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observatório ecopolítica

ano IV, n. 72, julho de 2020.

 

Amazônia: desenvolvimento sustentável e matança indígena

 

Amazônia: os fundos do buraco

 

Áreas desmatadas na Amazônia, 2020 (km²)

 

A imagem acima mostra as áreas desmatadas em quilômetros quadrados na região amazônica mês a mês, no primeiro semestre de 2020. Os dados são do INPE, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, e exibem a consolidação dos alertas de desmatamento informados pelo DETER, sistema de monitoramento diário das florestas em tempo real mediante satélites e geoprocessamento.

 

No ano passado, o INPE, ao mostrar os índices do desflorestamento, como tem feito desde 2004, quase foi desmantelado ou mesmo extinto, ameaça que ronda ainda hoje. Em 20 de julho de 2019, fora divulgado que a área desmatada naquele mês ainda inconcluso tinha já somava 1.209 km², apontando para uma alta de mais de 100% em relação ao índice consolidado de julho de 2018, que foi de 596,6 km². Além disso, foivice identificado um aumento expressivo de focos de incêndio florestal na região.

 

O presidente do Brasil duvidou da veracidade desses dados, que constatavam o alto índice de desmatamento e queimadas em seu governo, e acusou o então diretor do INPE de estar a serviço de alguma ONG de oposição. (Ver https://www.pucsp.br/ecopolitica/observatorio-ecopolitica/n53.html).

 

O ministro do meio ambiente também negou os índices de degradação da floresta e vociferou contra o destaque dado às queimadas, alegando que seriam notícias contra o governo disseminadas por ONGs de esquerda. Por sua vez, o presidente tivera o “sentimento” que as queimadas seriam vingança dessas organizações que, segundo ele, perderam os financiamentos do Estado e do Fundo Amazônia. Este somava em torno de um bilhão de reais, doados pela Noruega e Alemanha para projetos na região, e foi suspenso quando o governo brasileiro anunciou que o dinheiro do fundo deveria indenizar proprietários de terras desapropriados por políticas ambientais e delimitação de terras indígenas.

 

O índice de desmatamento, o conflito com dados de base científica, as acusações a movimentos sociais e a visibilidade espantosa de uma nuvem de fumaça das queimadas na vegetação amazônica, espalhando-se pela América do Sul, fotografada também pela NASA, tiveram repercussão negativa pelo planeta.

 

Houve uma resposta imediata do governo: autorizar o uso das Forças Armadas no combate aos incêndios florestais na Amazônia em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) por um tempo limitado. O recurso a essa solução é previsto quando são "esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública". Na época, os três meses de GLO custaram mais de R$ 124 milhões, 32% a mais que o gasto pelo Ibama com fiscalização e combate aos incêndios florestais durante todo o ano de 2019 e também se mostrou ineficaz.

 

No plano internacional, foi divulgada uma carta elaborada por 230 fundos de investimentos de 30 países (apenas dois do Brasil), que fazem a gestão de 65 trilhões de reais. As empresas ligadas a esses fundos foram convocadas a eliminarem da cadeia de seus fornecedores quaisquer ações que pudessem ter ligação com o desmatamento e queimadas.

 

A iniciativa foi articulada pelo PRI (Principles for Responsible Investment), rede de investidores apoiada pelo ONU para a implementação do desenvolvimento sustentável. Os signatários mostraram seu compromisso em adotar critérios socioambientais e de governança (ESG - Environmental, Social and Corporate Governance, em inglês) para selecionar onde e em que investir a partir de 2019, ano em que a mudança climática e a sustentabilidade se tornaram temas cruciais do debate internacional (Ver https://www.pucsp.br/ecopolitica/observatorio-ecopolitica/n57.html).

 

Outras iniciativas do setor financeiro global apareceram para coibir o desmatamento. Uma gestora chinesa de fundos, a COFCO International, se propôs a rastrear a origem de toda soja dos produtores que financia, e respeitar a moratória desse produto na Amazônia. Lembramos que a China em 2019, comprou 79% da soja brasileira.

