades civis e aos direitos humanos, reciclando o discurso do Terror Vermelho. Também criticam a polícia. Liberais e nacionalistas de direita são conhecidos por lá como “demositos” e “nativists”. Mas não estabelecem uma “polarização”.

 

Os libertários afirmam que a esquerda em Hong Kong, enquanto socialista, não existe. Ser de esquerda lá tem duas significações, para pessoas mais velhas é sinônimo de comunista; o que quer dizer que um empresário de sucesso filiado ao PCCh é de esquerda, assim como qualquer um que se posiciona a favor da política chinesa. Para os mais novos, é mais um estigma para alguém de uma conduta plástica, quase um sinônimo para idiota; está associado a reformistas, a ongueiros e a alguém sempre disponível a negociações.

 

Dizem os anarquistas que, para além desses definidos em grupos políticos, há muita gente desconfiada que não se identifica com nenhum deles. Há também os que participam dos protestos de domingo porque estão entediados e querem uma nova distração, ou para se exibir nas redes sociais. Há cristãos que, diante da repressão, compõe linhas de frente, barrando a polícia e cantando. E há libertários praticando ações diretas contra o Estado e a polícia. Não há muitas informações sobre as associações e coletivos anarquistas que estão lutando nas ruas de Hong Kong, se são muitos ou não, e qual a presença dos anarquismos entre os estudantes. O que circula nos sites da imprensa anarquista é que os libertários que lá vivem alertam que nem todos os que têm aderido às táticas radicais e que atacam e dizem odiar polícia de Hong Kong são anarquistas.

 

Há uma espécie de acordo silencioso entre os manifestantes; mesmo os pacifistas, não denunciam os mais radicais. Mesmo com as conquistas institucionais, muitos continuam nas ruas, tendo a raiva pela polícia como combustível. Até as organizações de bairro partilham essa raiva, já que se tornaram alvo de violências mesmo fora de manifestações.

 

As barricadas se tornaram de praxe. Comentam os anarquistas que toda vez que os manifestantes querem ocupar ou bloquear uma via, erguem barricadas e melhoram cada vez mais a agilidade e a eficiência delas. Por meio de discussões em fóruns e no Telegram, elaboram propostas de “não-cooperação” com o governo, baseadas em práticas cotidianas como não pagar o metrô, burlar taxas e impostos, cancelar contas bancárias, evitar consumir. As discussões sobre essas práticas, com as propostas vindas das mais diversas pessoas e áreas de conhecimento, demonstram uma preocupação em manter a luta como algo do dia a dia.

 

“Ao mesmo tempo, não há discussões sobre o que é a força da lei, como ela opera ou sobre a legitimidade da polícia e das prisões como instituições. (...) Então, da mesma forma que as pessoas estão clamando por um governo e por instituições que elas possam chamar devidamente de ‘as nossas próprias’ — sim, incluindo a polícia — elas desejam um capitalismo em que elas possam finalmente chamar de ‘o nosso próprio’, um capitalismo livre de corrupção, de trapaça política. É fácil rir disso, mas assim como qualquer comunidade reunida em torno de um mito fundador de pioneiros que escaparam da perseguição e construíram uma terra de liberdade e de muito sacrifício e trabalho duro... é fácil de entender por que essa fixação exerce tamanho poder na imaginação. (...) Enquanto nós entendemos o tanto que nossas vidas são preocupadas com e consumidas pelo trabalho, ninguém ousa propor a recusa ao trabalho, para se opor a indignidade de ser tratado como produtor-consumidor sob o domínio do mercado. A polícia está sendo castigada por ser ‘cães de guarda’ de um império totalitário do mal, em vez de ser atacada pelo que ela realmente é: os soldados da infantaria do regime da propriedade”. Assim alertam os anarquistas, atentos ao movimento nas ruas e as forças em luta em Hong Kong.

 

No dia 15 de dezembro, manifestantes invadiram shoppings centers, lotados pelas compras natalinas; enfrentaram a polícia, destruíram vitrines e picharam os corredores. No domingo anterior, cerca de 800 mil pessoas foram às ruas contra o governo, pressionando pelas demandas ainda não atendidas. No dia 15, um protesto pró-Beijing atraiu umas mil pessoas que reivindicavam “Hong Kong sem violência”, seguindo os pronunciamentos das autoridades locais e da China continental.

 

A batalha continua. Houve vitória institucional com a revogação de lei de extradição e nas urnas distritais. Os que pediram auxílio aos EUA para monitorar a democracia honconguesa também foram atendidos. As forças definidas como pró-democracia continuarão até Carrie Lam renunciar ou até a reforma eleitoral se concretizar? Quem ainda está pelas ruas? Os nacionalistas de direita, que se voltam contra a polícia considerada traidora do povo honconguês? Os ativistas pelos Direitos Humanos que pressionam pelas três demandas ainda não atendidas? Os desiludidos que clamam por bem-estar social? Os estudantes? Os anarquistas? Grupos pró-Beijing e as gangues fascistas, que agem como, e com, a polícia, continuam pelas beiradas e em menor número.

 

O que virá?

 

A China é comunista? E Hong Kong? Aqui, no chamado Ocidente, as pessoas precisam dessas respostas para se moverem?

 

Anarquia se faz no agora, irrompe em qualquer canto do planeta, não está à espera da nova dinastia, do colonizador, ou das orientações do partido. Sua força está na inquietação de inventar costumes livres, no inegociável diante de tantos acordos e na insuportável luta contra a propriedade e o Estado. Não cessa.

 

R A D. A. R

 

HAPAX

 

WKNews

 

Anarchism in the chinese revolution

 

Hong Kong Anarchists in the Resistance to the Extradition Bill an Interview

 

Three Months of Insurretion an Anarchist Collective in Hong Kong Apraises the Achievements and Limits of the Revolt

 

O que os fascistas ucranianos estão fazendo nos protestos de Hong Kong

 

Attacks in North Point, Tsuen Wan

 

Police Say Kick was at "Yellow Object"

 

Hong Kong Police Shoot Demonstrator During Morning Rush Hour

 

Second Death in Week as Xi Jinping Demands end to Hong Kong violence

 

Hong Kong Protests Us Consulate Human Rights Democracy Act.

 

Hong Kong's Huge Protests, Explained.

 

Hong Kong protesters shoot arrows at police during clashes at Chinese University.

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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