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observatório ecopolítica

Ano V, n. 83-84, fevereiro de 2021.

 

Democracia estadunidense e governamentalizações.

 

O espaço demarcado e privado chama-se propriedade com tudo o que estiver dentro dele consagrado em leis. É este conceito que também regula o território de um país, com seu Estado, as suas riquezas, populações e seguranças.

 

O governo de coisas e pessoas nos territórios estabelece o que é escravidão, apropriação, trabalho livre assalariado, benefícios de saúde pública e habitações, gestão de pestes, enfrentamento de insurreições, força pública armada, e por conseguinte, resistências a serem contidas pela repressão ou por meio da persuasão em busca de obtenção de consenso.

 

Assim é que encontramos as variadas maneiras dos súditos se governarem, suas condutas governamentalizadas, as intermináveis violências, a indiscernível separação entre legal e ilegal, as idealistas tolerâncias, a servidão voluntária “pró-ativa” e as guerras perpétuas.

 

O invólucro para a propriedade nos territórios da superfície, em suas profundidades até o espaço sideral forma um tríptico composto por leis, direitos e normas.

 

A democracia é um regime político imperfeito, porém tido como o mais justo. Os liberais e seus parceiros que compõem as forças políticas à direita e à esquerda dos governos de Estado, não cansam de falar, repetir e sublinhar a inevitabilidade da vida livre fundada no ideal de democracia e na eternização do capitalismo (entretanto, para o capitalismo pouco importa o regime político).

 

A democracia estadunidense, desde o final do século passado, com o esgotamento e falência do socialismo de Estado, também conhecido como socialismo autoritário, é o ideal perseguido, não só no Ocidente, mas para o planeta. Está, inclusive, no horizonte do híbrido regime político chinês, desde que este passou a ser governado com base na racionalidade neoliberal.

 

A democracia estadunidense prosperou com escravidão e segregação racial, e hoje em dia comanda o espelhamento, esperado e exigido, das anteriormente chamadas massas silenciadas ou caladas às condutas minoritárias da elite principal. Desse modo, todas as minorias numéricas portadoras de direitos devem ser empoderadas, seguindo a conduta orientadora da elite principal.

 

A democracia estadunidense também introduziu uma nova forma de campo de concentração a céu aberto desde o Projeto Manhattan com a produção da bomba H; em nome dela também se ergueram as edificações mais fechadas e violentas de prisões destinadas seletivamente aos presos sentenciados para aguardarem sua pena de morte, ou cumprimento de sua pena perpétua à espera da morte.

 

A democracia estadunidense desceu do regime político para as relações de trabalho, segurança, defesa de direitos de minorias, gestão da vida das populações, e recomenda a conduta resiliente.

 

Para a democracia estadunidense e os Estados que nela se inspiram não há lugar para nada além de propriedade, democracia, direitos e uma constante normalização do normal. Ela é a expressão maior da qualidade de vida almejada. Ela é tida como o meio decisivo para uma economia sustentável, politicamente resiliente, justa e social no capitalismo.

 

Campo de concentração a céu aberto.

 

Oak Ridge, a conhecida “cidade secreta” no Tennessee, foi construída em 1942. Tinha 16 km de comprimento por 3 km de largura. Durante a II Guerra Mundial era murada. Os limites de seu território também estavam revestidos de arame farpado.

 

Oak Ridge era um dos três epicentros para a produção da bomba atômica (os outros dois eram Los Alamos, no Novo México, e Hanford, em Washington, que formam, atualmente, o Parque Nacional do Projeto Manhattan aberto à visitação turística como museu a céu aberto). Todos que lá viviam, sabendo ou não da preparação da bomba, tinham o dever de manter a boca fechada por meio de um juramento secreto.

 

Oak Ridge foi escolhida pelo general Leslie Groves, dois dias depois de ser nomeado para comandar o projeto Manhattan em 1939-1942. Foi o responsável pela compra de 59 mil acres ao longo do rio Clinch pelo Corpo de Engenheiros do Exército dos Estado Unidos.

