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observatório ecopolítica

Ano V, n. 87, abril de 2021.

 

O Brasil comum: morticínio e golpe permanente

 

Nos últimos anos a palavra golpe voltou a circular nos noticiários mobilizada por comentaristas e ativistas jurídicos e políticos. Seria enfadonho recuperar os diversos momentos do “vai ter golpe”, “não vai ter golpe” no Brasil. No entanto, com o crescimento do morticínio causado por disseminação das infecções por COVID-19, outra palavra entrou para as estéreis polêmicas dos jornais, telejornais e das máquinas opinativas das redes sociais digitais: genocídio. Impulsionada, assim como a palavra golpe, pelo intelectualismo opinativo-participativo e os ativismos jurídicos e políticos.

 

Entre essas duas palavras, saturadas de usos, sentidos e significados, está o atual governo federal e a figura ubuesca de Jair Bolsonaro, eleito com quase 58 milhões de votos no final de 2018. Entrar na polêmica acerca das palavras e nas inúmeras análises, teorias, definições e opiniões é se entregar ao fluxo informacional que, ao tornar tudo premente, empastela sem a necessidade de intervenção física. Mas é possível extrair um traço histórico-político que se agudiza no momento e o efeito que todas essas agitações em torno da tensão golpe e democracia já produziu. As palavras não são neutras.

 

Não há golpe, na medida em que a atual democracia brasileira, criação cuidadosa do golpe civil-militar de 1964 e modulada pelas concessões e acordos de 1979 (Lei de Anistia), 1985 (Abertura lenta, gradual e segura) e 1988 (Constituição Federal). Desta maneira, a democracia por aqui sabe muito bem manejar autoritarismos e seletividades, sem necessidade da mudança de regime político ou imposição de ditadura.

 

Não se trata de genocídio, na medida em que o morticínio em larga escala é um traço dessa terra, nomeada como Brasil, desde sempre, contando com maior ou menor tolerância e elasticidade em relação ao número de mortes e sobre quem está morrendo. Não há política que não mate. No mais, o que se negligencia e se tangencia de forma deliberada, são os intermináveis etnocídios. Mobilizar a categoria jurídica genocídio do Direito Internacional, alimenta mais ainda os ativismos jurídicos e políticos e, quando muito, servirá para regular o número de mortes e, assim, torná-lo, a partir de algum nível, novamente tolerável. Por fim, o que discursos indignados evitam, pois se inscrevem num campo de disputa política, é que Bolsonaro é o Brasil ou ao menos uma parte significativa dele. Não no sentido da representação, nem tampouco como arquétipo antropológico-cultural, mas seu linguajar, preconceitos e, principalmente, seu discurso em defesa da segurança e punição, é a expressão, no máximo um pouco exagerada, de posições e opiniões que se encontra em qualquer boteco ou padaria de qualquer cidade brasileira. Sua figura catalisa uma conduta que atravessa a estratificação social.

 

Nesse sentido, seja qual for o desdobramento dessa confluência de um presidente autoritário eleito democraticamente e a disseminação de um vírus com enorme capacidade letal, vivemos uma situação análoga à que o anarquista Errico Malatesta colocou no começo do século passado, sobre as ditaduras (à esquerda e à direita): a gritaria, acusações e disputas jurídicas e políticas servirão para refazer a crença na democracia, o reclame por sua moderação e a volta do volume de mortes toleráveis.

 

A crise começou, onde está a crise? A crise se faz e se refaz, como forma mesmo da relação entre governantes e governados, e entre governados, em movimentos de tensão e distensão dos controles e da distribuição de mortes.

 

Não se trata de dizer que tudo se equivale, mas de olhar para o presente de uma perspectiva um pouco mais atenta e constatar que, entre ameaças e ataques, o que se pretende perene faz parte de um jogo e da encenação intrínseca à própria política. É inerente à política matar.

 

Desde 2019, primeiro ano do atual governo, o mês de março é assombrado por ameaças de golpe ou autogolpe, vindas de ativistas apoiadores do governo ou do próprio presidente e/ou membros da cúpula do Palácio do Planalto. Num itinerário que, pela terceira vez se repetiu em 2021, há reações, negociações em vários níveis (imprensa, legislativo, judiciário), uma ou outra manifestação de rua e logo “tudo volta ao normal”. Entre ameaças, reações e alívios por “ter se evitado o pior”, tudo segue como está.

