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Paisagens
Texto e seleção de imagens: Ricardo Abussafy de Souza*
Eu sou a beira do mundo.
Estamira
ekatina... um diário de bordo
Em uma das beiradas do país, ao norte do Estado do Amazonas, a aproximadamente mil quilômetros de Manaus, subindo toda a extensão do Rio Negro, está São Gabriel da Cachoeira. A região é denominada também como “Cabeça do Cachorro”, por conta do desenho que forma suas demarcações limítrofes. É o terceiro maior município brasileiro em extensão territorial, com mais de 109 mil quilômetros quadrados de área e pouco mais de 43 mil habitantes, dos quais metade reside na zona rural. A região faz divisa com Venezuela e Colômbia, fator que traz certa importância geopolítica, confirmada pela presença crescente de militares.
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São Gabriel é uma área marcada por concentrações específicas. Conhecido como o mais indígena dos municípios brasileiros, abriga 23 diferentes povos indígenas em mais de 550 comunidades, tendo mais três línguas oficiais além do português (nheengatu, tucano e baniwa).
Os militares e seus familiares ocupam não apenas grande área, como também grande parte da vida na cidade, constituindo grandes bairros conhecidos como vilas militares. A presença dos militares ainda justifica a instalação de um aeroporto controlado pelo exército que permite decolagem e pouso de aviões de passageiros civis duas vezes por semana.
Cortado pelo Rio Negro e suas inúmeras ramificações em meio à floresta amazônica, o município dispõe de toda a biodiversidade de fauna e flora características da região, obtendo ainda a maior concentração de águas negras do mundo.
São Gabriel da Cachoeira é ainda ponto de encontro e articulação de organizações não governamentais, como a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e o Instituo Socioambiental (ISA), conhecidos nacional e internacionalmente. Dentre os trabalhos destas organizações está a defesa dos direitos indígenas, e a promoção de debates e criação de mecanismos de proteção da biodiversidade e da sociodiversidade regionais.
Tais conexões permitem a entrada de um monitoramento não apenas militar, para a promoção de segurança das fronteiras e riquezas nacionais, mas também um monitoramento sobre os modos de vida da cidade e, principalmente, do trânsito entre as comunidades indígenas e a cidade. Portanto, concentração de militares, de cientistas sociais, de antropólogos, de biólogos, e toda a sorte de cavaleiros-da-ciência-para-inclusão-social-e-valorização-das-riquezas-naturais da região do Rio Negro.
A partir da atividade de tais organizações não governamentais, investimentos de ordem de promoção cultural e proteção ambiental são direcionados para o desenvolvimento de pesquisas, para a organização de encontros e para a construção de sedes institucionais em que as comunidades indígenas se tornam o mote (ou o pote de ouro) para viabilizá-los. O motivo ou a temática indígena, portanto, torna-se ponto de interesse militar, social, econômico e ambiental.
Mas não foi este o cenário do qual ouvi falar pela primeira vez sobre São Gabriel da Cachoeira. Estava em um encontro de cooperativas de catadores em Belo Horizonte, quando um grupo de Manaus citou que em São Gabriel da Cachoeira havia uma comunidade indígena que catava materiais no lixão da cidade: índios catadores.
De pronto comecei a mapear um modo de chegar até São Gabriel. Primeiro Manaus, onde, em conversa com catadores representantes estaduais do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, consegui o contato dos índios catadores de São Gabriel da Cachoeira; depois três dias de barco dormindo em rede, passando por Barcelos, primeira capital da Amazônia, e em seguida Santa Isabel do Rio Negro; por fim, cheguei ao destino final, aportando em um pequeno porto que em nada parecia com um porto, inclusive sendo menor e mais precário que o das duas cidades anteriores.
O primeiro dia em São Gabriel foi ao telefone. Primeiro com o representante dos índios catadores e depois com a secretária municipal do meio ambiente para agendar a visita à comunidade indígena e uma reunião com o representante do poder público. Tinha quatro dias de fôlego para as visitas e para vaguear pela cidade antes de partir de volta a Manaus de avião, caso contrário, seriam mais dois dias de espera até o próximo barco e mais três dias cruzando o Rio Negro.