 

A produção agrícola e a pecuária do Brasil passaram a ser suspeitas de estimularem o desmatamento, o que ameaçou a efetivação e ratificação de diversos acordos comerciais, principalmente aqueles ligados ao agronegócio. Entre estes, o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, que depende da aprovação dos parlamentos da Europa e de cada país membro. A presença crescente de partidos com pautas ecológicas tem questionado o acordo, e os parlamentos da Holanda, Áustria, Luxemburgo, França, Irlanda, Bélgica sinalizam rejeição a acordos que envolvam o Brasil.

 

Quando atacado por políticos e governos de outros países, ou organizações ambientalistas que denunciam destruição ambiental e desrespeito aos direitos dos povos originários na Amazônia, o governo brasileiro repete o clichê da cobiça internacional por essa região brasileira rica em minérios e água doce. Ou então outro clichê, o de que as críticas vêm do protecionismo dos setores agrícolas internacionais que se sentem ameaçados pelo sucesso da produção do Brasil.

 

As respostas do governo do Brasil às críticas e sua atuação em encontros ambientais internacionais, como a COP-25 em Madri, têm jogado o país no buraco dos chamados “párias ambientais planetários”. Na ocasião da conferência do clima, o Brasil mereceu o troféu “Fóssil Colossal do Ano”, em 2019, entregue por uma rede de ambientalistas ao país que mais tem obstruído a consecução das metas climáticas do Acordo de Paris. (Ver https://www.pucsp.br/ecopolitica/observatorio-ecopolitica/n62.html).

 

há um buraco mais lá em cima

Voltemos a 2020. As pressões de investidores internacionais continuaram, mas o desmatamento prosseguiu em escala ainda maior. Em três meses: novembro e dezembro de 2019, e janeiro de 2020, foi desflorestado 1.037 km², a maior área para o período, desde que começou a medição do INPE.

 

Em janeiro, durante o 50º Encontro do Fórum Econômico em Davos, Suíça, predominou a pauta ambiental, com destaque para a mudança climática, como sendo um fator determinante para um “capitalismo voltado para as pessoas e não apenas para o lucro” (Ver https://www.pucsp.br/ecopolitica/observatorio-ecopolitica/n63.html). A floresta tropical em pé, especialmente a amazônica, seria uma chave para conservação do clima do planeta.

 

Os representantes do governo brasileiro bem que tentaram justificar o desmatamento como resultado da pobreza e da fome — um requentado discurso de mais de meio século sobre destruição do meio ambiente, cujas tentativas de equacionamento geraram a noção de desenvolvimento sustentável há mais de trinta anos. No entanto, a ladainha brasileira “não colou” também em Davos e alertou ainda mais os grandes investidores para a inépcia do governo do Brasil em conduzir as políticas para um capitalismo modernizado e mais eficiente.

 

No Brasil, ainda em janeiro, pressionado pelos avisos de seus asseclas dos setores produtivos, o presidente anunciou a “criação do Conselho da Amazônia”, a ser coordenado pelo vice-presidente. O Conselho Nacional da Amazônia Legal já tinha sido criado em 1993, e consolidado em 1995. Em todo caso, o decreto de ‘’criação” do que já existia foi publicado em maio, revogando o anterior.

 

As diferenças entre os dois decretos, o atual e o de 1995, são acachapantes: o Conselho saiu do Ministério do Meio Ambiente e se subordinou à vice-presidência; a composição agora envolve apenas os ministérios e chefias da casa civil, da secretaria geral da Presidência, do gabinete de segurança institucional e da secretaria de governo. Foram excluídos os governadores dos estados amazônicos.

 

No revogado decreto de 1995, estava previsto que poderiam ser convidados autoridades federais, estaduais e municipais, representantes do legislativo e do judiciário, lideranças locais e representantes dos meios acadêmicos, científicos, empresariais e dos trabalhadores. No decreto atual há uma breve menção a eventuais convites a “especialistas e representantes de órgãos ou entidades, públicos ou privados, nacionais ou internacionais”, para participar das reuniões do conselho e das comissões temáticas. A centralização das decisões é irrefutável. E é inegável o aceno a empresas privadas para que sejam estabelecidas parcerias para a gestão do território e para atividades que possam dar lucro.

