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observatório ecopolíticaAno V, n. 99, outubro de 2021.
Anarquistas e ações diretas antimonitoramento. 1ª parte
Ação direta é uma prática anarquista que recusa intermediários e representações. Está presente nas invenções de libertárixs, desde a experimentação com periódicos até em ataques contra a propriedade e prédios do governo. No dia a dia. A ação direta não é um atentado, nem uma forma de terrorismo, é da existência anarquista.
Entre ações diretas contemporâneas, destaca-se a de Theodor Kaczinski, o Unabomber, o sujeito mais perigoso e mais procurado nos EUA antes do 11 de setembro de 2001. Em A sociedade tecnológica e seu futuro declarou a abertura e a continuidade em combate à subjetividade tecnológica neoliberal contemporânea.
Alertava como o monitoramento se alimenta de uma servidão ao sistema tecnológico industrial transmitida para as gerações futuras por meio de uma educação em que a vida deve caber no mercado. "As nossas vidas dependem de decisões feitas por outras pessoas; não podemos controlar essas decisões e geralmente nem sequer conhecemos as pessoas que as tomam. [...] As nossas vidas dependem da manutenção dos padrões de segurança de uma central nuclear; de quanto pesticida chega à nossa alimentação ou quanta poluição ao ar que respiramos; ou da competência do nosso médico; se perdemos um emprego ou o conseguimos pode depender de decisões feitas por economistas a trabalharem para o governo ou por gestores de empresas; e por aí fora. A maior parte dos indivíduos consegue proteger-se destas ameaças só muito limitadamente. A procura de segurança pelo indivíduo é por isso frustrada, do que resulta uma sensação de impotência".
A prática libertária de Unabomber não negocia com a produção e circulação das tecnologias. É um combate declarado a qualquer equipamento tecnológico. "Enquanto o sistema industrial não estiver despedaçado, sua destruição deve ser a ÚNICA meta revolucionária. Outras finalidades distrairiam a atenção e a energia da meta principal. Mais importante, se os revolucionários se dão ao luxo de ter qualquer outra finalidade, se verão tentados a usar a tecnologia como uma ferramenta para atingir essa outra finalidade. Se cederem a essa tentação, cairão diretamente na armadilha tecnológica, porque a tecnologia moderna é um sistema unificado e estreitamente organizado, de forma que a conservação de ALGUMA tecnologia obrigará a conservar A MAIOR PARTE da tecnologia. É tudo ou nada."
O manifesto de Unabomber é uma ação direta, assim como seus ataques aos cientistas. Hoje o manifesto circula pela internet e atiça outras práticas anarquistas. As ações de Kaczinski também anunciaram uma série de práticas libertárias de anarcoprimitivistas, anticiv, anarquismos verde, ações contra a energia nuclear; invasão e destruição de locais de aprisionamento e execução de animais; invasão e destruição de maquinarias usadas na destruição de árvores, florestas, rios, habitats inteiros; invenção de associações libertárias que abrem mão de qualquer contato com as tecnologias computo-informacionais; ações de destruição de equipamentos de monitoramentos...
Atualmente, um dos alvos das ações diretas libertárixs pelo planeta está na interrupção de monitoramentos com ataques insurrecionais, incêndios de alertas, destruição de propriedades, quebra de vidraças e vitrines, corte de cabos de comunicação, sabotagem de repetidores de energia elétrica, explosão de carros e agências bancárias, arremesso de coquetéis molotov contra delegacias e prisões...
Diante da ampliação do monitoramento e da utopia do controle de tudo e de cada vivente neste planeta — e fora dele —, as ações diretas realizam interrupções e interferências. Entre os alvos, está a difusão da internet e redes 5G, da energia elétrica e nuclear, dos projetos de smart cities; o que muitxs libertárixs envolvidxs nestas batalhas definem como: "tecnomundo".