 

A cidade foi escolhida por sua localização remota na zona rural, em um estado sem litoral, área pouco povoada com a população em busca de empregos não agrícolas e com a presença de usinas hidroelétricas em Norris Dam fundamentais para a criação de usinas eletromagnéticas e centrífugas.

 

As comunidades agrícolas foram remanejadas e os residentes despejados em pouco tempo, obrigados a abandonar a colheita da plantação de sorgo e fumo. Os negros, mesmo os diplomados, eram segregados em barracas chamadas “cabanas”. E a grande maioria de mulheres e jovens passaram a trabalhar para a Clinton Engineer Workers.

 

A bomba seria a vitória da democracia. O projeto levaria adiante a vingança ao ataque japonês a Pearl Harbor. A democracia levaria adiante o julgamento aos japoneses pelo Tribunal de Tokyo, comandado pelo General Mac Arthur, em 29 de abril de 1946, composto por 11 juízes de diversos países e funcionando de modo similar ao Tribunal de Nuremberg.

 

A cidade de Oak Ridge funcionou até 1989, quando a Agência de Proteção Ambiental nomeou a Reserva de Oak Ridge como Superfund Site devido à contaminação nuclear e casos de câncer. Agora faz parte de evento turístico pelos territórios estadunidenses do Projeto Manhattan.

 

Angola, prisão para negros.

 

No final do século XIX, na década de 1880, foi erguida a Prisão Estadual da Louisiana, EUA, para negros violentos. O amplo território (maior que Manhattan) comprado para a construção da prisão era conhecido como Angola, lugar de onde vieram a maioria dos escravos da região, e nome que ficou imantado ao de prisão estadual, considerada a mais severa, violenta e intransigente.

 

Em 1881, Alfred Southwick desenvolveu a cadeira elétrica. Gertie foi o nome dado pelos prisioneiros de Angola à cadeira elétrica feita por eles mesmos e situada na ala Red Hat Cell Block.

 

Somente em 1961 as mulheres negras encarceradas foram transferidas para o Instituto Correcional para Mulheres da Louisiana.

 

Angola foi destinada a negros com penas tão longas que caracterizam o que os especialistas chamam de prisão perpétua. Neste território imenso os negros plantavam para sua alimentação e para a lucratividade do proprietário das terras Samuel Lawrence James. Tinham o direito a fabricar seu esquife e a uma vala para serem enterrados no cemitério local.

 

Considerada a prisão mais violenta e sanguinária dos EUA, a Alcatraz do Sul, dizem ter sido pacificada graças ao diretor que a governou de 1995 a 2016, introduzindo cursos, formação de pastores e erguendo templos com a autoridade do cristianismo. Para redução de custos com a vigilância noturna, substituíram os guardas por um híbrido de cães e lobos.

 

A chegada dos Panteras Negras como presidiários, na década de 1970, trouxe o fim ao comércio sexual de prisioneiros, e de estupros por internos e guardas. Nesta prisão não chegaram os chamados direitos, apenas as normas revisadas para o bom comportamento e continuidade dos encarceramentos.

 

Dissidência para quê e quem?

 

Por certo, a democracia libera a tirania sobre os dissidentes. Chamem-se eles, os Panteras Negras, os pacifistas ecológicos, os defensores de minorias numéricas, etc e tal. Há o conjunto que da dissidência passou a ser ordem, que de excluídos se acham incluídos, que estão governamentalizados pela conduta dos condutores.

 

A dissidência nada mais é que a discordância, o desacordo, a cizânia ocasional. A democracia precisa dos dissidentes e os produz, em qualquer regime de Estado nas empresas, fundações, institutos, Ongs... para a consolidação de uma necessidade que deve reafirmar a presença e a continuidade democráticas. Integrar, engolir, isolar os dissidentes é essencial na pedagogia democrática.

 

A dissidência produz uma normalidade em constante reordenamento. E é um dos elementos fundamentais para a normalização do normal.

 

Da luta antipsiquiátrica dos resistentes dos anos 1960-1970, consolidou-se a luta antimanicomial dos dissidentes. Celebrou-se um casamento entre a psiquiatria e a psicanálise num grande favorecimento à indústria farmacêutica e ao redimensionamento da loucura.

