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observatório ecopolíticaano IV, n. 63 , fevereiro de 2020.
A mágica das montanhas
Prestidigitação
Em Davos, Suíça, janeiro de 2020, o grande tema do 50ª Encontro Anual do Fórum Econômico Mundial foi o meio ambiente, especificamente a questão climática. O aquecimento do planeta tornou-se crucial para a avaliação de risco na economia global, conforme estabelecido no documento oficial do encontro, o 15º Relatório Global de Riscos. Um “risco econômico global” foi definido como um evento ou condição que pode causar impacto negativo de grande significado para inúmeros países e empresas dentro dos próximos 10 anos. E a mudança climática vem acompanhada de uma vasta gama de desastres com efeitos negativos na economia.
Para pautar a reunião anual de 2020, a elaboração do relatório resultou da consulta a mais de 750 especialistas e tomadores de decisão globais, para identificar os temas de suas preocupações em função da probabilidade de ocorrência e do alcance dos impactos de eventos deletérios. Em relação aos riscos de curto prazo, os mais citados foram confrontos econômicos entre nações, polarização política, aquecimento do planeta, destruição de ecossistemas e seus recursos, e ataques cibernéticos. O relatório apontou, pela primeira vez, que os principais riscos ao capitalismo global se referem a assuntos ligados ao meio ambiente, a saber, condições climáticas extremas, desastres ambientais, perda de biodiversidade, catástrofes naturais e falha na mitigação das mudanças do clima.
O espírito de Davos
Fundado em 1971, pelo professor de gestão econômica da Universidade de Genebra, Klaus Schwab, o Fórum Econômico Mundial é uma organização internacional, com autonomia financeira. Por 17 anos a organização foi denominada Simpósio Europeu de Gestão. Entre suas atividades há encontros com líderes empresariais, representantes de governos e da sociedade civil para discussões globais sobre questões consideradas urgentes. A sede do FEM fica em Genebra, mas as reuniões anuais ocorrem em Davos.
Em 1971, o primeiro encontro reuniu algumas centenas de executivos de empresas da Europa Ocidental para discutirem novas formas de administração de seus negócios, inspiradas nos modelos de gestão estadunidenses. Nos anos seguintes, as crises econômicas globais fizeram com que os encontros do Simpósio Europeu de Gestão ampliassem seu escopo de um simples debate sobre técnicas de gestão para questões sociais e econômicas mais abrangentes.
O encontro de 1973 abrigou a discussão do estudo do Clube de Roma, Os Limites do Crescimento de Denis e Donella Meadows, um dos documentos-base da formação do dispositivo meio ambiente e da meta de sustentabilidade. Neste mesmo encontro foi lançado um Código de Ética, o Manifesto de Davos, baseado no conceito pioneiro de Klaus Schwab de um capitalismo de stakeholders, que se concentra não apenas nos acionistas, mas também nos clientes, funcionários, fornecedores e comunidades, considerados imprescindíveis para a economia.
Em 1974, algumas lideranças políticas fora do estrito circuito econômico foram convidadas. Dentre elas, destacou-se a presença do Arcebispo de Olinda e Recife, D. Helder Câmara, figura marcante de um catolicismo progressista que resistia à ditadura civil-militar brasileira do período.
Apesar do simpósio se definir com o adjetivo europeu, a cada ano, eram convidados líderes e representantes de países fora da Europa. Por exemplo, em 1979, também pela primeira vez, uma delegação chinesa foi ao encontro de Davos. Como efeito da participação frequente de convidados de vários continentes, assim como de discussões sobre as políticas econômicas ligadas à sociedade, à ecologia, além dos negócios, o Simpósio Europeu de Gestão alterou seu nome para Fórum Econômico Mundial (WEF), em 1987. Klaus Schwab declarou na época: “Finalmente nos comportaremos como somos: uma comunidade global”.
O encontro ampliou seu papel e passou a funcionar também como uma plataforma para equacionar “conflitos” entre países e encontrar soluções para administrar problemas econômicos internacionais. Foi criado o “espírito de Davos”. Entretanto, a base dessa plataforma permaneceu com os líderes empresariais e do setor financeiro que, em Davos, encontram oportunidades de compor com autoridades estatais e com lideranças da chamada sociedade civil.
