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observatório ecopolíticaano IV, n. 74-75, agosto de 2020.
manifestações pelo planeta [parte 2]
Por todos os cantos do planeta eclodem manifestações das mais variadas matizes. No Leste Europeu, ocorrem pequenos e grandes protestos, manifestações incendiárias e ações diretas. Muitos destes protestos se desdobraram em manifestações incendiárias e tiveram como mote o descontentamento com o governo do Estado.
Em geral, esse descontentamento apenas se agravou diante das chamadas “crises” decorrentes da chamada pandemia desencadeada pelo novo coronavírus. Em países como a Sérvia e a Bielorrússia, o estopim foram os novos processos eleitorais. Na Bulgária, assim como na Bielorrússia, as pessoas protestam contra governantes que ocupam seus cargos há muitos anos.
Manifestações com cobertura midiática inferior, como na Rússia e na Polônia escancaram o enfrentamento de medidas de governo voltadas contra anarquistas e pessoas consideradas fora da moral sexual reta. Em ambos os casos, alertam para como as alianças da extrema direita, institucional ou não, se disseminam pelo planeta. Acirram a criminalização e a perseguição axs libertárixs, sempre atualizadas via caçadas e monitoramentos cibernéticos.
Na Sérvia, em julho, milhares de pessoas foram às ruas de muitas cidades em resposta às medidas adotadas pelo governo para contenção da Covid-19. Contudo, já havia um crescente descontentamento popular em relação ao governo de Aleksandar Vučić, do Partido Progressista Sérvio. Após piadas e comentários debochados quanto à gravidade do novo coronavírus, os governantes implementaram o lockdown entre outras medidas restritivas para assegurar o confinamento e a obediência da sua população. Às vésperas da eleição, todos foram autorizados a voltar a circular e a consumir pelas ruas. Boa parte obedeceu. Dados relativos aos doentes e mortos pela doença foram omitidos (mas, onde não foram?). Depois do processo eleitoral, sacramentando a reeleição de Vučić, voltou a prática de confinamento acompanhada do anúncio de novas medidas, como a remoção de estudantes em moradias universitárias.
Anarquistxs que vivem em Belgrado analisaram as forças em luta nos protestos que ocorreram diariamente, durante uma semana, na capital. As suas análises mostram que as pautas de protesto contra à “má gestão” durante a chamada pandemia que resultou da Covid-19 refletiram mais descontentamentos anteriores com o governo, reeleito, por parte das forças políticas à direita, à esquerda e ao centro do Estado.
A primeira manifestação ocorreu no dia 2 de julho, levada adiante por estudantes, que deixaram suas moradias, ameaçados de remoção, em direção ao Parlamento. Atraíram outras pessoas ao protesto. Ativistas nacionalistas de extrema direita saíram dos esgotos. Não contiveram os manifestantes, nem conseguiram ganhar destaque; ficaram acuados, mas permaneceram espreitando o protesto.
No dia 7, uma grande manifestação aconteceu em frente ao Parlamento, depois das autoridades decretarem toque de recolher aos finais de semana. Novamente, aglutinaram-se diversas forças. Houve grande participação da direita. Algumas pessoas chegaram a invadir o prédio oficial. O enfrentamento com a polícia varou a madrugada e a violência repressiva impulsionou nova manifestação no dia seguinte. A manifestação diante do Parlamento recebeu uma brutal repressão. As forças repressivas do Estado contaram com reforços e foram enfrentadas pelos manifestantes. Xs anarquistxs relatam que neste dia, muitos se encontraram pelas ruas e partiram para ação direta contra propriedades. Destacam que foram grupos de direita que se atracaram com a polícia. A direita sérvia vocifera que o presidente Aleksandar Vučić é um “traidor” da nação, que a “vendeu” para a União Europeia e abandonou a agenda política nacionalista e ultraconservadora prometida nas eleições.
No dia 9, o protesto teve como mote a defesa do pacifismo em resposta à “violência” dos atos anteriores. O evento consistiu em manifestantes sentarem-se em frente ao Parlamento. Alguns acariciaram cavalos das tropas e abraçaram policiais. Quando se levantaram e foram embora, ativistas de direita, que espreitavam o protesto assim como na primeira manifestação levada adiante pelos estudantes, assumiram o protagonismo e entoaram o hino nacional, encerrando a seu modo o protesto. Neste dia não houve repressão policial. No dia seguinte, ocorreu um novo protesto com a primeira aparição em destaque de um bloco de esquerda, composto por partidos e outras entidades organizadas em torno das demandas: mais verba para a saúde pública e diminuição da violência policial contra manifestantes.