 

Agora, todos somos portadores de transtornos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os transtornos fazem parte de uma nova normalização que orienta as programações sobre a saúde mental planetária.

 

Do mesmo modo a chamada pandemia redimensiona o normal nos empregos segundo a rede computo-informacional, a ocupação de vagas, o sistema do voluntariado, as relações democráticas entre capital e capital humano...

 

Os dissidentes são os resilientes à espera da integração normalizadora. Eles querem ser sempre normais, são ativistas portadores de direitos inacabados.

 

Os melhores dissidentes são os ativistas: querem reformar a ordem, pacificar as relações, consagrar direitos e religiosidades. São ecumênicos!

 

 

R A D. A. R

 

Oak Ridge

 

 

Projeto Manhattan

 

 

Tribunal de Tokyo

 

 

Tribunal Penal Internacional

 

 

Prisão Angola


- Red Hat Cell Block
- Louisiana State Penitentiary

 

 

Panteras negras enjaulados

 

 

Os três de Angola, o filme

 

 

Observatório Ecopolítica 46

 

 

Reconstruindo o sonho americano

 

O período conhecido como Grande Depressão nos EUA, na década de 1930, proporcionou a reestruturação das cidades a partir dos programas voltados para habitação por meio do New Deal, no governo do presidente Franklin D. Roosevelt.

 

Roosevelt encheu o coração de seus eleitores de esperança não só com a possibilidade de retorno a um tempo de abundância. Para a população negra, lançou a promessa de seu reconhecimento e integração.

 

A segregação nos EUA, a partir das Leis de Jim Crow, apenas 15 anos depois da abolição da escravatura continuava desde o final do século XIX.

 

Em 1933, logo após a posse, Roosevelt criou uma série de medidas nos 100 primeiros dias de governo, que constituíram o primeiro New Deal. Uma das principais medidas foi o The National Industrial Recovery Act, de 1933, a partir do qual estabeleceu-se um programa de habitação federal, que integrava a Divisão de Moradias de Subsistência (Division of Subsistence Homesteads), e do qual sua esposa, Eleonore Roosevelt, era grande entusiasta. Os objetivos do programa eram: 1. A descentralização urbana/industrial; 2. Possibilitar a aquisição de propriedade decentes a cidadãos americanos; 3. Promover a família, a comunidade e a unidade social.

 

Em 1935, como parte do programa, mas agora sob a Resettlement Administration, dirigida pelo Economista da Universidade de Columbia (e parte do seleto grupo de “cérebros” no New Deal de Roosevelt), Rexford Tugwell, foi criado o projeto Greenbelt Towns, considerado pelo próprio Roosevelt um modelo a ser reproduzido em todo o país.

 

O projeto consistia em construir pequenas comunidades, que incluíam uma estrutura urbana e uma pequena área rural, nos arredores de grandes cidades, ou a uma distância tida como saudável de novas indústrias. Inspirado nas Garden Cities, iniciativa apresentada pelo britânico Ebenezer Howard, que tinha como uma das propostas principais aliviar a superpopulação nas grandes cidades. Os três municípios que faziam parte do primeiro projeto eram: Greenbelt, em Maryland, próximo à capital Washington, DC; Greenhills, próximo a Cincinnati, em Ohio; e Greendale, próximo à Milwaukee, em Wisconsin. Brancos e negros desempregados se encarregaram da construção da cidade, destinada às famílias de bem que tivessem uma renda diminuta, mas fixa.

 

O nome Greenbelt se referia ao cinturão verde em torno das regiões, que deveria contribuir para o clima saudável do município. As moradias eram casas geminadas, ou pequenos prédios, ambos com uma pequena área verde que, além do menor custo, estimulariam o sentido de comunidade. Os municípios ainda possuiriam escolas, centros comunitários, e um pequeno comércio de cooperativas. O princípio de subsistência dessas novas comunidades se baseava em pequenas plantações comuns, que forneceriam a maior parte da alimentação familiar.