Na última década do século XX, encontros globais como os do Fórum, do G-7, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional -FMI foram alvos de protestos por movimentos sociais antiglobalização, que lutavam contra o aumento da pobreza e a destruição do meio-ambiente resultantes do capitalismo global. Os encontros em Davos foram um dos alvos dessas manifestações, o que fez com que as autoridades suíças criassem uma força tarefa de segurança ao redor da pequena cidade e principalmente do Centro de Convenções, durante cada evento anual do WEF.
No encontro do WEF de 2020, os manifestantes foram impedidos de se aproximarem da cidade. Focados na questão ambiental — o tema da antiglobalização arrefeceu há alguns anos —, realizaram protestos na estrada a uns 20 quilômetros de distância, empunhando cartazes como: “Parem com o financiamento da emergência climática”, “Farsa Econômica Mundial”.
No entanto, no dia 24 de janeiro, sexta feira, quando o encontro da WEF tinha se encerrado, a segurança de Davos deixou seguir na rua principal de Davos uma marcha dos jovens que reivindicava ações climáticas. Era uma das famosas Sextas pelo Futuro, a greve de estudantes contra a mudança climática, com a presença de Greta Thunberg. Greta também fora uma das convidadas oficiais do encontro do WEF e se destacou em diversas sessões, exigindo ações dos empresários contra o aquecimento do planeta.
Cisnes da cartola
Como vimos em boletins anteriores, o clima foi o aspecto do meio ambiente mais discutido ao longo de 2019. A conservação do capitalismo no planeta dependeria de atividades econômicas de baixo carbono para se evitar a mudança climática, diagnosticada como causa de uma futura crise financeira global.
Essa crise, ou crises, decorrentes de alterações climáticas receberam o nome de “cisnes verdes”. Dentre os textos discutidos na reunião de Davos estava o livro “The Green Swan”, publicado pelo Bank for International Settlements (BSI) que é tido como o banco dos Bancos Centrais, sediado na Suiça, redigido por cinco estudiosos, inclusive um brasileiro. O termo “cisne verde” foi criado a partir da figura do “cisne negro”, que surgiu em 2008 para designar eventos inesperados e imprevisíveis com impactos extremos no sistema financeiro. O “cisne verde” decorreria de eventos climáticos, por isso tem um aspecto mais previsível, passível de ser prevenido. A alteração climática poderia produzir eventos extremos com impactos significativos no setor de seguros, na rede de computadores, com efeitos na liquidez dos bancos e no acesso ao crédito. São problemas financeiros que podem ser evitados mediante ações dos setores econômicos de ponta para impedir o aquecimento planetário.
Montanha mágica
A conclusão de que as mudanças climáticas seriam o maior risco à economia global teria sido efeito ilusionista das montanhas de Davos? Cem anos após estas terem sido testemunhas, no romance de Thomas Mann, dos debates cruciais que estremeceram a Europa e sua área de influência em outros continentes?
O romance mais conhecido do escritor alemão (filho de uma brasileira, nascida em Paraty, no estado fluminense), A Montanha Mágica (1912-1924) trata do dia a dia em um luxuoso hospital para doenças do pulmão na área montanhosa da pequena cidade de Davos. O personagem principal, um jovem burguês comum, chega ao sanatório para passar algumas semanas com um primo e acaba sendo diagnosticado com uma doença pulmonar grave. Permanece internado por sete anos e sai dali direto como soldado para as trincheiras da I Guerra Mundial.
As terapias para tuberculose e outras doenças respiratórias, a partir de meados do século XIX até o inicio do XX, realizavam-se nesses amplos- hospitais encravados em cadeias de montanhas e em estâncias climáticas com “ar puro”. Os pacientes passavam anos e anos nesses sanatórios esperando uma cura que não vinha com facilidade, e muitas vezes não ocorria. Hoje, tais locais se tornaram luxuosos hotéis próximos a pistas de esportes de inverno e as pequenas cidades, em polos de turismo, como Davos.
