observatório ecopolítica
ano I, n. 7, março, 2016.
O antiterrorismo específico e seletivo na Espanha
Desde o século XIX, quando o Estado espanhol promulgou a primeira lei antiterrorismo, compreendia-se como tal o “atentado contra pessoas ou dano às coisas”, efetuados a partir do uso de explosivos e sinalizando posicionamentos políticos como elementos subjacentes.
Em 1975, a lei foi atualizada além de recrudescer. A nova ementa (Decreto-Ley 10/1975) escancarou os alvos: “os grupos ou organizações comunistas, anarquistas, separatistas e outros que defendam o emprego da violência como instrumento de ação política e social (...) e a quem, por qualquer outro meio, realize propaganda destes grupos ou organizações, dirigida a difundir suas atividades, a eles será imposta uma pena correspondente em seu máximo grau (...); os que, publicamente, seja de modo claro ou encoberto, defenderem ou estimularem estas ideologias serão castigados com a pena de prisão menor, multa de cinquenta mil e quinhentas pesetas e a inabilitação especial para o exercício de funções públicas e para as docentes, públicas ou privadas”.
Desde então, as medidas antiterroristas espanholas foram classificadas como questões de “seguridad social” e relacionadas ao Código Penal. De modo diferente do Reino Unido e dos Estados Unidos, e aos moldes da Alemanha e de Portugal, na Espanha não há uma legislação antiterrorista especial.
Na década de 1990, a referida lei foi revisada, entendendo como terrorista “aqueles que pertençam, atuem a serviço ou colaborem com bandos armados, organizações ou grupos cuja finalidade seja a de subverter a ordem constitucional ou alterar gravemente a paz pública” (Artigo 571).
Em sessão de 11 de julho de 2015, e somente com os votos do Partido Popular, foi encaminhada a nova Ley General de la Seguridad Social, que passou a ser conhecida como “ley mordaza”, pelo rígido controle que pretende dispor sobre comunicação, informação e manifestação.
Estabeleceram-se novas regulamentações para manifestações públicas, sejam elas atos nas ruas ou postagens de fotos de policiais em ação na internet, e punições com aplicação de multas. Ao todo, 44 ações tornaram-se multáveis, divididas entre faltas muito graves, graves e leves. Esta lei é tida como um símbolo de monitoramento na internet, por perseguir e identificar como terrorista, em alguns casos, qualquer um que baixe um filme ou software sem pagar, que publique conteúdo contra a polícia, ou que organize protesto online. No Brasil, a Câmara emitiu propostas semelhantes essa semana no relatório da CPI Ciber (cf.Relatório Final http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?=1447125&filename=Tramitacao-RCP+10/2015 ).
Juntamente com a Operação Pandora e a Operação Piñata, entre final de 2014 e março de 2015, os alvos certeiros do governo passaram a ser os centros culturais anarquistas. A agência EFE, criada no início da ditadura de Franco e uma das maiores agências de comunicação de massa, transmitiu que os anarquistas eram financiados pelo ETA (Euskadi Ta Askatasuna, grupo pela Pátria Basca e Liberdade).
Voltando um pouco no tempo
Depois de janeiro de 2011, com o anúncio do fim das atividades do ETA e o arrefecimento dos movimentos separatistas bascos, as perseguições e ações antiterroristas passaram a focar exclusivamente os anarquistas.
No final de outubro de 2012, o sargento Daniel Canals, chefe da Unidade Central de Análises de Estratégias Visando Organizações (UCAEO) da Área Central De Análises dos Mossos d’Esquadra, fez uma conferência à polícia intitulada “Conferência sobre a inteligência ante a radicalização”, na qual destacava o “anarquismo insurrecional” como potencial ameaça terrorista.
No ano seguinte, um subgrupo da UCAEO, especializado em perseguir anarquistas, publicou um relatório em que frisa o GAC (Grupos Anarquistas Coordenados) como uma “organização terrorista”.
O GAC é uma associação de libertários criada em meio às agitações do 15-M, em 2011, com o intuito de dar continuidade às atividades iniciadas durante as manifestações e ocupações. Dentre estas atividades destacam-se a organização de coletivos, projetos editoriais, revistas e a publicação do livro Contra la democracia, de 2013.