Apesar do certo destaque, com bandeiras e faixas marcando suas reivindicações, protestaram ao lado de ativistas de direita que, mais uma vez, estavam à frente da marcha. Neste dia, não foram somente as organizações de esquerda que reivindicaram uma melhor condução da “crise” e maior assistência médica e econômica à população como medida de gestão dos efeitos do novo coronavírus. Apareceram nas ruas ex-apoiadores de Vučić que acusaram seu governo de não ser liberal o suficiente. A manifestação foi violentamente dispersada, depois que algumas pessoas tentaram invadir o Parlamento. Novamente, muita gente foi detida e espancada pelos policiais.
Diante da escalada repressiva, no dia 11, o protesto foi reduzido. A direita se instalou com seu carro de som e fez seu palanque no centro da manifestação. Frente ao domínio da direita, enquanto um padre pregava sua teoria da conspiração sobre a Covid-19, algumas pessoas deixaram o local do ato e foram atacar o prédio do Parlamento. A polícia prendeu e feriu dezenas de pessoas. Nenhuma das pessoas detidas ou feridas pertence a organizações de direita.
Muitos grupos políticos sérvios, liberais e de esquerda, consideram que as manifestações foram violentas devido à extrema direita. Mesmo assim, vestindo branco pelo pacifismo, essas forças continuam protestando contra o governo ao lado da direita.
Protestos mais localizados, liderados por partidos da oposição e grupos de extrema direita seguem pressionando por novas eleições parlamentares, pois alegam que as últimas foram fraudadas. São atos com baixo número de participantes, realizados em frente aos prédios do governo, onde os ativistas xingam parlamentares e políticos e os agridem com ovos e outros alimentos.
Enquanto esses descontentamentos buscam o seu conforto nas negociações e na política, xs anarquistxs que vivem em Belgrado afirmam que jamais serão confundidxs com a extrema direita, mesmo que ela entre em disputa com a polícia e acenda barricadas e molotovs. Deixam um alerta que não se restringe ao contexto das ruas sérvias: “Se os últimos dias nos ensinaram alguma coisa, é que não devemos permitir que os fascistas capturem a ação direta. Nas recentes rebeliões contra o governo no Chile e às intervenções nos EUA, vimos que o confronto direto com o Estado pode conseguir muito, e vimos quanto um movimento pode perder ao permitir que a política liberal de respeitabilidade o domine. Sabemos que a maioria dos anarquistas, antiautoritários e radicais ficou em casa quando viu quem estava à frente das ações. Também sabemos de amigos e camaradas que foram às manifestações, agitando ativamente e confrontando pessoas, mesmo diante de considerável risco para si mesmos.”
Encerram o texto citando um flyer que circulou incógnito pelas ruas de Belgrado durante as revoltas de maio de 68. Anos mais tarde, descobriu-se que a autoria é da poeta surrealista Marianne Ivšić.
“In this moment, only the poetry of the street advances. The minimal program is an act of destruction: it is a political act par excellence. In it there is no control, no rules. Revolution can be only one of everyday life, if we want to fight against the fascination of power… The road to uprooting fascism and the death of God leads through CHAOS.” [“Neste momento, apenas a poesia das ruas avança. O programa mínimo é um ato de destruição: um ato político por excelência. Nele não há controle, nem regras. A revolução só pode ser cotidiana, se quisermos lutar contra o fascínio do poder… O caminho para erradicar o fascismo e a morte de Deus é guiado pelo CAOS.”]
Na Bulgária, desde 9 de julho, todos os dias, preferencialmente no início da noite, milhares de pessoas vão às ruas de diversas cidades para protestar contra o governo. Motivadas contra a corrupção, reivindicam a renúncia do Primeiro-Ministro, Boyko Borissov, no cargo desde 2009, e do Promotor-chefe, Ivan Geshev.
A oposição é liderada pelo Partido Socialista e pelo presidente militar, Rumen Radev. Os protestos de rua foram considerados pacíficos. Os ativistas buscam estratégias não-violentas como greve de fome e acampamentos em vias importantes, para ganhar visibilidade com legitimidade. Os acampamentos espalhados pela capital, Sófia, e outras cidades, foram desmontados pela polícia. Durante os protestos de 8 de agosto, as barracas voltaram a ser montadas pelas ruas.