 

Ao lado da criação do Conselho, também foi anunciada a formação de uma Força Nacional Ambiental, nos moldes da Força Nacional de Segurança, para fiscalizar, monitorar e punir as ações de degradação ambiental. Isso tornaria mais factível dar continuidade ao desmonte dos setores de fiscalização do meio ambiente, como o IBAMA e ICmBio, com demissões, “enxugamento de equipe”, anistia a crimes ambientais e outras ações de enfraquecimento da legislação ambiental, que vinham ocorrendo no Ministério do Meio Ambiente desde o início do atual governo. Aliás, nesse período, o ministro foi premiado por ambientalistas com o troféu “Exterminador do Futuro.” E a meritocracia tão valorada pela racionalidade neoliberal e às avessas pelo atual governo saiu pela culatra.

 

Na célebre reunião ministerial no Palácio do Planalto, em 22 de abril, o ministro “exterminador do futuro” fez uma referência à oportunidade “tranquila” que se abria para a implementação de contestáveis ações governistas, não apenas ambientais: “Precisa haver um esforço nosso aqui, enquanto estamos neste momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.

 

O tal “momento de tranquilidade” para a boiada passar despercebida se tratava dos efeitos da disseminação da Covid-19, que naquela data, há menos de dois meses da comprovação do primeiro caso no Brasil, somava 45.757 casos e 2.906 mortes. A doença recebera o status de pandemia pela Organização Mundial da Saúde - OMS. Hoje no Brasil, a velocidade da transmissão do novo coronavírus colocou o país como um dos epicentros da doença.

 

As frases do ministro circularam pelo planeta, especialmente no continente europeu, onde tem sido anunciados boicotes aos produtos brasileiros, especialmente os agrícolas. Redes varejistas europeias de alimentos começaram campanhas contra produtos brasileiros que resultem de desmatamento, de desrespeito às populações indígenas e de trabalho escravo. Além disso, na fase de recuperação da economia europeia após a pandemia, há uma forte tendência em investimentos, tanto os estatais como os chamados privados, na economia verde.

 

A economia verde define-se, segundo o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), como uma “economia que resulta em melhoria do bem-estar da humanidade e igualdade social, ao mesmo tempo em que reduz os riscos ambientais e a escassez ecológica”.

 

O conceito ganhou maior projeção a partir da Rio+20, em 2012, como um desdobramento mais efetivo da noção de desenvolvimento sustentável. A projeção de um futuro sustentável reforça a aposta em um presente sustentável, em que a transição para uma economia verde deve ocorrer de imediato, independente do desempenho do produto interno bruto, por meio de investimentos em atividades de baixo carbono, considerando aqui a “mudança climática, a energia limpa e a inclusão social.”

 

Os investidores internacionais continuam implacáveis com o Brasil, apesar da ressurreição do Conselho da Amazônia; da retórica ambiental do vice presidente e de outros; dos esforços da ministra da agricultura, apelidada de Madame Déforestation, em criar uma imagem sustentável do agronegócio; dos decretos para que as Forças Armadas protejam a floresta e os indígenas; da promessa do (novo) Ministério da Comunicação de criar uma ampla e milionária campanha publicitária internacional para mostrar a preservação da mata atlântica na Amazônia (sim! o comunicativo novo ministro anunciou na TV que pretende levar estrangeiros, partindo de Manaus, para sobrevoos pela mata atlântica intocada).

 

ameaça de corte dos investimentos em atividades que contribuem para o aquecimento do planeta não incide apenas sobre o Brasil. A mudança climática tornou-se um fator de avaliação das empresas devido ao risco que o clima pode acarretar aos investimentos.

 

Larry Fink, o presidente da Black Rock, a maior gestora de fundos estadunidense, com US$ 6,5 trilhões de ativos, deixou claro na carta anual aos CEOs das empresas com as quais negocia: “dado o trabalho de base que já lançamos sobre a divulgação, e os crescentes riscos de investimento em torno da sustentabilidade, estaremos cada vez mais dispostos a votar contra a administração e os diretores quando as empresas não estiverem progredindo o suficiente nas divulgações relacionadas à sustentabilidade e nas práticas e planos de negócios subjacentes a elas.” Em palestra recente em um evento no Brasil, declarou que escreveu a carta, não como ambientalista, mas sim como um capitalista. Isso é capitalismo. E desenvolvimento sustentável é sua cara rejuvenescida para sua própria preservação e conservação.