 

O projeto era também social. Os futuros residentes, além de uma renda fixa, mesmo que mínima, deveriam provar ― por uma série de investigações do governo ― que constituíam uma família, ou pretendiam constituir a sua em um futuro próximo. Eram trabalhadores engajados em atividades comunitárias, como fraternidades ou igrejas, com uma boa reputação entre os vizinhos.

 

Apesar de relativamente próxima de uma grande cidade, a comunidade de Greenbelt permanecia, e permanece, suficientemente isolada de modo a estimular o espírito de comunidade evitando também as “más” interferências do mundo exterior. Tudo era decidido em reuniões pelos moradores, desde a presença de cães e gatos, problemas de ordem técnica, ou política.

 

Em projetos posteriores as comunidades, na falta de um cinturão verde, eram separadas por rodovias ou mesmo muros, em especial quando a comunidade era erguida próxima a uma área considerada degradada, e cuja população fosse negra.

 

Todos os projetos de moradia, passavam por um processo de aprovação que levava em conta as regiões classificadas como: “melhores”; “ainda desejáveis”; “definitivamente em declínio”; “nocivas”. As últimas, marcadas em vermelho em um mapa, eram as regiões em que vivia a população negra, mesmo quando não era a maioria. Muitas vezes, a solução para levar adiante os projetos era a construção de muros de concreto ou de largas rodovias. Tais regiões ficaram conhecidas como redliners.

 

A parcela negra do sonho americano

 

A região em Maryland, antes da cidade de Greenbelt, era ocupada por fazendas habitadas por famílias negras. Um terço da área seria destinada a estas famílias, entretanto o plano não chegou a sair do papel em função da pressão da população branca local.

 

Roosevelt e a esposa tinham uma boa relação com a população negra, falando publicamente sobre a necessidade de inclusão e assistência dos negros. Apesar dos pronunciamentos públicos, Roosevelt jamais tentou interferir nas decisões de democratas no sul do país que queriam, por exemplo, manter as leis de linchamento.

 

Mas, ainda que em menor número, alguns projetos de comunidades “decentes” para a população negra, foram colocados em prática. Diferente das comunidades semirrurais de subsistência, os projetos para a população negra, ainda que remodelados espacialmente, eram inteiramente urbanos.

 

O governo do democrata Roosevelt, passou a distribuir cargos no governo, a maioria de menor relevância, para a população afro-descendente, mas também foram contratados profissionais de maior patente que, entre outros, estiveram envolvidos em projetos como a construção da comunidade de Langston, também em Washington, DC.

 

A região que se tornaria Langston foi totalmente demolida como parte do projeto de reurbanização nacional que prentendia acabar com cortiços e becos, como forma de amenizar a “insalubridade” e o “crime”.

 

O projeto foi desenvolvido e executado por Hilyard Robinson e David Augustus Williams, dois proeminentes arquitetos negros. As habitações estavam destinadas a serem alugadas e não compradas a longo prazo, como em Greenbelt. O modelo das casas não se diferenciava muito do modelo de Greenbelt, casas geminadas ― sem espaço para becos ― ou pequenos prédios. Além disso, a área ganhou uma escola, um centro para as artes e cultura, e parques e praças para as crianças e os residentes.

 

Entre as mais de 2000 pessoas que se inscreveram para a moradia dos sonhos, a imensa maioria era de pessoas que possuíam algum cargo público. Em suas solicitações, apresentavam-se como pessoas decentes, trabalhadoras e que, em alguns casos, temiam pelo ambiente inóspito ao que expunham seus filhos em suas atuais moradias. Entre os moradores selecionados, diferente das comunidades nos subúrbios, até mesmo famílias sem a presença de um marido eram aceitas. Nestes casos, eram selecionadas as viúvas que tinham filhos. Mas todos deveriam se mostrar como pessoas de boa índole, de comportamento exemplar, e assiduidade.

 

O que sobra para os restos

 

A população negra que não era selecionada para os poucos projetos mais elaborados de habitação, poderiam entrar no programa da Alley Dwelling Authority (ADA). O principal objetivo do programa era a redução da criminalidade e de mortes a partir da eliminação de becos e cortiços. Por vezes, as pessoas retiradas de suas casas para a reconstrução da área, não podiam pagar pelo novo preço do aluguel.