Depois de mais de 32 dias consecutivos de manifestações, o governo declarou estar “pronto para o diálogo”. Contudo, Borissov que havia ameaçado afastar-se do cargo, continua no posto, com suporte da coalisão de governo nacionalista-conservadora.
Na Bulgária situa-se uma das fronteiras pouco lembradas pela Europa. Ao sul, na vila de Rezovo, onde há mais bandeiras búlgaras do que casas, um pequeno rio, arames farpados, muros e muita munição separam o país da Turquia. Sob monitoramento constante da polícia marítima búlgara, nenhum refugiado consegue passar por ali. A polícia é ajudada por grupos paramilitares como o Movimento Nacionalista Búlgaro, cujo esporte é caçar refugiados para manter a Europa livre de potenciais terroristas. Em junho de 2018, Boyko Borissov orgulhou-se do trabalho em suas fronteiras no Parlamento Europeu sugerindo que todos os países tomassem a mesma medida para que nenhum refugiado entrasse.
Nessas manifestações, tanto a fronteira como os corpos executados por ali, permanecem esquecidos.
A Bielorrússia também possui o mesmo governo há muitos anos, desde 1994. Foi em meio às campanhas eleitorais de 2020 que os protestos e detenções começaram no país, quando, em maio, o blogueiro Sergei Tikhanovsky foi preso, após lançar sua candidatura à presidência. Outros candidatos à oposição de Alexander Lukashenko, blogueiros e influenciadores digitais críticos também foram detidos. Assim como jornalistas e manifestantes que saíram às ruas em protestos ao longo dos meses de maio e junho. Antes disso, após o desfile militar em comemoração à vitória soviética na II Guerra Mundial, em 9 de maio, jornalistas que se opuseram publicamente à parada em plena Covid-19 foram detidos.
A condução federal “ignorando” e “negligenciando” a disseminação do novo coronavírus no país gerou grande descontentamento da população.
Houve candidatos que não foram presos, mas tiveram suas candidaturas cassadas. Em meados de julho, as candidaturas de Viktor Babariko e Valery Tsepkalo, cujas campanhas eram as mais populares, foram impugnadas. Manifestações tomaram as ruas de Minsk, Brest, Gomel e outras cidades menores. Na capital, Minsk, cerca de 300 pessoas foram detidas. Milhares de pessoas foram às ruas, vias foram bloqueadas e manifestantes enfrentaram a repressão da polícia. No dia seguinte novos protestos ocorreram, mas com um número inferior de participantes. O ato foi dispersado por meio da violência policial e a prisão de qualquer um que estivesse na rua.
Dentre as centenas de detidos no protesto do dia 14 de julho, muitos continuaram presos e foram abertos processos criminais por “violação do procedimento e organização de eventos em massa”, “resistência à prisão” e “violência contra agentes do Estado”. As detenções que antes duravam algumas horas foram se prolongando, com ativistas e manifestantes presos por dez dias ou mais.
Com a desclassificação das candidaturas mais populares, Svetlana Tikhanovskaya, esposa do candidato blogueiro Sergei Tikhanovsky, preso desde maio, tornou-se o maior nome da oposição. Eventos da sua campanha, e de outros candidatos, foram reprimidos por “violação do procedimento e organização de eventos em massa”. Poucos dias antes da eleição, uma “bicicletada solidária” também foi interrompida. O mesmo procedimento foi adotado: violência policial e prisões sumárias.
A disputa eleitoral ficou entre Alexander Lukashenko (presidente há 26 anos), Svetlana Tikhanovskaya, Anna Kanopatskaya, Sergei Cherechen e Andrey Dmitriev. No dia da eleição, membros de comitês e pessoas envolvidas com as campanhas continuaram sendo detidos. Observadores voluntários nos colégios eleitorais também foram detidos. Muitos denunciaram irregularidades.
À tarde, viaturas, tanques, entre outros veículos militares, chegaram em Minsk. Policiais e militares se espalharam pela cidade.