As ações podem ser acompanhadas de artigos analíticos publicados em revistas, zines e sites anarquistas, que declaram a autoria das ações diretas insurrecionais ou não, e que explicitam as forças em luta e os alvos precisamente mirados por ácratas no presente. Os sites de notícias anarquistas, também são ações diretas que, mesmo diante da comunicação protocolar entre interfaces, declaram seus alvos e espalham as notícias das ações rapidamente pelo planeta, potencializam a propaganda pela ação. Assim como projetos voltados ao mapeamento do monitoramento como o Counter Surveillance Resource Center e guias que procuram informar e trocar sobre táticas de autodefesa frente às tecnologias de monitoramento (desde o uso de embaralhadores de IPs, o uso dos chamados softwares livres e aplicativos de mensagens cujo armazenamento é feito no próprio aparelho, até maneiras de bloquear ou destruir câmeras de vigilância).
São ações diretas que não estão disponíveis à catalogação como atentados, terrorismos, assépticos textos analíticos e seus respectivos eventos de congratulações seguras e democráticas. Essas práticas se articulam e compõem a urgência da luta anarquista hoje.
Europa e anotações sobre o Brasil
"A oposição às novas antenas 5G, assim como a todos os símbolos fálicos, da dominação tecnológica, está se espalhando como incêndios. Estxs rebeldes são chamadxs de 'teóricxs da conspiração', ao passo que algunxs podem ter algumas teorias bizarras, ter alguns focos de fogo quente contra o gelado mundo da tecnologia nunca faz mal", declaram anarquistas incógnitxs que assinaram o texto "Burler les foyers du virus technologique: de la nécessite de couper les reseaux de la domination".
As ações diretas, mesmo com fogo e explosivos, são cuidadosas para não ferir nenhum ser vivo. Esta é uma característica imprescindível das práticas anarquistas contemporâneas, como já foi mostrado em outros números deste observatório (especialmente, n. 73). Sejam as ações que tomam como alvo as tecnologias de monitoramento, sejam as que visam outros focos da luta ácrata. Algumas raras exceções, em geral durante embates em manifestações ou em ataques contra delegacias e prisões, envolvem acidentes que atingem policiais... precisamente os homens e as mulheres que se assujeitam a matar e morrer em nome do Estado, em defesa da propriedade e desta ordem... logo, o requisito inerente a este serviço e profissão.
Queimas de antenas, sabotagem de cabos de fibra ótica e de repetidores de sinais de telefone e internet! Desde março de 2020, essas práticas se expandem notadamente pelo continente europeu, principalmente na França e Itália, ganhando ecoando mais recentemente também na Espanha. No continente americano, ataques pontuais interrompem a comunicação e o monitoramento.
Setembro de 2021, Grenoble, França, em uma noite de domingo. Libertárixs acenderam uma barricada em frente a um escritório da Orange, principal empresa de telecomunicação do país. No texto que publicaram, acompanhando a ação direta, xs Refratorxs em solidariedade enfatizam que a "solidariedade" entre anarquistas não deve ser restrita axs que estão aprisionadxs e são alvos de repressão, "porque a sociedade tem muitos jeitos de nos destruir (...) especialmente desde o começo da crise da Covid, que isolou consideravelmente muitxs anarquistas. Nós também queremos dizer que a solidariedade não é apenas atacar, há muitas formas de expressar solidariedade com anarquistas ao nosso redor".
Neste breve escrito chamam a atenção para um "problema espinhoso": o fato de, nos últimos anos, ter se tornado comum que "fascistas/conspiracionistas" ataquem alguns alvos comuns axs libertárixs; "de antenas a centros de vacinação [da Covid-19]". Questionam: "o que isso nos diz sobre o anarquismo do presente? Como permitimos que se confundam ações anarquistas com atos conspiratórios?" Alertam para o cuidado que se deve ter com a saudação a espaços-alvo de anarquistas: eles "têm posições opostas as nossas em quase tudo, e nós podemos ser seus alvos em outros contextos". Na França, talvez impulsionadas pelas manifestações que ficaram conhecidas como dos "coletes amarelos", forças diversas e opostas tomaram as ruas lado a lado, por vezes lançando mão de táticas semelhantes como o ataque à polícia e à propriedade. Mais recentemente, em plena disseminação do novo coronavírus na Europa, protestos contra as medidas de governo como quarentenas, lockdown, toque de recolher e vacinação compulsória levaram e levam às ruas anarquistas, antifascistas, hippies, ecologistas e gente da "nova era"; conspiracionistas, negacionistas, religiosos, forças da extrema-direita. O alerta dxs Refratorxs em solidariedade é certeiro: anarquistas não se confundem e não se misturam com essas últimas forças, as quais almejam exterminar as existências libertárias. Se, em alguns lugares, estão andando próximo desses autoritários, faz-se necessário afirmar: libertárixs e autoritários de toda ordem são inconfundíveis. Nossas batalhas miram certeiras em suas instituições e modos de vida. Nossos fins e nossos meios são indissociáveis.