 

Alguns deputados do Parlamento da União Europeia enviaram uma carta ao Congresso brasileiro pedindo que os deputados e senadores brasileiros se comprometam com a proteção às florestas e aos povos indígenas. A coordenadora do Comitê de Negócio Internacional do Parlamento Europeu e integrante da equipe relacionada ao Mercosul falou: "queremos alertar o Congresso de que estamos de olho e que queremos cooperar e tentar mudar o que tem acontecido na Amazônia.”

 

O Chief Executive Officer - CEO da empresa financeira norueguesa Storebrand Asset Management reuniu 34 fundos de investimento, responsáveis pela administração de mais de 4 trilhões de dólares, e juntos enviaram uma carta direta a alguns embaixadores e a representantes do governo brasileiro. Exigiram que o Brasil freasse o crescente desmatamento no país. Além disso, houve um repúdio expresso ao projeto de lei da regularização fundiária, a PL 2.633/20, cuja aprovação foi tida como um estímulo à ocupação e ao desmatamento de áreas que deveriam ser protegidas.

 

A regularização fundiária proposta pelo projeto de lei favorecerá a privatização das “terras públicas sem destinação” (ou ‘devolutas’, no sentido de devolvidas ao Estado por não terem proprietário) ao fornecer títulos de propriedade por autodeclaração de posse àqueles que as invadiram e as ocuparam. Há conflitos sanguinários nesses locais pois, muitas vezes, vários posseiros ocupam ou tentam ocupar o mesmo quinhão, além de situações em que grandes especuladores de terra empregam ‘grileiros’ profissionais para ocuparem terras, desmatando-as, pondo fogo, jogando nas cinzas umas sementes de braquiária e uns nelores esquálidos.

 

Do total desmatado entre agosto de 2018 e julho de 2019, 41% ocorreu em terras públicas e em áreas protegidas, segundo o INPE. As terras da união e dos estados somam 27% da devastação, as áreas protegidas correspondem a 14% da área degradada: 5% em unidades de conservação; 4% em terras indígenas e 5% em áreas de proteção ambiental. Desse total, as áreas de grilagem somam 36%.

 

No Brasil, cinquenta CEOs de empresas nacionais e multinacionais elaboraram também uma carta, comprometendo-se publicamente com o desenvolvimento sustentável. Colocaram-se à disposição do Conselho da Amazônia para contribuir com soluções para combater desmatamento, valorizar a biodiversidade, incluir comunidades locais na preservação florestal, negociar créditos de carbono, incentivar uma recuperação econômica pós-Covid-19 “condicionada ao baixo carbono e à economia circular” (inspirada na economia verde, com destaque para a reciclagem e o reuso dos recursos naturais empregados na produção), entre outros temas.

 

Tais cartas contendo críticas ambientais foram prontamente respondidas pelos representantes do governo brasileiro em dois grandes encontros por videoconferência, um com algum dos investidores internacionais e outro com empresários brasileiros. As críticas foram ouvidas com atenção pelo coordenador do Conselho da Amazônia, por alguns ministros e chefes de autarquias. Os erros citados foram admitidos sem que houvesse tentativas de defesa e de justificativa por meios de clichês ou de acusações a uma esquerda internacional. Alguns planos e promessas apareceram quase que tirados de alguma cartola: a proibição de queimadas na Amazônia e no Pantanal, maior fiscalização da região pelas Forças Armadas, o programa Floresta Mais de pagamento a donos de terras que protegem florestas, o projeto Adote um Parque. Afinal, nos fundos desses críticos estão trilhões de dólares.

 

No entanto, apesar de “encorajados pela rápida resposta do governo do Brasil à nossa carta”, para os chefes desses fundos, “são os resultados que importam”. Caso não haja ações efetivas, as empresas ligadas à corrupção, à violação de direitos humanos (povos indígenas em destaque) e à degradação do meio ambiente serão banidas das carteiras de investimentos. Simples assim.

 

Enquanto isso, as queimadas crescem na região.

 

o vírus e o parasita

 

No início da chamada pandemia de Covid-19 no Brasil, o presidente da Funai disse, em discurso formal: "historicamente, nós sabemos que as populações indígenas são mais vulneráveis a infecções por vírus".