À noite, divulgaram as prévias: 71.4% para Lukashenko e 10.1% para Svetlana Tikhanovskaya. Os resultados em todos os outros lugares registraram derrota de Lukashenko. Imediatamente, as pessoas foram para as ruas em protesto em diversas cidades da Bielorrússia. As detenções também foram instantâneas, muitas vezes efetuadas por oficiais à paisana. Em Minsk, manifestantes enfrentaram a polícia e permaneceram nas ruas. Confrontos também ocorreram em outras cidades.
Por volta da meia-noite, pessoas bloqueavam vias e queimavam barricadas na capital. Milhares continuavam em protesto no centro da cidade, mesmo sob bombas e jatos de água. As manifestações viraram a noite. Na manhã seguinte, anunciaram a vitória de Lukashenko com 82% dos votos. Os protestos continuaram. Milhares de pessoas foram presas, muitas ficaram feridas e outras tantas desaparecidas. Não se sabe quantas foram executadas. Apenas uma morte foi oficialmente confirmada.
Organizações internacionais e governos de países europeus fizeram declarações contra a falta de transparência e de respeito à democracia na Bielorrússia. As manifestações em Minsk e outras cidades avançaram pela madrugada, enfrentando a brutal repressão do Estado.
Desde o dia das eleições, 8 de agosto, os protestos seguem acontecendo frequentemente. Assim como a violência do Estado, ferindo, prendendo e matando manifestantes.
Para a mídia e redes sociais democráticas internacionais o caso Bielorússia substitui temporariamente o caso Venezuela no top ten das ditaduras longevas que manobram eleições.
No dia 12 foram presos os anarquistas Alexander Frantskevich e Akihiro Khanada. Alexander Frantskevich já esteve encarcerado entre os anos de 2010 a 2013, sob a acusação de ter atacado prédios do governo. Agora é tido como um dos organizadores das manifestações e um coordenador de distúrbios, podendo ser condenado a até 15 anos de prisão. Já Akihiro Khanada ainda não possui acusação formal e seu paradeiro é desconhecido.
Os levantes aconteceram em vários lugares do país, atingindo cidades grandes e pequenas. Em alguns locais, a OMON (Unidade Móvel de Propósitos Especiais) uma polícia russa antimotim que existe até hoje na Bielorrússia como herança da União Soviética fugiu das pessoas que tomavam as ruas. Os vídeos e fotos se espalharam pelas redes sociais.
A retaliação foi a interrupção dos serviços de internet e de telefonia fixa, sob a justificativa de que a queda ocorreu por um problema externo à Bielorrússia.
Ativistas falam que os presos e desaparecidos são usados como reféns pela polícia, na tentativa de negociar o fim dos protestos. Svetlana Tikhanovskaya, candidata da oposição, foi presa e, quando liberta, fugiu para a Lituânia. Antes de ser solta, provavelmente forçada, gravou um vídeo pedindo que as pessoas “não saiam às ruas e cumpram a lei”. O vídeo foi veiculado por mídias televisivas estatais. Mesmo assim, os protestos não cessaram.
O tom predominante nas manifestações é a demanda por democracia e a defesa por melhorias para o país. Nas imagens dos protestos, veem-se muitas bandeiras nacionais. São reivindicações por reformas da ordem. Na Bielorrússia, alguns grupos mais ativos se destacam em meio aos protestos, como o Армия с народом (Exército com o povo) e as entidades de direitos humanos e por eleições “justas” como Честных людей (Povo Honesto), Viasna e Голос (Voz). Soldados da milícia russa ЧВК Вагнера (Grupo Wagner) foram presos no país. Esta grande milícia paramilitar atua dentro e fora da Rússia, como nas manifestações ucranianas em 2014 e em guerras, como a da Síria, que segue em curso.
Xs anarquistxs na Bielorrússia, um mês e meio antes das eleições, difundiram a abstenção. Em um texto divulgado em mídias libertárias, o grupo anarquista Pramen declarou: “Não devemos esquecer que os anarquistas são contra não só esta eleição presidencial, mas contra qualquer eleição em geral. O povo bielorrusso sabe há muito tempo que o poder corrompe a todos. Lukashenko pode ser substituído por um político da oposição, que manterá o poder no país e continuará a repressão contra sua própria população. Devemos nos levantar não para ter um novo presidente, mas para viver sem presidentes.”