Anarquistas na Espanha que animam a Contra toda Nocividad — associação e jornal — situam as forças em luta no contexto europeu. Segundo elxs, tudo o que se propaga em diferença com o "pensamento único" difundido pelo Estado e pela imprensa empresarial, é classificado como "fake news". As "real news" são "o pensamento único, referem-se ao vírus, às máscaras, às vacinas, às escolas e muito mais". Deste modo, quem divulga as ditas "fake news", ou seja, "qualquer informação dissidente", é igualado aos negacionistas. Termo que, no contexto europeu, difundiu-se nas últimas décadas para definir neonazistas que negam o Holocausto. Assim, elabora-se uma associação canalha de que "quem critica à gestão da Covid é, para a sociedade, igual ao que os nazis são para o Holocausto".
Apesar das associações oportunistas entre libertárixs e fascistas, Contra toda nocividad não propõe uma possível aliança à esquerda e marca seu combate, principalmente pela abolição das tecnologias de monitoramento, muitas vezes apoiadas, quando funcionam em seu benefício, desde a dominação bolchevique, pelos que se situam à esquerda do Estado: "a totalidade da esfera da esquerda progressista, aquela que nos últimos meses elogiou as tecnologias de comunicação que nos permitiram estar 'juntos porém distantes', que possibilitaram o trabalho remoto e a didática a distância. A mesma que sempre lutou pela saúde e pela educação públicas. (...) [Assim como para] os da Friday For Future ou Extincion Rebellion (...) muitas meninas e meninos dessas novas gerações de ambientalistas absorveram o credo progressista segundo o qual a resposta a um problema está sempre na nova tecnologia".
No contexto europeu, xs libertárixs constatam as relações indissociáveis entre o Estado, o saber médico, a ciência e o uso de tecnologias e o funcionamento de um imperativo da saúde pública. Certxs anarquistas chamam isso de um "sanitarismo-securitário e autoritário da tecnocracia da saúde", "ditadura da saúde" e de mecanismo "tecno-sanitário".
É importante enfatizar que, dentre estxs ácratas, há xs que aderem às teorias conspiratórias acerca das vacinas mRNA que, alegam, modificação de genes e objetivam "expropriar nosso sistema imune", realizar "alterações genético-celulares que permitirão uma verdadeira epidemia de doenças autoimunes" e irão "mecanizar e converter nossos corpos em fábricas de drogas a serviço da indústria farmacêutica".
Entretanto, mesmo entre os conspiracionistas, há o diagnóstico de que as vacinas são apenas a superfície do que se categorizou como combate à chamada pandemia. Juntamente a elas, desenvolveu-se e se aceitou um novo arsenal de tecnologias de monitoramento. Como destacaram xs anarquistas na Itália de al resistenze nanomondo ao problematizar a implementação e a ampla aceitação do green pass para aqueles que estão vacinados: "[o green pass] representa mais um passo em direção à uniformidade de obediência que gostaríamos de reduzir a pedaços digitais que são ligados e desligados com um simples clique em um aplicativo. É uma das muitas faces de um mundo adaptado à inteligência artificial que decidem sobre nossos relacionamentos e nossos movimentos. Um grande servidor ditará nossa vida social, ele estará em uma gaiola eletrônica que, graças à rede 5G, selará a última inauguração, no futuro, das cidades inteligentes radiantes e sufocantes. Em nome de uma pandemia, querem impor uma mudança radical em nossas vidas, da qual o green pass deixa pouco espaço para a imaginação."