 

Mas o que seria exatamente golpe? O controle político do Estado pelos militares? Um levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União, realizado em meados de 2020, contou 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo federal. Segundo o esclarecimento do Ministério da Defesa, que considera apenas os militares da ativa, são 3.029 ocupando postos civis. Qual a necessidade de formalização desse domínio por meio de um golpe?

 

O morticínio em larga escala, em termos quantitativos, chegou a mais de duas mil centenas com a ampliação das infecções por COVID-19, mas as mortes por armas de fogo, que há anos vinha contabilizando mais de 60 mil cadáveres por ano, seguiram e recrudesceram. Quando muito, se avivou um certo ativismo jurídico de gestão dentro da própria morte em vida, como a recomendação do STF aos tribunais e magistrados para que se adote medidas preventivas à propagação de infecções por COVID-19 nas prisões e no sistema socioeducativo (prisões para jovens). Apenas com esse exemplo, fica evidente, não haver, exatamente, um plano genocida, mas, simplesmente, a continuidade da gestão compartilhada do governo sobre a vida, que sempre produziu suas externalidades mortais, agora exacerbada pela COVID-19.

 

Assim, a despeito de discursos e condutas autoritárias, seguimos vivendo numa democracia que, por meio de regras legais e sem alterar significativamente o edifício institucional, ampliam sua capacidade de controle e letalidade sobre as populações que governam. Isso se dá por meio “ajustes” institucionais, como o Projeto de Lei (PL) que visa transferir o controle das polícias dos estados para o governo federal. Por meio da inflação do chamado setor de segurança, o governo segue classificado como uma democracia (mesmo que em risco), com uma capacidade de intervenção autoritária maior que das ditaduras do século XX. Afinal, a racionalidade neoliberal se funda no fortalecimento de seguranças e na crença popular de fim das impunidades e da corrupção no Estado.

 

Em termos mais específicos, a violência se propaga mesmo com reações contrárias de vários setores da sociedade brasileira, apontando que o avanço desse PL não seria a preparação para um golpe de Estado, mas só o pagamento político do presidente ao setor privilegiado, com o qual ele se relaciona como um líder sindical, que são as forças policiais dos estados.

 

O desejo golpista do presidente em exercício é público e notório. No entanto, tendo o controle direto das forças policiais estaduais e o conhecido apoio ativista de seus integrantes, além da presença atuante do empresariado que o apoia, a pergunta se coloca novamente: precisaria o governo federal de um golpe?

 

Não há golpe à vista, nem genocídio em curso, mas continuidade da democracia operada pelos dispositivos de segurança e tutelada pelos burocratas armados. Como disse o general vice-presidente, lembrando a frase de um outro momento de crise: “deixa o cara governar!”. Quando se interpela o morticínio e o autoritarismo apenas pelos ativismos políticos e jurídicos e políticos, é isso que se está fazendo, isto é, política, ainda que se leve o nome de oposição.

 

“Ser governado significa ser vigiado, inspecionado, espiado, dirigido, valorado, pesado, censurado, por pessoas que não têm o título, nem a ciência, nem a virtude. Ser governado significa, por cada operação, cada movimento, cada transação, ser anotado, registrado, listado, tarifado, carimbado, apontado, coisificado, patenteado, licenciado, autorizado, apostrofado, castigado, impedido, reformado, alinhado, corrigido. Significa, sob o pretexto da autoridade pública, e sob o pretexto do interesse geral, ser amestrado, esquadrinhado, explorado, mistificado, roubado; ao menor sinal de resistência, ou a primeira palavra de protesto, ser preso, multado, mutilado, vilipendiado, humilhado, golpeado, reduzido ao mínimo sopro de vida, desarmado, encarcerado, fuzilado, metralhado, condenado, deportado, vendido, traído e como se isso não fosse o suficiente, desarmado, ridicularizado, ultrajado, burlado. Isto é o governo, esta é sua justiça, esta é a sua moral” Prodhon

 

R A D. A. R

 

Anuário Brasileiro de Segurança Pública

 

 

Letalidade policial bate recorde, e homicídios sobem durante a pandemia em SP

 

 

Mapping Police Violence

 

 

Governo Bolsonaro mais que dobra número de militares em cargos civis, aponta TCU

 

 

Recomendação no. 62, de 17 de março de 2020.

 

 

IBSP discute Projeto de Lei Orgânica das Polícias Militares

 

 

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Flecheira libertária 548

 

 

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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