Em solidariedade com as pessoas presas durante as manifestações, em meados de junho, xs anarquistxs encarceradxs Nikolai Emelyanova e Ivan Komar entraram em greve de fome. Há libertárixs presos na Bielorrússia e uma ampla repressão contra xs anarquistxs, semelhante à perpetrada na Rússia. Em 2017, libertárixs agitaram as ruas do país em manifestações incendiárias, que tiveram como estopim a outorga da lei contra o “parasitismo social”, que previa aplicação de impostos especiais para pessoas desempregadas há seis meses ou mais. Anarquistxs enfrentaram a polícia e, mesmo com o recuo de Lukashenko em relação a esta lei, seguiram nas ruas. Na época, os protestos foram organizados e convocados por ativistas da oposição que já apresentavam pautas de defesa do país e o amplo uso da bandeira nacional. Xs anarquistxs foram, mais uma vez, o alvo da repressão. Muitos dos detidos durante os protestos, passaram a ser processados e presos sob penas maiores.
Um relato de libertárixs que vivem na Bielorrússia acerca das incansáveis manifestações pós eleições sinaliza que a extrema direita tem pouca expressão no país. O que viram nas ruas foram: direita liberal pró-ocidente, nacional democrata e pela ruptura com a Rússia. Explicitam que o mote dos protestos é muito simples: renúncia de Lukashenko e novas eleições “honestas”.
Em um dos últimos convites para as manifestações, sob o título de “Nós, os amaldiçoados pelas autoridades”, o Pramen recordou: “um amigo disse-me que a única maneira de quebrar esta maldição é fazer o Palácio da República queimar no próprio covil da besta (...). Não pense que acredito nestas superstições! Mas eu sei que este palácio vai queimar como o sol!”.
Na noite das eleições bielorrussas, em Kiev, na Ucrânia, anarquistxs enfrentaram as forças de segurança em frente à embaixada do país em um protesto “pela liberdade, nossa e de vocês”. Algunxs foram detidxs. Outros protestos ocorreram em frente às embaixadas em Moscou e São Petersburgo. Muitos foram detidos.
Na Rússia, antes das medidas de governo sancionadas para contenção da Covid-19, até mesmo pequenas reuniões na rua, classificadas como “piquetes”, já eram alvo da polícia. Alguém parar em via pública segurando um cartaz com frases consideradas políticas pode ser enquadrado como um “piquete desautorizado”. Herança da última Copa do Mundo.
No dia 22 de junho, em frente ao Tribunal de São Petersburgo, algumas pessoas se manifestaram pela liberdade dos anarquistxs e antifascistas detidos na operação policial que ficou conhecida como “caso Penza”, quando anarquistxs e antifascistas foram presos sob acusação de formarem uma rede anarcoterrorista (ver Observatório Ecopolítica n.38). Neste dia, foram condenados por participarem de “comunidade terrorista”, Viktor Filinkov e Yuliy Boyarshinov detidos desde 2017, e receberam penas de mais 7 e 5 anos e meio de prisão, respectivamente. Ao menos 30 pessoas que protestavam foram detidas.
Em Moscou, nos arredores do FSB (Serviço Federal de Segurança russo, atualização da KGB), também houve uma pequena manifestação pela liberdade dos dois e contra o “caso”, evidentemente criado pelas autoridades com o intuito de criminalizar os anarquismos. Neste protesto, berraram contra as insuportáveis torturas as quais Filinkov, Boyarshinov e outros foram submetidos. Ao menos 15 manifestantes foram presos e alguns ficaram feridos pela truculência da polícia. Pessoas que estavam próximas ao local do protesto também foram levadas para a delegacia.
No dia 27 do mesmo mês, algumas pessoas saíram às ruas de Moscou e São Petersburgo pelo fim da perseguição à artista Yulia Tsvetkova, acusada de “distribuir pornografia” após publicar em uma rede social uma obra que retrata desenhos de vaginas. Ao menos 40 pessoas foram detidas. A perseguição à Tsvetkova começou em 2019, com uma investigação envolvendo alunos de uma peça de teatro escolar dirigida por ela, em Komsomolsk-on-Amur. Alguns alunos do elenco foram inquiridos pela polícia a respeito de possíveis comentários de Tsvetkova sobre gênero, feminismo e “relacionamentos não-convencionais”. Na mesma época, ela foi interrogada por agentes de combate ao extremismo e acusada de “incitar ódio contra homens e promover relações familiares não-tradicionais”. O festival de teatro onde se apresentariam foi cancelado e o grupo foi encerrado. Tsvetkova teve prisão domiciliar decretada.