Ao deambular pela cidade eram evidentes alguns recortes urbanísticos. Às margens do Rio Negro saltava à vista a estrutura turística, para os aventureiros que utilizavam São Gabriel como a última parada antes de adentrar trilhas em caminho para suas malparas de montanhas, como escalar o Pico da Neblina, realizar seus roteiros de ecoturismo, ou, até mesmo, passar um dia “turistando” por alguma comunidade indígena. A segunda camada urbanística era marcada pelas vilas militares, com sua convivência entre militares e seus familiares apartados do restante da cidade, com muros e centros de lazer próprios. A terceira camada, o centro da cidade, repleta de índios que deixaram as comunidades indígenas para viver no meio urbano e comerciantes provenientes de outras regiões do Estado, bem como, outros Estados do norte e nordeste do país, trazia enfim uma vida urbana comum de pequenos municípios.
À beira de São Gabriel da Cachoeira, entre o pequeno porto e a cidade, encontram-se, lado a lado, a comunidade indígena Boa Esperança e o lixão da cidade. A proximidade da comunidade com o lixão do município, separados apenas por uma estrada de terra, e a necessidade de gerar qualquer espécie de renda, levaram esses índios de periferia a avançar até o lixão para coletar materiais com objetivo de revender dentro do mercado da reciclagem. O trabalho diário dos índios, entre a horta e o lixão, marca o movimento de uma paisagem que pouco se assemelha à Amazônia da fauna e flora que habitualmente se faz ver e tantas vezes se problematiza.
Muitas das comunidades indígenas atuais na Amazônia em nada mais se assemelham às tradicionais tribos Boa parte destas comunidades são formadas por indígenas de grupos diferentes e se alocam próximas às cidades. O cacique agora é chamado de capitão, pois assim os militares tratam as lideranças comunitárias; as religiões evangélicas invadem seus cotidianos e crenças; e, se antes caçavam, pescavam, plantavam e produziam artesanatos, agora têm que se adequar a outros ofícios, já que as novas reservas indígenas são restritas em abrangência territorial e em possibilidades de caça. Dentre as novas funções desempenhadas pelos indígenas, resta-lhes a catação dos restos recicláveis das cidades.
Os índios catadores estão organizados na Associação de Catadores de Materiais Recicláveis Ekatina. Meus primeiros contatos telefônicos para chegar ao local foram com o secretário da associação. Em reunião com a diretoria desta associação, os cinco catadores ali presentes falaram sobre o galpão, composto apenas por algumas vigas que sustentam um telhado de folhas de zinco e sem paredes. |
Contam que possuem uma prensa de latinhas e uma caixa de força para ser ligada à energia que nunca chegou à comunidade. A construção do galpão e a compra dos equipamentos foram gerenciados pela Paróquia local, que captou o recurso em nome da associação, mas nunca apresentou os valores absolutos de investimento.
O ronco do motor do caminhão de lixo anuncia o momento em que os índios deixam a horta em direção ao lixão. Entre restos de comida descartados pela cidade e pelos alojamentos militares, entre moscas e cachorros, os índios baré e tucano entram fundo no lixo antes que o que ali sobrar seja queimado pela prefeitura municipal. |
Os índios, na atividade de catação, coletam apenas latinhas, único material com valor de venda. Isto porque, ao contrário do restante do país, a região amazônica não é cortada, em sua maioria por estradas, mas sim por rios. Para que os materiais recicláveis saiam do Estado é necessário transportá-los em barcos até a capital paraense, Belém, e dali seguir até as indústrias recicladoras que se concentram, em sua maioria, nas regiões sudeste e sul do país. O alto custo de transporte traduz-se em um déficit para realizar a reciclagem dos materiais e, sem a viabilidade econômica deste processo, os argumentos ambientais e sociais se dissipam rapidamente.