 

Poucos dias antes, ele havia acionado o serviço da Força Nacional como medida preventiva para evitar aglomerações na sede da Funai devido à iminência da presença de indígenas no prédio da instituição, e com isso, "garantir a integridades dos povos tradicionais".

 

O governo, junto à Funai, em parceira com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), Ministério da Saúde, etc., lançou uma série de Portarias, Decretos, comunicado, etc., que deveriam orientar as condutas em relação aos chamados povos e comunidades tradicionais (incluindo indígenas, quilombolas, pescadores tradicionais, entre outros), e oferecer subsídios frente à situação emergencial da pandemia.

 

No dia 17 de março de 2020, foi publicada a Portaria nº 419, que suspendeu a autorização para entrada em Terra Indígenas, a não ser para prestação de serviços essenciais, como “atendimento à saúde, segurança, entrega de gêneros alimentícios, de medicamentos e combustível”. Ficou a cargo das Coordenações Regionais (CR) a avaliação do que se configura como essencial. Além disso, foram suspensos os contatos com as comunidades isoladas, a não ser que fossem considerados essenciais pelas CRs. E, finalmente, “A entrada de autoridades públicas de atendimento à saúde e à segurança não serão obstadas pela FUNAI”. A medida seguia o protocolo de isolamento da OMS.

 

Após críticas à prerrogativa da Coordenação Regional com relação aos povos isolados, que poderia expô-los a contatos em meio a disputas políticas locais, a Funai voltou atrás e publicou no Diário Oficial, a Portaria nº 435, de 20 de março de 2020. A nova Portaria devolveu à Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato da Funai (CGIIRC), criada na década de 1980, o controle do acesso aos povos isolados. Entretanto, a questão não se encerrou aí. Organizações indígenas e indigenistas têm apelado da decisão de nomeação à coordenação do CGIIRC, em fevereiro de 2020, de Ricardo Lopes Dias, evangélico e missionário, que foi vinculado à Missão Novas Tribos até 2010.

 

No dia 25 de março, a Funai divulgou o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (COVID-19) em Povos Indígenas, elaborado pelo Ministério da Saúde com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e o Comitê de Operações de Emergências (COE). Em 2 de abril, a Funai anunciou uma articulação com o palácio do Planalto para alinhar as “ações de combate ao novo coronavírus entre a população indígena”. O foco das ações foi a questão da “segurança alimentar”, relacionada ao resguardo dessas populações nas aldeias durante o período da chamada pandemia. Desde então, a Funai publica constantemente em seu site, a distribuição de cestas básicas em comunidades indígenas, assim se opondo às críticas de falta de ação e ao questionamento quanto ao uso de repasses financeiros por outras organizações.

 

No dia 31 de março, a Funai publicou o artigo “A dignidade que o indígena tanto merece”, em resposta ao encontro ocorrido em janeiro do mesmo ano, quando pessoas de 47 etnias indígenas se reuniram e elaboraram um documento contra a exploração econômica de terras indígenas pelo atual governo. No artigo, a Funai declarou: “o que a política indigenista do governo Bolsonaro quer é dar ao índio dignidade por intermédio do uso de uma terra que é rica e que, via trabalho, poderá dar a ele a independência de que tanto precisa e merece”. Frase de efeito repetida em diversas outras ocasiões, e geralmente relacionada ao investimento no etnodesenvolvimento.

 

Em 8 de abril, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) alterou a Portaria nº 3.352/2018 para simplificar a regularização de pistas de pouso na Amazônia Legal, sob a justificativa de contribuir “para o fomento da aviação na região, o atendimento de comunidades isoladas (...), o acesso à saúde e o apoio a operações de segurança”.

 

Em 13 de abril, a Funai lançou um alerta contra bloqueios de estradas pelas populações indígenas, justificando que isso poderia comprometer o auxílio do governo. O bloqueio se referiu especificamente à intervenção dos Waimiri-Atroari, em trecho da BR-174, rodovia construída durante o período da ditadura civil-militar no Brasil e que levou quase ao total extermínio deste povo.