 

O governo, no entanto, estabeleceu também naqueles anos outras medidas, como o Social Security Act, de 1935, que buscava garantir algum subsídio mínimo e comida para as pessoas em situação de desemprego e miséria.

 

No final dos anos 1930, agências governamentais envolvidas nos programas de habitação, reformaram diversas prisões e ergueram alguns novos estabelecimentos prisionais. Durante este período, a prisão de negros triplicou em relação a prisão de brancos, que por sua vez declinava.

 

O velho New Deal

 

Os programas do governo de Roosevelt não acabaram com a crise econômica inaugurada naquele momento com a Grande Depressão. Entretanto, um de seus maiores sucessos foi a pacificação da população estadunidense. Diante do crescente desespero da população frente aos desdobramentos a partir da crise de 1929, Roosevelt foi capaz de agradar e domesticar, de modo geral, brancos e negros, mantendo-os cada um em seu quadrado. Atendendo, ainda, na mesma lógica, outras minorias como imigrantes e indígenas.

 

A urbanização no capitalismo, com a industrialização, intensificou também os conflitos e as lutas nos centros urbanos.

 

Os programas de moradia do New Deal possibilitaram a criação de espaços de controle e gestão interna pelas próprias comunidades, sob os parâmetros estabelecidos pelo governo. A população segregada também recebeu sua cota, e mostrou-se merecedora da “benevolência” do governo, pois soube se comportar.

 

Aos outros, restou o jugo da caridade, ou o aprisionamento mais restrito, o espaço mais limitado, os vizinhos e carcereiros uniformizados, e grades metálicas no lugar das largas rodovias ou do belo, mas macabro, cinturão de árvores.

 

A população abastada seguiu com sua vida, talvez mais protegida dos “perigos” da proximidade de pobres e miseráveis. A bolha estadunidense se solidificou. E, como disse o poeta, lá, “branco é branco, preto é preto e a mulata não é a tal”.

 

R A D. A. R

 

Subsistence Homesteads

 

 

Homesteads and Hope (Bulletin #1)

 

 

Greenbelt History

 

 

Fact Sheet: Race & Greenbelt, Maryland

 

 

Mapping Inequality - Redlining in New Deal America

 

 

Langston Terrace Dwellings

 

 

Making Modern Homes: A History Of Langston Terrace Dwellings, A New Deal Housing Program In Washington, D.C.

 

 

African American History Month: Langston Terrace Dwellings

 

 

The Negro in the New Deal Resettlement Program (1971)

 

 

Prison: History – Modern Prisons

 

 

Verbete abolicionista libertário: comunidade

 

 

Sangue

 

A ciência ao tornar-se obsessiva pela pureza, empírica ou transcendental, situa-se como um amplo campo irradiador de experimentos médicos que dispõem de corpos e mentes em nome do chamado progresso científico e da denominada evolução da humanidade. Foi no interior deste campo que se instalou, também, a denominação de “sangue ruim” para designar, de forma generalizada variadas “doenças” e “doentes”. Essa metonímia médico-gramatical de “sangue ruim” foi utilizada amplamente e de maneira preferencial para nomear a sífilis e os sifilíticos. Mas não só.

 

A construção histórico-política da ciência contemplou, também, as investidas do darwinismo social e de seus entrelaçamentos com a teoria eugênica, dentre outras, a de um primo de Darwin, o biólogo e estatístico Francis Galton, que em seu livro Hereditary genius, de 1869, cunhou o termo eugenia, literalmente, como “bons genes” ao preconizar “a seleção em humanos”. E, ao mesmo tempo, colocou a eugenia como ciência voltada a melhorar “a espécie humana” e dar às “melhores raças”, ao “melhor sangue”, “maior oportunidade de levar vantagem sobre os menos bons”. Argumento liberal por excelência.

 

Na década de 1920, a denominação “sangue ruim” já havia sido amplamente utilizada pelos médicos eugenistas estadunidenses como pretexto para justificar as esterilizações em pessoas denominadas como “deficientes” (físicos ou mentais).