O local do sanatório é assim apresentado nas primeiras páginas da obra: “o clima não é a única coisa estranha que existe por aqui. (...) o tempo não passa de modo algum (...)”.
Em uma conferência sobre seu livro, Thomas Mann comentou: “Esse mundo doente lá em cima é de uma coesão e de uma força encapsuladora...(...) Trata-se nesses institutos de um típico fenômeno do tempo anterior à guerra [Primeira Guerra], apenas inimaginável em uma economia de forma capitalista intocada. Apenas sob essas condições era possível que os pacientes levassem essa vida anos inteiros ou ad infinitum ao custo de suas famílias. Hoje isso quase terminou (...) A Montanha Mágica tornou-se o canto de cisne dessa forma de existência e talvez seja algo como uma lei que descrições épicas encerrem uma forma de vida e que ela depois desapareça.”
De um lado a outro da cordilheira
Na ponta de uma linha reta de 44 km, de Davos, atravessando a cadeia montanhosa em direção à Áustria, especificamente no polo turístico de Ischgl, a Ibiza dos Alpes, onde começava o auge da temporada de inverno, turistas abastados de vários países europeus deslizavam morro abaixo, respirando ar puro das montanhas do Tirol e depois seguiam em bares e festas pela noite.
No retorno a seus países: Islândia, Reino Unido, Noruega, Alemanha, Dinamarca, muitos deles manifestaram a Covid-19, causada por um vírus que se alastrava pela China e começava a entrar na Europa. Devido ao grande número de casos da doença de pessoas que vieram dessa estação de esqui, o local foi considerado suspeito de ser um ponto focal de disseminação na Europa desse novo coronavírus. Mesmo alertado durante o mês de fevereiro pelas autoridades sanitárias dos países nórdicos, o governo da Áustria relutou bastante em fechar o polo turístico, uma das alegações era de que muitos infectados haviam passado também pelos resorts italianos, trânsito que de fato ocorria com grande frequência. Quando foram constatados muitos casos em trabalhadores da infraestrutura turística de Ischgl, a temporada de inverno na região foi encerrada.
Em uma entrevista coletiva sobre epidemias globais, em 23 de janeiro, durante o Fórum Econômico de Davos, o novo coronavírus ainda estava sendo chamado de “vírus de Wuhan”, pois a maioria dos casos estava na China, Cingapura e em outros países do extremo oriente. O novo coronavírus só foi detectado pela primeira vez na Europa em 24 de janeiro, coincidindo com o encerramento do Fórum, foi um caso confirmado em Bordeaux, na França. Na Itália, que se tornou rapidamente um epicentro da doença, os primeiros casos diagnosticados com o vírus foram de dois turistas chineses, em 30 de janeiro, em Roma. E a expansão da Covid-19 passou para todo planeta.
Em meados de janeiro de 2020, apesar do vírus não ter ainda alcançado a Europa e a ameaça de uma pandemia ocupar um baixo índice de preocupação dos especialistas consultados para elaboração do relatório, na citada conferência de imprensa, discutiu-se a gravidade do surgimento de um vírus totalmente novo.
Mesmo aparentado ao vírus da SARS (síndrome respiratória aguda, doença que surgiu em 2002), pouco é conhecido desse vírus no que se refere à dinâmica de contágio e aos efeitos no corpo humano, especialmente nos pulmões. Por isso, avaliam os conferencistas, as ações para evitar a disseminação de uma provável pandemia seriam difíceis e incertas. Mas ao mesmo tempo, foi dito que não haveria motivo para pânico, pois o mundo estaria mais preparado para enfrentar o problema e produzir remédios e vacinas. Afinal, o Fórum é antes de tudo um espaço de discussão empresarial no planeta.
R A D. A. R
Global Risks Report 2020 World Economic Forum
Formação do World Economic Forum
Greta em manifestações em Davos
Averting a Climate Apocalypse WEF - Davos 2020
Introdução à Montanha Mágica, por Thomas Mann
Entrevista coletiva sobre coronavírus no WEF.2020
Forum Econômico Mundial e Covid-19
O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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