 

O Ministério da Justiça e Segurança Pública, com a Funai, publicou a Instrução Normativa nº 9, em 16 de abril, recuando da garantia de que proprietários envolvidos em disputas de terras indígenas em processo de demarcação não poderiam dispor administrativamente das mesmas. Segundo o presidente da Funai, a IN apenas desfazia uma inconstitucionalidade que prejudicava os direitos sobre as terras.

 

Em 21 de maio, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), contra a posição da Funai, anulou a portaria que nomeava Ricardo Lopes Dias para a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (CGIIRC). Em 10 de junho, o STJ autorizou o retorno de Dias à Coordenação do CGIIRC.

 

No dia 7 de julho, o presidente sancionou a Lei nº 14.021/20, que: “Dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas; cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; estipula medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19; e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a fim de assegurar aporte de recursos adicionais nas situações emergenciais e de calamidade pública.”

 

A partir da proposta inicial, entre outros, a lei foi sancionada com os seguintes vetos:

 

Inciso I do art. 5º - “I - acesso universal a água potável;”

 

Inciso II do art. 5º - “II - distribuição gratuita de materiais de higiene, de limpeza e de desinfecção de superfícies para aldeias ou comunidades indígenas, oficialmente reconhecidas ou não, inclusive no contexto urbano;”

 

Alíneas a e b do inciso V do art. 5º - “a) oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva (UTI); b) aquisição ou disponibilização de ventiladores e de máquinas de oxigenação sanguínea;”

 

A justificativa para os vetos se pautou pela ausência de demonstrativos do impacto orçamentário e financeiro. Entretanto, a excepcionalidade de gastos diante da chamada pandemia, já estava prevista na Emenda Constitucional nº 106, referente ao Orçamento de Guerra, publicada em 7 de maio de 2020.

 

Ao mesmo tempo, a Funai nega o número de mortos entre as populações indígenas, divulgados por outros meios que não governamentais. “A Funai afirma ainda que não reconhece qualquer levantamento extraoficial sobre o número de óbitos de indígenas por Covid-19. A fundação considera os dados da Sesai, que indicam um total de 209 óbitos [em 14 de julho] desde o início da pandemia”. Em primeiro de julho, a Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB) identificou 405 mortes pela COVID-19 nas populações indígenas, enquanto, na mesma época, a Funai afirmava serem 156. O Instituto Sociambiental (ISA) divulgou 490 mortes em 13 de julho. Segundo o ISA, o Sesai não considera a população indígena que vive em áreas urbanas ou em terras que não foram homologadas, como aquelas obstaculizadas pela Instrução Normativa nº 9, de 16 de abril de 2020.

 

A política do atual governo para as populações indígenas foi clara desde o início. Em resposta à nota pública lançada pela Associação Indigenistas Associados (INA), que critica o atual funcionamento da Funai, o presidente da Fundação respondeu: “É necessário que todos entendam que a velha política indigenista socialista de assistencialismo e paternalismo, que tantas desgraças produziu aos indígenas brasileiros, foi enterrada em 2018. Um novo governo foi eleito de maneira legítima e democrática pela ampla maioria do povo brasileiro e com ele nasceu uma nova política indigenista. Para as novas ideias e projetos de sucesso, com amplo destaque para o etnodesenvolvimento do indígena brasileiro, é que devemos dar um voto de confiança.”

 

O termo etnodesenvolvimento vem sendo usado pelo atual governo como exaltação do investimento na autonomia financeira dos povos indígenas. Entretanto, ele não é uma novidade nas políticas indigenistas do país. No Plano Plurianual 2008-2011: Programa de Proteção e Promoção dos Povos Indígenas, do governo de Luís Inácio Lula da Silva, ressaltava-se a promoção do etnodesenvolvimento sustentável com vistas à autonomia e autodeterminação dos povos indígenas.

 

O termo, geralmente remetido ao antropólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen, foi cunhado no início da década de 1980 para se pensar uma alternativa ao desenvolvimento para as populações indígenas frente aos avanços etnocidas dos Estados.

 

Durante a ditadura civil-militar no Brasil, o discurso desenvolvimentista deu suporte à construção da BR-174, como parte do plano de ampliação de rodovias, que levou ao extermínio quase total, inclusive por meio da disseminação de doenças infeciosas, como vimos, da população Waimiri-Atroari, que habitava o território por onde passaria a rodovia.