 

EUA: Estudo da sífilis não tratada de Tuskegee (1932-1972).

 

1932. Cidade de Tuskegee, condado de Macon, estado do Alabama, EUA. É realizada uma triagem em 600 negros por meio de exame de sangue para sífilis. Os 399 negros positivados para sífilis são recrutados pelo governo estadunidense por meio do Serviço de Saúde Pública dos EUA (PHS), para um estudo médico sobre “a história natural da doença”. Os demais negativados, 201, foram utilizados como parâmetro de comparação com os infectados ao longo da pesquisa.

 

Entretanto, ninguém lhes disse que se tratava de uma pesquisa, tampouco qual era a doença positivada nos testes. A única coisa que lhes disseram é que tinham “sangue ruim” e que se aceitassem o recrutamento do governo dos EUA receberiam tratamento (não havia tratamento para sífilis na época), uma refeição quente no dia dos exames e transporte, um caixão de defunto e auxílio-funeral.

 

Os negros que morriam em Tuskegee, como em tantos outros lugares dos EUA, eram embrulhados em sacos de estopa e jogados em uma vala.

 

A pesquisa se propunha a acompanhar o que os cientistas chamam de “história natural da doença”. Ou seja, não a tratar, mas observar sua evolução até a morte de cada pessoa. O estudo contou com a participação de médicos e enfermeiras brancos, mas também negros. O projeto perdurou por 4 décadas. De 1932 a 1972.

 

“O único grande estudo sobre a história natural da sífilis foi feito com uma população quase inteiramente caucasiana em Oslo, Noruega. Os médicos americanos queriam saber se a sífilis teria uma história natural diferente nos afro-americanos. Um dos motivos de sua curiosidade era que a sífilis tardia era conhecida por afetar o sistema nervoso central. Os investigadores questionaram se cérebros negros relativamente “primitivos” e “subdesenvolvidos” seriam poupados.

 

Outras ideias racistas sobre afro-americanos e doenças sexualmente transmissíveis apoiaram a ideia dos experimentos de Tuskegee. O médico do Serviço de Saúde Pública dos EUA (PHS), Thomas Murrell, disse: ‘Aqueles que são tratados estão apenas curados pela metade, e o esforço para assimilar uma civilização complexa leva suas mentes doentes até que os resultados sejam registros criminais. Talvez aqui, em conjunto com a tuberculose, seja o fim do problema do negro’.

 

Taliford Clark, também do PHS explicou que “o condado de Macon é um laboratório natural; uma situação pronta. A inteligência bastante baixa da população negra, as condições econômicas rebaixadas e as relações sexuais promíscuas comuns não só contribuem para a propagação da sífilis, mas a indiferença prevalecente em relação ao tratamento.

 

Foi assim que, em 1932, o PHS, supondo que essas pessoas com sífilis nunca seriam tratadas, decidiu usar Tuskegee para um “estudo na natureza” para determinar a história natural da sífilis não tratada em homens negros”.

 

Do mal colombiano, do mal espanhol, do mal africano, do mal francês, ao “sangue ruim”, a sífilis no estudo de Tuskegee nos EUA é, também, emblemática de forma dupla, ao vincular sangue e sexo, o mesmo e o outro, projetando a eliminação do outro e tolerando a sua existência desde que venha a ser a imagem do mesmo branco, saudável.

 

“A sífilis é doença infectocontagiosa, transmitida pela via sexual e verticalmente durante a gestação. Caracteriza-se por períodos de atividade e latência; pelo acometimento sistêmico disseminado e pela evolução para complicações graves em parte dos pacientes que não trataram ou que foram tratados inadequadamente”.

 

A sífilis é conhecida desde o século XV. Desde 1943, com o uso da penicilina pode ser curada. Porém, sua história oscila entre a contaminação dos europeus pelos americanos desde a descoberta espanhola, ou pelos negros africanos e as mutações de treponemas endêmicos. Populações não brancas, indígenas ou negros seria os contaminadores.