Assim, o único material que compensa garimpar no meio do lixo são as latinhas de alumínio que envazam bebidas alcoólicas e não alcoólicas. A escada de exploração é indicada pelo caminho da catação destas latinhas pelos índios catadores, até a indústria de reciclagem. As latinhas são vendidas para um comprador intermediário da cidade que coleta o material dos índios e de outros fornecedores como bares, supermercados e condomínios para levar de barco até a capital e vender para um intermediário ainda maior, responsável pelo transporte até Belém, e assim sucessivamente até chegar às indústrias recicladoras. O preço de venda destas latinhas, desde a atividade de catação dos índios até a chegada às indústrias de reciclagem, pode ser valorizado em cinco vezes em relação à venda inicial.
Ao final da catação, eles saem do lixão, mas o lixão não sai da convivência na comunidade. A fumaça do lixo queimado, ao sabor do vento, por vezes invade o cotidiano da Comunidade Boa Esperança e causa as características náuseas e dores de cabeça nas famílias indígenas.
Durante a reunião, os índios catadores apresentam o estatuto de constituição da Associação Ekatina. Dizem que aguardam investimentos para terminarem o galpão, que esperam investimentos para novos equipamentos, mas que o sonho ainda é terem energia elétrica para prensarem as latinhas e poderem vende-las a um preço melhor diretamente para Manaus.
Em reunião com a secretária municipal do meio ambiente – cujas instalações para executar seu trabalho resumem-se a uma escrivaninha, um computador com internet, um telefone e uma impressora –, ela afirmou que a gestão de resíduos vem sendo um tema crescente no município, mas ainda não dispõe de recursos específicos para a questão dos índios catadores.
Em contraponto, encontros nacionais e internacionais debatem sobre o desenvolvimento sustentável como uma nova ordem, sobre os novos modelos de gestão de resíduos e como incorporar o setor informal como inciativa de inclusão social no mercado de reciclagem.
Devido às últimas regulamentações nacionais acerca da gestão de resíduos, referendadas principalmente pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10), multiplicam-se os investimentos milionários. Alguns destes recursos financeiros são de natureza pública, como no caso do Programa CATAFORTE, que reúne financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Fundação do Banco do Brasil e Petrobrás. Outros investimentos são provenientes do setor privado, como os programas de investimentos em cooperativas de catadores das indústrias multinacionais usuárias de embalagens, em que algumas delas, como Coca-Cola, Nestlé e Danone, Pepsico, Unilever, dentre outras, compõem o CEMPRE (Compromisso Empresarial para Reciclagem). Todos estes investimentos têm o intuito de organizar, monitorar e desenvolver o setor da reciclagem, de modo que possa “absorver” o setor informal ao bom e velho sistema de mercado capital.
Embora motivados por discursos sociais, os recursos financeiros destinados às cooperativas de catadores de materiais recicláveis nos processos de formalização da gestão de resíduos sólidos fazem apenas sentido se apresentarem a tal relevância, não apenas ambiental, mas também social e, principalmente econômica.
Os principais programas de apoio às cooperativas de catadores estão aliados aos grandes aglomerados populacionais como capitais e cidades classificadas como aglomerados urbanos. Os estudos de metas para a área de gestão de resíduos sólidos apontam como objetivo a redução progressiva de embalagens destinadas a aterros e lixões. Mas, para tanto, é necessário atuar em municípios de grande porte, alcançando-se, assim, melhores resultados quantitativos em relação à destinação adequada das embalagens pós-consumo.
Os índios catadores da Associação Ekatina, com seu baixo índice de recolha de materiais, esperam o momento em que tais programas de investimentos cheguem a uma abrangência maior. Por ora, atuar em um município tão pequeno e de difícil acesso não justifica uma ordem de investimentos como os operados nos grandes centros urbanos nacionais.
Enquanto isso, a Associação Ekatina, após as devidas visitas técnicas, foi mapeada, regulamentada, está sendo monitorada, mas deverá esperar sua vez no cronograma de prioridades sociais, ambientais e econômicas estipuladas pelas agendas globais. Enquanto isso, os indígenas vão se transformando em catadores de lixo. É assim que eles são incluídos na sustentabilidade.
Ekatina, em nheengatu, significa alegria. |
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* Pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) e no Projeto Temático FAPESP Ecopolítica. Pós-doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, com a pesquisa “Lixo e as tecnologias de exportação da miséria”. Contato: abussafy@gmail.com.
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