Somado à crítica e ao combate à ampliação das tecnologias de monitoramento, xs libertárixs alertam para os danos e ameaças à saúde possivelmente produzidos pelas ondas emitidas pelas antenas 5G. Antes mesmo dessa nova tecnologia ser anunciada pela China, muitxs libertárixs preocupavam-se com as ondas de wi-fi que atravessam os corpos e seus danos colaterais futuros.
Assim, alardeiam efeitos como cânceres, tumores e adoecimento de outros animais, com as ondas impregnando o ar e a água. Comparam ao desenvolvimento e ao uso de outras substâncias como o amianto, as nucleares e os pesticidas que à época de seus lançamentos no mercado também foram vendidos como "seguros". Argumentam que "as nocividades de uma nova tecnologia se averiguam somente muitos anos depois de sua difusão em larga escala" e que as pesquisas que postulam que o 5G é inofensivo à saúde humana são realizadas ou financiadas por empresas que lucram e lucrarão com a implementação desta tecnologia, impreterível para que se progrida no estabelecimento das smart cities (em fase de projeto em muitas localidades europeias, em campos de trabalho forçado na China e em laboratórios de campos de refugiados da África).
Não é preciso ir ao nível celular para diagnosticar os efeitos das ondas 5G daqui a alguns anos em nossos corpos e na saúde dos demais viventes. Cada pessoa que passou mais de um ano redimensionada ao trabalho remoto sente em seu corpo o agravamento do uso dos aparatos tecnológicos com suas luzes constantes, dos fones de ouvido, da postura sentada e arqueada com o rosto enfiado atrás das telas de computadores e smartphones… bem como conhecemos os efeitos nas nossas relações e sociabilidade que deixaram de ser físicas para serem intermediadas por códigos e interfaces que se materializam em uma tela.
Enquanto isso, os trabalhadores e transeuntes que não deixaram de circular, porque são "essenciais", ou não, seguiram e seguem em seus itinerários rotineiros ao serviço, enfiados em ônibus e vagões abarrotados e com os olhos fixos, o tempo inteiro, nas imagens luminosas emitidas por seus smartphones. Intensificação de situações já colocadas anteriormente à chamada pandemia.
Mas, em meio ao fluxo do trânsito e ao fluxo de informação, houve um susto: o "bug do Facebook". Nos metrôs, trens e ônibus de São Paulo, os relatos foram de que as pessoas "pareciam mais tristes" ... O tal bug não foi esclarecido pelo bilionário proprietário da empresa Facebook. Isso pouco importa; qualquer relatório deixou de ser importante depois que a conexão foi restabelecida. E todos apenas esperam que os serviços sigam funcionais e atualizados. Sedem voluntária e gratuitamente seus dados, os arquivos guardados em seus aparelhos eletrônicos, suas conversas, seus desejos, seus sonhos, seus contatos para esta e outras empresas. Bem como para o Estado e suas polícias. O "bug" não passou de um susto que não trouxe outras surpresas. Segue o fluxo.
Smart cities
Com o uso acentuado e ampliado nas ruas de tecnologias de monitoramento, tanto como medidas de polícia e segurança quanto como "progresso" rumo à efetivação de projetos smart city, xs libertárixs que habitam cidades europeias atentam para e contra as inovações neste setor. Além do uso policial voltado para a perseguição de anarquistas e pessoas incógnitas que praticam ações diretas — durante manifestações ou não —, iniciativas privadas utilizam mecanismos de segurança para tentar coibir furtos. Na França, Carrefour, Monoprix, Super U, Franprix e Intermarché testam softwares de análise biométrica em suas lojas. A novidade veio na esteira de outras, impulsionadas pela chamada pandemia, como uso de câmeras termais na entrada de empresas, a mensuração virtual da distância física entre funcionários em um escritório, o rastreamento do movimento ocular durante exames universitários realizados online e a distância...