Acredita-se que o processo foi desencadeado por postagens de um ativista de direita nas redes sociais expondo e ameaçando a artista. Foi acrescentado no processo um protocolo administrativo por propaganda de “relações sexuais não-tradicionais”, a partir de postagens feitas por Tsvetkova na VKontakte, maior rede social russa (“provas” deste tipo levaram jovens anarquistxs e antifascistas a serem presos no “caso Penza”). O material foi coletado pela divisão contraterrorismo do FSB. O processo ainda não foi finalizado.
A jovem foi incluída na lista do The Saw, grupo fascista russo que, em sua definição, “caça e mata” pessoas não-heterossexuais. No ano passado, a ativista LGBT+ Yelena Grigoryeva foi esfaqueada até a morte por alguns machos fascistas em São Petersburgo. Recentemente, com o nome Knife International, o grupo fascista anunciou sua ampliação pela Europa com “projetos” na Polônia, Alemanha, República Tcheca, Ucrânia e Países Baixos.
Outro processo criminal levou algumas pessoas às ruas de Moscou, no início de julho. A jornalista Svetlana Prokopyeva é acusada de “justificar publicamente o terrorismo”. Trata-se de notícia veiculada em uma coluna em que a jornalista falou sobre Mikhail Zhlobitsky, jovem anarquista de 17 anos que detonou uma bomba em um dos prédios do FSB. O explosivo acabou estourando no próprio Zhlobitsky que faleceu. No texto, Prokopyeva argumentou que a ação direta e a consequente morte do jovem eram um “eco de Moscou”. Ao menos 20 pessoas que protestaram pelo fim do processo foram detidas na capital do país.
No dia 11 de julho, ocorreu uma manifestação com milhares de pessoas na cidade de Khabarovsk, após a prisão do governador Sergei Furgal. Cidades vizinhas também tiveram protestos pela liberdade de Furgal e contra o presidente Vladmir Putin. Um mês depois, novos protestos ocorreram.
No dia 1º de julho fora anunciado o resultado de um plebiscito popular sobre a aceitação ou não de emendas na Constituição. Dentre elas, a mais polêmica é a que permite a Putin permanecer na presidência pelo dobro do tempo já estabelecido. 77,92% da população votou favorável. Inúmeras são as denúncias públicas de fraudes e irregularidades, que vão desde o anúncio da vitória antes da finalização do plebiscito. No dia 15, foram realizados eventos em Moscou e São Petersburgo para coleta de assinaturas pela anulação da votação. As pessoas que saíram para assinar o documento ficaram pelas ruas, em ambas as cidades. Não demorou para a polícia deter quem estivesse ao seu alcance. Mais de 150 pessoas foram presas, dentre elas várias menores de idade.
Enquanto isso, na Polônia, em Varsóvia, um integrante da associação anarcoqueer Stop Bzdurom, Małgorzata Szutowicz ou Margot, teve sua prisão ordenada pelo tribunal por ter ajudado a destruir uma carreta do grupo Pro-Right to Life. Conhecido como “caminhão homofóbico” que costumava circular pelas ruas da capital, muitas vezes escoltado por viaturas.
A Fundação Pro-Right to Life é declaradamente homofóbica e contra o aborto. Vinculada ao Ordo Iuris, uma influente organização de advogados católicos ortodoxos que possui representantes com cargo no governo do Estado, pressionam pela aprovação do “Ato Pare a Pedofilia”, uma proposta jurídica que atrela o combate à chamada pedofilia ao queer e ao LGBT+. Prevê punição também para professores de educação sexual ou quem difundir informações sobre métodos contraceptivos.
A primeira ação do que viriam a ser o Stop Bzdurom aconteceu no ano passado, diante de uma campanha do grupo anti-aborto “pró-vida” na rua, para coletar assinaturas de suporte ao “Ato Pare a Pedofilia”. Um bando de queers e LGBT+ dançaram em frente à tenda dos pró-vida durante toda a campanha. O Stop Bzdurom atiçou outras pessoas, que aderiram à luta. Há outros grupos queer incógnitos agindo em Varsóvia.
Mesmo sob perseguição e depois de ser detidx, Margot continuou agitando. Junto com outrxs queers, atacaram uma estátua de Cristo. Margot e mais duas pessoas que integram o Stop Bzdurom foram detidxs. Depois de liberadxs, apenas Margot teve prisão preventiva decretada.