Considerado como livro terrorista pelo Estado espanhol, ele impulsionou a primeira fase da Operação Pandora, em dezembro de 2014, que, após invadir casas e centros anarquistas, deteve onze pessoas acusadas de “pertencerem à organização terrorista”.
Integrantes do Grupo Elissa – Cole-lectius llibertari de Sant Andreu (https://grupelissa.wordpress.com/) – publicaram o texto “Quebrando o Ciclo. Reflexões sobre a Operação Pandora e repressão do anarquismo na Catalunha”, no qual afirmam: “[esta organização terrorista] só existe nas mentes imaginativas dos cretinos que habitam os escritórios dos tribunais e delegacias de polícia”.
A Operação Pandora deu continuidade aos procedimentos persecutórios iniciados em 2013 com a Operação Columna, que deteve cinco anarquistas acusados de colocarem explosivos na Basílica do Pilar de Zaragoza. Destes, seguem encarcerados Monica Caballero e Francisco Solar, recentemente condenados a 12 anos de prisão. As principais perseguições a ações anti-anarquistas até agora, com exceção de Madri, foram coincidentemente na Catalunha e em Zaragoza, regiões nas quais as práticas anarquistas mais floresceram durante a guerra civil e que registra em 2016 os seus 80 anos.
Em outubro de 2015, foi comandada nova invasão policial em casas e ateneus libertários com a Operação Pandora II. Nove anarquistas foram detidos; um, encarcerado e libertado após três semanas.
No dia quatro de novembro, durante a chamada Operação Ice, a polícia madrilena invadiu o espaço do coletivo Straigh Edge Madrid (https://straightedgemadrid.wordpress.com/2015/07/09/la-importancia-del-straight-edge-texto-de-walter-bond-preso-vegan-straight-edge/), detendo seis integrantes do grupo sob a suspeita de que se tratava de uma organização criminosa com propósitos terroristas, o que envolveria danos e apologia ao terror. Alegaram encontrar no local materiais e manuais para a fabricação de explosivos. Os presos são acusados de praticarem quatro ataques incendiários a agências bancárias em Madri, e de estarem envolvidos com ações deste tipo ocorridas em Barcelona.
Quatro dos seis straigh edges detidos seguem encarcerados. No começo de março, um deles, Nahuel, foi transferido para um presídio de segurança máxima em Estremera, Madri.
Desta prisão em Estremera, em junho de 2015, foi libertado o último anarquista detido pela Operação Piñata, realizada no final de março do mesmo ano, após a polícia invadir centros sociais e casas de anarquistas, detendo 39 pessoas, das quais cinco foram levadas para a prisão por suposto envolvimento com o GAC e hipotética participação em 114 ataques explosivos a bancos. No pacote de acusações, incluem-se os ataques à Basílica do Pilar de Zaragoza e à Catedral da Almudena de Madri.
Após todas essas operações, não só os libertários saíram pelas ruas da Espanha contra as prisões e perseguições e gritando “Yo también soy anarquista”.
Enquanto isso, desde 1989, como modo de controle e silenciamento de anarquistas presos – supostamente terroristas –, funciona na Espanha o FIES – Ficheros de Internos de Especial Seguimiento.
As operações do controle antiterrorista espanhol, específica e seletivamente voltadas aos anarquistas, escancaram o terror do Estado contra aqueles que contestam a alegada necessidade da existência dessa instituição, de sua polícia, do capital e de sua democracia.
R A D.A.R
Espanha
Ley general de la Seguridad Social (resumo)
https://www.boe.es/boe/dias/2015/10/31/pdfs/BOE-A-2015-11724.pdf
Ley Orgánica de “protección de la seguridad ciudadana” (lei 4/2015, de 31 de março de 2015)
http://www.boe.es/boe/dias/2015/03/31/pdfs/BOE-A-2015-3442.pdf
Contra la democracia.
https://claudicarnuncarendirsejamas.noblogs.org/files/2015/05/contra-la-democracia.pdf
Xosé Tarrío González. Huye, hombre, huye. Diario de um preso FIES.
http://www.rebelion.org/docs/127675.pdf
Grécia
Panagiotis Argirou ante o julgamento pelo Projeto Fênix contra a Conspiração das Células de Fogo (01/02/2016).