São softwares instalados em câmeras de vigilância, que buscam identificar supostos ladrões. Foram testados inicialmente no Japão durante os Jogos Olímpicos de Verão de 2020, mas realizados em 2021. Na ocasião dos jogos, o reconhecimento facial foi utilizado em toda a rede de metrôs e trens da capital japonesa. Ao final do evento, uma das empresas responsáveis por parte dos trens que circulam pela cidade comunicou que não daria continuidade ao reconhecimento facial, tecnologia que já está sendo desenvolvida no metrô de São Paulo e nas ruas de Brasília. Imediatamente, japoneses se manifestaram em seus Twitters demandando a retomada do reconhecimento facial em nome da segurança.
A tecnologia japonesa, aprimorada durante as Olimpíadas, já era usada em jogos de beisebol. Em eventos testes, o monitoramento foi direcionado para o uso de máscara pelos espectadores. Assim, era possível detectar quem era cada um, se utilizava corretamente a máscara e em que momento a retirava e por qual motivo. Além disso, era possível até mesmo acompanhar se os espectadores respeitavam o distanciamento recomendado para a não transmissão do novo coronavírus.
O monitoramento foi tido como mais um sucesso. E por muito tempo visto como um dos grandes responsáveis pela relativa baixa de casos de Covid-19 durante os Jogos. Entretanto, somente depois, noticiou-se que o Japão e o Comitê Olímpico esconderam e não revelarão a quantidade exata de pessoas infectadas no evento.
Na França, há algumas opções disponíveis no mercado baseadas na tecnologia olímpica de monitoramento. Operam de maneira semelhante, são instaladas às câmeras e emitem alertas de suspeita nos smartphones dos seguranças que trabalham no local. "SuspectTracker", da empresa Anaveo, foi desenvolvido com o propósito de monitorar "comportamentos suspeitos" como "gestos de um ladrão" em direção a um bolso, mochila ou jaqueta. Os movimentos classificados como "comportamentos suspeitos" são armazenados em um banco de dados e alimentam algoritmos do software. Semelhante ao "Retail solutions", da start-up Oxania, que também monitora "comportamentos suspeitos", "gestos associados a ladrões", assim como "situações perigosas" e possui um banco de dados dos clientes. A versão parisiense, da start-up Veesion, vende um produto cujo reconhecimento gestual funciona por meio de "um algoritmo que possui vários blocos que funcionam juntos e podem dizer a qualquer momento se houve um gesto que pode estar associado a furto ou não. Há um bloco que localiza o humano, outro que localiza os membros desse corpo humano, outro que localiza os objetos de interesse, o carrinho de compras, uma bolsa, a própria prateleira, os itens que saem da prateleira. E esses blocos trabalham juntos para dar uma probabilidade de roubo a cada momento. Em seguida, os funcionários da loja contam com um aplicativo móvel que recebe os vídeos assim que detecta um gesto suspeito", explica o diretor da empresa Veesion. Os produtores da Veesion acrescentam, ao marketing do produto, sua relevância no momento de "crise" causada pela "pandemia".
Na França, mesmo com declarações contrárias à medida, as empresas conseguiram instalar medidores Linky nas residências. Esses medidores são capazes não só de medir o uso da internet, mas também de coletar informações sobre os hábitos, condutas e movimentos dos moradores. Além disso, o sistema articula o monitoramento dos movimentos domésticos com o controle do espaço urbano cruzando dados (biométricos e comportamentais) de câmeras com tecnologia de reconhecimento facial biométrico, já utilizadas experimentalmente nos aeroportos de Roma Fiumicino, Milano Linate e Malpensa, drones que controlam áreas urbanas, bilhões de objetos transmissores, sensores, microcélulas e milhares de novos satélites que transmitem informações incansavelmente para o espaço.
Em Gênova, desde 2020, as entradas do Porto Antico são monitorizadas com cinco câmaras de última geração adquiridas no mercado pela Leonardo, que permitem controlar os acessos e evidenciar anomalias. A velocidade de processamento do 5G permite que vídeos em alta resolução sejam transmitidos para os data centers. Ali, algoritmos de análise de vídeo baseados em inteligência artificial permitem calcular o número de pessoas e a densidade em uma determinada área para identificar se há algo considerado perigoso.