No momento em que a polícia foi prendê-lx, elx estava em uma manifestação contra a homofobia. As pessoas impediram que os policiais x levassem. Mesmo afrontando os agentes e carregando em suas mãos a proibida no país bandeira LGBT+ nada lhe aconteceu. A manifestação continuou, mais estátuas foram adornadas com bandeiras de arco-íris e as pessoas encararam as tropas e gangues de extrema-direita.
Mas, assim que Margot baixou a guarda, policiais x pegaram e levaram em uma van sem identificação. Imediatamente centenas de pessoas cercaram o veículo e começaram a cantar pela libertação de Margot. Resistiram por mais de uma hora, quando a polícia começou os espancamentos, realizando cercos em manifestantes e os obrigando a ficar de joelhos.
Outras dezenas de pessoas foram detidas, transeuntes foram presos no metrô e pelas ruas.
Uma nova manifestação aconteceu poucas horas depois para que Margot fosse libertx. Entretanto, a resposta foi a mesma: um megafone policial anunciava que as pessoas deveriam dispersar e a polícia começou a prender quem visse pela frente.
Os presos naquele dia foram levados para vários lugares de Varsóvia, um tribunal funcionou por 24 horas para julgá-los imediatamente.
Um dia antes da primeira detenção de Malgorzata, Andrzej Duda foi reeleito em disputa acirrada pela presidência do país. Duda é filiado ao PiS (Partido da Lei e Justiça) e a perseguição às pessoas não-heterossexuais foi uma das pautas mais enfáticas de sua campanha.
X anarcoqueer Małgorzata Szutowicz, também integrante do Stop Bzdurom, segue desaparecidx em alguma masmorra do Estado.
Em Kiev, na Ucrânia, ações diretas marcaram a presença anarquista dos que ali vivem e lutam. Em março, como já acontecera em dezembro de 2019, integrantes do Children of Mother Anarchy atacaram torres de transmissão da companhia de telecomunicação turca Lifecell / Turkcell. A ação direta saudou as mulheres curdas combatentes em Rojava, Bakur e Bashur.
Tal ação nada se assemelha a medidas de governos que interrompem a comunicação para desmobilizar manifestações. Mas é uma saudação à luta pela vida livre e à interrupção do monitoramento constante que também acontece por meio dessas torres. Sabotar uma torre não é a mesma coisa que interromper a comunicação quando convém a um governo. É a afirmação da vida livre.
Em 10 de junho, já em meio à disseminação da Covid-19 na região, uma bomba incendiária foi lançada contra o Departamento de Investigações Criminais pelo grupo Смельчаки. No texto que acompanhou a ação, xs anarquistxs mencionam o aumento da violência policial no país durante a quarentena. Afirmam: “as ‘reformas policiais’ são uma total perda de tempo, porque a polícia é um instrumento de violência nas mãos do Estado.”
No dia 27 de julho, libertárixs da New Youth, atacaram o estacionamento da polícia. Com a ação direta alertaram para o fato de que só é possível derrotar o terror policial e do Estado atacando diretamente toda a ordem social. Mais uma vez, afirmaram a impossibilidade de se reformar ou melhorar essa instituição.
***
A fé nas reformas e nas correlatas melhorias é elemento fundamental para a mesa de negociações democráticas. A esperança em converter o fascista em democrático, ou em uma polícia reformada e justa, ou um governo sem corrupção ― como se a corrupção não fosse inerente a qualquer governo ―, entre tantas outras expectativas, só levam à negociação a condescendência com uma série de práticas autoritárias.
A espera interminável nessa esperança tem como efeito concessões e assujeitamentos, que incluem até mesmo a convivência com fascistas, que devem ser tolerados em nome da democracia. Assim, seguem à espera entre diálogos e o acalentador sonho de um futuro melhor.
Anarquistxs não negociam. Sabem que a mesa de negociações se constrói de acordo com os interesses para manutenção da ordem. Não estão à espera do futuro, mas fazem de suas vidas uma luta no agora em ações diretas. Sacodem costumes e escancaram obediências, subserviências, sujeições e assujeitamentos.
A afirmação da vida livre não está nas concessões, tolerância ou diálogos. Libertárixs não querem salvar ou restaurar nada e ninguém, muito menos a sociedade.
R A D. A. R
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O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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