https://abordaxe.wordpress.com/2016/02/01/prisoes-gregas-texto-do-anarquista-panagiotis-argirou-ante-o-julgamento-pelo-projecto-fenix-contra-as-ccf/
Terrorismo na Europa
Edson Passetti. Por que a reação ocidental aos ataques terroristas do Estado Islâmico alimenta o grupo. In: Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 16/01/2016.
http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2016/01/por-que-a-reacao-aos-ataques-terroristas-do-estado-islamico-parece-alimentar-o-grupo-4952783.html e http://www.nu-sol.org/agora/agendanota.php?idAgenda=635
Ensaio
Francis Dupuis-Déri. Is the State Part of the Matrix of Domination and Intersectionality?An Anarchist Inquiry. In: Anarchist Studies, 24, v.1, 2016.
https://www.lwbooks.co.uk/sites/default/files/as24.1_03dupuis-deri.pdf
Segurança cidadã ou a democratização da acusação de terrorista
Nos anos 1960 e 1970, a Europa vivia sob a ameaça do terrorismo separatista ou de libertação nacional. Sob influência das guerrilhas latino-americanas, grupos como ETA, IRA, RAF e Brigadas Vermelhas constituíam as maiores preocupações dos Estados europeus, ainda não unificados como UE.
É comum apontar como mudança desse quadro, e desses alvos, a emergência do chamado terrorismo islâmico após os ataques às torres gêmeas do WTC, em Nova Iorque. Mas a atual profusão de leis antiterrorismo em todo planeta, como a Lei de Segurança Cidadã, na Espanha, aponta para outra procedência europeia.
Em 2000, a Inglaterra promulgou o “Terrorism Act 2000”, que visa atingir e conter as diversas ações de ruas e obstruções de estradas realizadas por grupos ligados ao emergente movimento antiglobalização, como RTS (Reclaim The Streets), com atuação muito diferente dos alvos visados até então (http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2000/11/pdfs/ukpga_20000011_en.pdf).
A característica dessas novas legislações, como sugere o título em espanhol, é consolidar uma capacidade ampla de atingir não apenas grupos específicos e organizados, mas ampliar o poder de enquadramento de variadas ações e condutas, sejam individuais ou aquelas não necessariamente vinculadas a um ato explosivo e/ou violento. .
A legislação inglesa, por exemplo, situa “distúrbios ambientais”. Logo, um ato de rua, um bloqueio de via ou uma simples passeata pode, ao gosto do policial ou do juiz, ser enquadrada penalmente como ação terrorista. No caso da legislação espanhola mais recente, a edição de livros ou as postagens em redes sociais digitais também podem ser visados como ações terroristas. Mais do que detonar ações de busca e apreensão, especialmente contra associações de caráter antiestatal e abertamente anarquistas, a profusão planetária dessas legislações (na qual se inclui a nova lei antiterror brasileira) sedimenta, legalmente, a forma punitiva e ampliada da cidadania nas democracias contemporâneas.
Atendendo às exigências formais de respeito e defesa dos direitos humanos, os Estados, por meio dessas legislações e de suas operações hodiernas de monitoramento, vinculam cidadania e terrorismo. Mais do que isso, dinamizam a figura do cidadão-polícia por meio do combate ao terrorismo. Todo aquele que não colabora com as ações de Estado que visam conter os distúrbios, sejam ambientais ou que tais, está imediatamente sob suspeita pelas forças estatais. Para além do ataque direto aos grupos editorais, centros sociais e grupos culturais, está em jogo a segurança do ambiente.
Se antes se tratava de proteção aos chefes de Estado ou prédios específicos vistos como alvos virtuais de ações terroristas, agora, trata-se de monitorar ambientes (físicos e eletrônicos) nos quais cada cidadão é convocado a monitorar também, sob a pena se tornar suspeito de conspirar contra o ambiente pacífico das cidades ou da internet.
Os monitoramentos se estendem para além de grupos organizados para fins políticos específicos, incluindo como virtuais alvos das ações antiterrorismo desde grupos de teatro de rua (como titiriteiros na Espanha) até torcidas de futebol (como os ultras, antifas e hooligans em toda UE).
Para além do dado negativo da lei, as ações antiterrorismo em todo planeta produzem três formas características da governamentalidade planetária: o cidadão-polícia, a expansão dos monitoramentos e a elastificação da identificação para todos os cidadãos. Compreende-se, assim, porque ações como as do GAC (Grupos Anarquistas Coordenados) estão voltadas “contra la democracia”.
O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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