Na Itália, anarquistas alertam sobre os projetos em andamento de teste de 5G em cidades futuramente smart. Um exemplo é o teste no porto de Livorno. Trata-se de um projeto amplo chamado "Corealis, porto do futuro", que atinge também os portos de Valência, Pireu, Anvers. O experimento começou como parte do programa 5G para a Itália, uma plataforma criada em 2016 pela Ericsson e TIM e envolve indústrias, universidades e instituições públicas para o desenvolvimento de tecnologias de comunicação móvel de quinta geração. O programa baseia-se na utilização de tecnologias inovadoras como a Internet das Coisas (IoT), análise de dados de nova geração e sistemas de gestão de tráfego. E esse fluxo de dados só é possível em conjunto com redes 5G. Assim, testam-se serviços avançados de monitoramento, como os reconhecimentos biométricos para identificar portuários e pessoas em trânsito, boias equipadas com dispositivos impermeáveis e sensores para monitoramento ambiental da área portuária, guindastes de controle remoto, sistemas para rastreamento em tempo real de operações logísticas e câmbio massivo de informação entre as várias infraestruturas.
Ainda está em teste e aprimoramento a aceleração de carga e descarga de mercadorias, controle remoto dos sistemas logísticos da área e interligação de câmeras para controle. Estas são apenas algumas das inovações que foram introduzidas no porto com a rede 5G. A rede garantirá velocidade máxima e representa a plataforma ideal para comunicações padronizadas sem interrupção. O seu sucesso está em transformar tudo e todos em dados: não distingue veículos, seres humanos e sensores implantados, pois todos compartilham a mesma tecnologia de acesso. O objetivo é transformar a logística de transporte com soluções que permitam uma atividade contínua.
Além disso, não há dúvida que a chamada pandemia acelerou o investimento no setor tecnológico e generalizou o uso desses aparatos, além de aumentar, enormemente, suas lucratividades e o número de usuários. Smartphones, GPS, câmeras de rua, transações bancárias foram utilizados para controlar a circulação de pessoas em localidades sob estado de sítio. Smartphones, computadores, transações bancárias eletrônicas, redes sociais, aplicativos de trocas de mensagem e chamadas de vídeo garantiram, simultaneamente, a continuidade da produção e do consumo, da circulação de dinheiro e mercadorias, da escolarização e dos empregos (de alguns, ao passo que aumentou ainda mais o contingente de desempregados e "autônomos; estes últimos correram para trabalhar nos aplicativos de entrega e serviços de transportes com carro particular). Sem energia elétrica e sem internet nada disso seria possível. O planeta teria parado, em vez de se acelerar e recrudescer.
Perseguições
Anarquistas que vivem em Besançon, na França, cidade de nascimento de Proudhon, mostram que desde março de 2020, no auge da disseminação do novo coronavírus na região, as ações diretas contra antenas de telecomunicação, empresas envolvidas nesses negócios e tecnologias de monitoramento, intensificaram-se e expandiram para além deste país. Os ataques não cessam mesmo diante da perseguição, repressão e aprisionamento de pessoas categorizadas como suspeitas de tomarem parte nestes ataques.
As operações policiais contaram com o velho método de denúncia e tortura para a coação e participação nas investigações. Houve também gente que aceitou cooperar com o Estado se infiltrando em lugares e eventos de militantes anarquistas, identificando as relações e associações entre grupos e individualidades, repassando informações sobre táticas e planejamentos, monitorando e identificando perfis cujos policiais definem como "potenciais sabotadores, pessoas com maior carisma e veemência" (a mesma busca de sempre por lideranças...).
A isso acrescentou-se uso de: identificador IMSI (International Mobile Subscriber Identity), escutas telefônicas e rastreamento de geolocalização; a instalação de: câmeras em frente à porta da casa de suspeitos, GPS sob os carros de suspeitos e de pessoas próximas. Polícias especiais foram designadas a seguir suspeitos e invadir suas casas sem deixar rastros, implantando microfones, assim como em locais públicos nos quais os suspeitos e amigos se encontravam.