 

Mesmo após a descoberta da penicilina, a perseguição por dados puros no estudo de Tuskegee manteve os negros expressamente impedidos de receber tratamento.

 

O governo estadunidense decidiu investir, simultaneamente, em um projeto paralelo exterior ao seu território, iniciado na década de 1940, que consistia em pesquisar como pessoas com sífilis respondiam a um tratamento em massa com o novo medicamento, a penicilina. Para isso enviou à Guatemala uma série de pesquisadores e médicos do PHS, inclusive alguns envolvidos no estudo de Tuskegee para a nova pesquisa. Os desdobramentos científicos na Guatemala visavam observar efeitos profiláticos assim como evoluíam os casos de sífilis para a “exposição normal” e “os inoculados” para doenças sexualmente transmissíveis.

 

Por um acordo tácito entre os EUA e a Guatemala, que o governo estadunidense cunhava como “república das bananas”, foram infectados, deliberadamente, pelas autoridades médicas, prisioneiros e “doentes mentais”, dentre outros em território guatemalteco.

 

O estudo de Tuskegee foi encerrado em 1972. Quase todos os negros morreram. Como é rotineiro nos EUA após sua divulgação explícita para o público em geral em uma matéria de jornal, o senado estadunidense abre um longo processo para encontrar os culpados, responsabilizá-los e puni-los. A costumeira encenação jurídico-política inerente ao Estado e a todos que clamam por ele. O espetáculo da denúncia que reproduz a santa indignação e vice e versa. Não à toa o tom da bibliografia que aborda o tema gira em torno de perguntas tais como “como isso pode acontecer mesmo após a promulgação do Código de Nuremberg e até mesmo da Declaração de Helsinki”, engrossando e endossando o coro em torno da chamada bioética e biossegurança, e seu corolário de protocolos, que tão bem respondem à racionalidade neoliberal.

 

O que o estudo de Tuskegee perseguia eram dados puros. A fixação científica na pureza e na purificação. Espelhamento complementar à purificação divina. A fixação da pureza não estava só na ideia de raça que atravessou a própria construção das ciências biológicas e toda a sua taxinomia, vide os termos espécie, raça, família, gênero, reino..., que instrumentalizou também a linguagem das ciências humanas.

 

Não há ciência neutra, tampouco a ciência está apartada da política. Da mesma maneira que a medicina medicalizou a linguagem da política. E não há política que não mate.

 

Quanto à ciência, é sempre uma saúde lembrar uma afirmação anarquista breve de Bakunin, ao dizer que a ciência é uma bússola para a vida. Mas não é a vida.

 

Não há sangue puro ou impuro, superior ou inferior, bom ou ruim. Apenas sangue. Vermelho, viscoso e sem metafísica.

 

O sangue corre nas veias e artérias e o corpo pulsa. O sexo pulsa. Simples assim.

 

Ninguém pesquisa apartado do modo como toca na própria vida. Simples assim.

 

R A D. A. R

 

Bad Blood”: The Tuskegee Syphilis Study

 

 

Howell, Joel.“Race and U.S. medical experimentation: the case of Tuskegee”. (Universidade de Michigan, EUA). Cadernos de Saúde Pública, vol. 33, sup. 1. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, maio de 2017.

 

 

Tuskegee Patient Medical Files Numerical by Patient Number

 

 

Final Report of the Tuskegee Syphilis Study Ad Hoc Advisory Panel

 

 

Avelleira JCR, Bottino G.. “Sífilis: diagnóstico, tratamento e controle”. Sífilis: Diagnóstico, tratamento e controle. An Bras Dermatol. 2006;81(2):111-26.

 

 

Iommi Echeverría, Virginia. “Girolamo Fracastoro y la invención dela sífilis”. História, Ciências, – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.17, n.4,out.-dez. 2010, p.877-884.

 

 

Reverby, Susan M.. “Sífilis por “exposição normal” e inoculação: um médico da equipe do estudo Tuskegee na Guatemala, 1946-1948”. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 15, n. 2, p. 323-349, junho 2012.

 

 

 

 


O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

 

 

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