 

O projeto da rodovia foi retomado no atual governo sob a justificativa de que ela "vai beneficiar não só o escoamento da produção agrícola da região, mas também as comunidades indígenas locais. A obra significa progresso para todos, inclusive para o etnodesenvolvimento indígena, que conta com total apoio da Funai".

 

Os mais de 500 anos do desenvolvimento do Estado brasileiro são marcados pela dizimação de povos nativos, em que doenças infecto-contagiosas exerceram um papel importante. Além dos contatos, para catequização, ou escravização desses povos, o chamado “progresso”, como instalação de estradas de ferro e rodovias para circulação de produtos, foi uma das grandes portas de entrada para essas doenças (cf. linha do tempo da dizimação por doenças ao longo dos séculos divulgada pelo ISA).

 

A questão do etnodesenvolvimento foi colocada em pauta, quando, a partir das discussões internacionais sobre o meio ambiente, um manejo “sustentável” da terra passou a ser visto como uma necessária oportunidade.

 

Não há nada de novo no discurso sobre a política indigenista do atual governo. O que há é uma política de Estado genocida e etnocida. O etnodesenvolvimento vem a calhar como um blefe. A autonomia e independência de povos ditos tradicionais não trata de investir em formas mais ou menos flexíveis de inclusão no Estado Brasileiro. O Estado é a principal doença que, quando não mata, parasita os seres viventes. Suga sua energia vital, transformando-os em seres miseráveis que passam a depender da caridade deste mesmo parasita para ter alguma chance de sobreviver.

 

Afirmar a vida desses e de outros povos significa estar aberto a pensar formas de existência que não possam ser limitadas por fronteiras e que não estejam à mercê da economia capitalista. E isso nenhum Estado aceitará. Mas é inaceitável que se retome o projeto de matança escancarada em função do lucro.

 

R A D. A. R

 

Documento de investidores pela proteção da Amazônia, 18 setembro de 2019

 

Principles for Responsible Investment (PRI) - ONU

 

Rastreamento da soja no Brasil

 

O Brasil em Davos, janeiro de 2020

 

Criação do Conselho da Amazônia

 

Decreto 1541/95 Regulamenta o Conselho Nacional da Amazônia Legal

 

Decreto n 10239/20- Dispõe sobre o Conselho Nacional da Amazônia Legal

 

Conselho da Amazônia Legal

 

Decreto nº 6515/2008. Institui a Guarda Nacional Ambiental

 

Fala de Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril de 2020

 

Economia Verde

 

Carta aberta das instituições financeiras internacionais 2020

 

Comunicado do setor empresarial brasileiro 2020

 

Investidores pressionam Mourão por resultados no combate ao desmatamento

 

Coronavírus: em entrevista, presidente da Funai destaca medidas preventivas adotadas pelo órgão

 

Funai aciona Força Nacional para evitar aglomerações frente ao novo coronavírus

 

Portaria Nº 117, de 11 de março de 2020

 

Portaria n. 419/PRES, de 17 de março de 2020

 

Portaria n. 435, de 20 de março de 2020

 

Ministério da Saúde lança medidas para prevenir Coronavírus em povos indígenas

 

Artigo: a dignidade que o indígena tanto merece

 

Governo federal simplifica regularização de pistas de pouso na Amazônia Legal

 

Cartilha do Auxílio Emergencial para populações indígenas

 

Instrução Normativa n. 9, de 1 de abril de 2020

 

Tribunal anula nomeação de missionário para CGIIRC

 

STJ autoriza retorno de Ricardo Lopes Dias ao cargo de CGIIRC

 

Governo cria plano emergencial para povos indígenas

 

Funai edita medida que permite ocupação e até venda de areas e, 237 Tis

 

Breve histórico sobre a BR-174 e os índios Waimiri Atroari

 

Lei n. 14.021, de 7 de julho de 2020

 

Vetos à Lei n. 14.021, de 7 de julho de 2020

 

Emenda constitucional n. 106 (orçamento de guerra)

 

Panorama geral da Covid-19 entre indígenas

 

Programa Proteção e Promoção dos Povos Indígenas – Plano Plurianual (2008-2011)

 

Etnodesenvolvimento-Funai

 

Questões para uma política indigenista: etnodesenvolvimento e políticas públicas

 

 

 





 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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