Operação policial semelhante a essa foi realizada para caçar Boris, anarquista acusado de incendiar duas antenas em Jura, na França. Ele foi preso em setembro de 2020. Após sua prisão, em Besançon, ao menos duas pessoas foram intimadas pela polícia. Quatorze pessoas foram detidas como suspeitas de nove ataques incendiários a repetidores de sinais em Alsacia. Quatro foram condenadas pelo incêndio em um repetidor em Douai.
Antes de Boris ser detido, em junho, vieram as primeiras reações. Em Contes, dois libertários foram pegos ao tentarem entrar em uma propriedade da companhia de telecomunicação Free. Ações diretas nesta propriedade ocorreram outras vezes, com o corte de cabos e interrupção de sinais. As autoridades francesas mobilizaram as polícias de Nice e Marseille para emboscarem xs anarquistxs. Dois foram presos e acusados de "danificarem propriedade de terceiros por meios perigosos" e "associação criminosa". Em Lille, no fim de junho, cinco pessoas foram detidas após serem identificadas em imagens de câmeras de segurança nos arredores de uma antena 5G, incendiada em maio. Acusadas de "protestos violentos", "destruição de propriedade" e "associação criminosa".
O caso de Boris é o que ganhou maior notoriedade nesta leva de operações policiais que intentaram — sem sucesso — coibir ações diretas contra-antenas, repetidores de sinais, cabos de fibra ótica, estações de energia elétrica, propriedades de investidores em projetos smart city (como carros e motos elétricas, por exemplo). Encarcerado em setembro do último ano, Boris era acusado de queimar duas antenas 5G na montanha Mont Poupet, em abril do mesmo ano, na França. Como "prova" as autoridades declaram terem encontrado seu DNA em uma tampa de plástico achada no local.
Em março de 2021, Boris foi condenado a quatro anos de prisão por incendiar as duas antenas. Quatro anos que se somam aos 6 meses em que esteve preso durante o processo judicial. Em junho, da cela onde estava encarcerado na prisão de Nancy-Maxeville, ele escreveu uma carta em que assumiu e situou, contundentemente, as ações diretas contra-antenas. "A teia tecnológica, que cobre todos os territórios, se espalha a toda velocidade e aperfeiçoa seu funcionamento com a nova rede 5G, fazendo aceitar um tanto de novas normas sociais impostas pelo Estado, sob as recomendações e a bênção de médicos e cientistas. Assim como um tanto de produtos e medicamentos que mantêm a população sensata e dócil, as telas desempenham um papel importante para que o maior número de pessoas aceite o confinamento. (...) Não foi apenas contra a tecnologia 5G que agi. O tecnototalitarismo impõe seus planos macabros a todo vapor, reforçando e melhorando suas infraestruturas já existentes. É claro que o 5G exigirá a instalação de uma infinidade de miniantenas em todos os lugares para acelerar o fluxo de dados de informação e assim, permitir, por exemplo, conectar todos os objetos da vida diária (...) auto-isolamento, exploração em casa com teletrabalho, abandono do contato tátil entre nós, onipresença de telas pequenas e grandes em nossas vidas, isso é o futuro próximo que está tomando forma. (...) São tantos os motivos pelos quais faço parte daquelxs que, ao primeiro ressoar do Estado e da ordem sanitária, se recusaram a se encerrar em casa e saíram para atacar diretamente um dos pilares da dominação. Cabeças erguidas, corações em chamas! Viva a anarquia!"
No dia 7 de agosto, a cela em que Boris estava trancado ardeu em chamas. Desde então, ele está internado em coma induzido. Os carcereiros falam que nada "prefigurou seu gesto" e que "essas são coisas que não dominamos". Foram parabenizados por outras autoridades e pela imprensa por sua "capacidade de responder a este evento".
Seja lá qual foi a mão que acendeu o fogo na cela de Boris, o Estado, a prisão, cada carcereiro, cada polícia e cada defensor da sociedade que sustenta tudo isso carregam consigo um pouco de fedor do corpo tostado de Boris.
Xs anarquistas que anunciaram a terrível notícia não titubearam: "a prisão é um sistema institucionalizado de tortura e o Estado — da polícia à justiça e à prisão — é o responsável direto por essa situação. (...) Que a tristeza se transforme em raiva contra toda autoridade". Ácratas e amigxs de Boris, reiteraram em outra ocasião na imprensa digital anarquista: "quaisquer que sejam as circunstâncias deste incêndio, a única certeza é que a administração penitenciária, a justiça, seus lacaios e seu mundo são os responsáveis. É claro que, no mundo prisional, esses 'acidentes' são frutos da violência do Estado. Esta situação é consequência da tortura institucionalizada. Onde os corpos são trancados e seus movimentos escrupulosamente monitorados, atear fogo à cela às vezes é o último meio de gritar a insubordinação ou angústia".
No dia 20 de setembro, quando completava mais de um ano de seu encarceramento, ocorreria o julgamento do recurso aberto por seus advogados. Boris não pode comparecer. Segue internado onde foi colocado em coma induzido na ala de queimados. O juiz decidiu então "liberá-lo", até "segunda ordem". Não há como "liberar" Boris. Em 20 de outubro, Boris começou a sair do coma induzido, mas permanece preso a uma maca, com grande parte do corpo atingido pelo fogo iniciado na cela onde estava encarcerado e incomunicável. A prisão e a justiça deixaram sua marca nefasta e irreversível em sua existência.
As autoridades, na França e em outros países, estão acuadas e temerosas. Se buscaram fazer de Boris, por meio de sua prisão, um exemplo para conter as ações diretas antimonitoramento, não obtiveram o efeito esperado. Pelo contrário.
As ações anarquistas não formam uma unidade e são diferentes e heterogêneas em todos os cantos do planeta. Elas respondem às urgências de cada momento e nem sempre são combativas, mas por vezes conciliatórias com grupos de esquerda. Assim, no Brasil, onde o governo federal não implementou medidas como o isolamento social, lockdown ou toque de recolher — vinculadas intrinsecamente ao uso de tecnologias de monitoramento —, ficando estas decisões a cargo de gestões estaduais e municipais, há uma outra relação de forças em jogo. Entre a esquerda e os críticos há um discurso sobre "o" governo que deixa a população à própria sorte para se infectar e morrer. Aparece como oposto à ciência e ao saber médico. Contudo, ainda que inicialmente tenha se posicionado de forma avessa ou dúbia em relação à vacina, o governo federal defendeu e propagandeou o uso de drogas da indústria farmacêutica como o "kit covid" e o "tratamento precoce". Situa-se em disputas do próprio saber médico e dos negócios das gigantescas farmacêuticas, não em confrontos mais ou menos abertos.
Frente a isso, há no Brasil muitxs anarquistas defendendo a ciência, a vacina, a indústria farmacêutica, o sistema de saúde pública... neste ponto, acabam por se misturarem à esquerda. Algo que libertárixs que vivem no velho mundo constatam ser uma adesão à noção de progresso, atrelada diretamente ao desenvolvimento científico e tecnológico e não se expõem a serem considerados subalternos da esquerda na luta contra a declarada direita governamental.
R A D. A. R
Counter Surveillance Resource Center
"A guide to putting Toulouse's cameras into early retirement"
"To (try to) keep the cops at bay"
"Por qué quemé las dos antenas del Monte Poupet"
"It's not just their techno-surveillance tools in our lives, it's the lice too"
"Quatorze mises en examen pour neuf incendies d'antennes-relais"
"Des dures condamnations pour les deux incendiaires"
"El neo-totalitarismo tecnológico"
"Automatización, robótica y trabajo en la 4ª y 5ª revolución industrial por 'the uncivilized'"
"Reforzar las perspectivas antidesarrollistas para evitar el conspiracionismo"
"Contra la tarjeta sanitaria virtual y la dictadura tecno sanitaria"
Metrô de São Paulo: reconhecimento facial
Brasília: reconhecimento facial
Observatório ecopolítica n. 73: manifestações pelo planeta [parte 1]
Observatório ecopolítica n. 74-75: manifestações pelo planeta [parte 2]
Observatório ecopolítica n. 76-77: manifestações pelo planeta [parte 3]
O observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br
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