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Zika e a sua medicalização

Seleção de imagens por Gustavo Simões
Texto por Salete Oliveira

 

Dezembro de 2015. O Ministério da Saúde, no interior do Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia no Brasil, lança o protocolo de vigilância sanitária para identificar e monitorar casos de microcefalia relacionados à Zika.


As microcefalias, como as demais anomalias congênitas, são definidas como alterações de estrutura ou função do corpo que estão presentes ao nascimento e são de origem pré-natal. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e literatura científica internacional, a microcefalia é uma anomalia em que o Perímetro Cefálico (PC) é menor que dois (2) ou mais desvios-padrão (DP) do que a referência para o sexo, a idade ou tempo de gestação (1–7). A medida do PC é um dado clínico fundamental no atendimento pediátrico, pois pode constituir-se na base do diagnóstico de um grande número de doenças neurológicas e para isso os médicos e outros profissionais de saúde devem estar familiarizados com as doenças mais frequentes que produzem a microcefalia e devem conhecer os padrões de normalidade para o crescimento do crânio. Em 22 de outubro de 2015, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco notificou e solicitou apoio do Ministério da Saúde para complementar as investigações iniciais de 26 casos de microcefalia, recebida de diversos serviços de saúde nas semanas anteriores à notificação. Por se tratar de evento raro e comparando com o perfil clínico e epidemiológico dessa doença no Estado, concluiu-se que se tratava de evento de importância para a saúde pública estadual. Desde então, o Ministério da Saúde apoiou e continua apoiando as investigações em Pernambuco e nos demais Estados da Região Nordeste, tendo notificado a OMS em 23 de outubro de 2015, conforme fluxo do Regulamento Sanitário Internacional (RSI). Naquele momento, uma das principais hipóteses sob investigação era a infecção pelo vírus Zika, potencializando a ocorrência de microcefalias e das demais causas conhecidas como outras infecções virais, exposição a produtos físicos, químicos ou fatores genéticos. Naquele momento, uma das principais hipóteses sob investigação era a infecção pelo vírus Zika, potencializando a ocorrência de microcefalias e das demais causas conhecidas.como outras infecções virais, exposição a produtos físicos, químicos ou fatores genéticos. Em 24 de novembro de 2015, foi publicada a “Avaliação Rápida de Risco – Microcefalia no Brasil potencialmente relacionada à epidemia de vírus Zika”, realizada pelo Centro de Controle de Doenças da União Europeia (ECDC). Neste documento, é relatado que a Polinésia Francesa notificou um aumento incomum de pelo menos 17 casos de malformações do Sistema Nervoso Central em fetos e recém-nascidos durante 2014-2015, coincidindo com o Surto de Zika vírus nas ilhas da Polinésia Francesa. Nenhuma das gestantes relataram sinais de infecção pelo vírus Zika, mas em quatro testadas foram encontrados anticorpos (IgG) para flavivírus em sorologia, sugerindo infecção assintomática. Do mesmo modo que no Brasil, as autoridades de saúde da Polinésia Francesa também acreditam que o vírus Zika pode estar associado às anomalias congênitas, caso as gestantes estivessem infectadas durante o primeiro ou segundo trimestre de gestação. Em 28 de novembro de 2015, com base nos resultados preliminares das investigações clínicas, epidemiológicas e laboratoriais, além de identificação do vírus em líquido amniótico de duas gestantes da Paraíba com histórico de doença exantemática durante a gestação e fetos com microcefalia, identificação de vírus Zika em tecido de recém-nascido com microcefalia que evoluiu para óbito no estado do Ceará, o Ministério da Saúde reconheceu a relação entre o aumento na prevalência de microcefalias no Brasil com a infecção pelo vírus Zika durante a gestação. No dia seguinte, 29 de outubro, mudou a classificação desse evento, no âmbito do RSI, para potencial Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII).2.


Um dos assuntos mais alardeados no último ano é o de bebês que nascem com microcefalia decorrente da contaminação pelo vírus da Zika. Entretanto, houve uma pequena notícia isolada, em meio à avalanche que se avoluma em torno do tema, que permaneceu assim, recôndita, evitada ou, então, naturalizada pela aceitação tácita de psiquiatrização da existência.


A pequena notícia veiculada no dia 17 de abril de 2016 intitula-se: “Um ano após 1º caso oficial de zika, microcefalia faz bebê tomar até Rivotril”.3

 

A notícia que segue ao título inicia o relato.

(...) chora. Chora sem parar, molhado de suor, mesmo usando apenas uma fraldinha descartável. Parece inchado. Chora aos berros na varanda da casa de quatro cômodos onde vive com a mãe, o pai e cinco irmãos, na Praia de Pau Amarelo, em Paulista, na região metropolitana de Recife. O calor é escaldante sob as telhas de amianto. Não dá para saber se o choro é por calor, fome, fralda suja ou dor. Já sabem, porém, como aquietá-lo. É só dar o remédio: a dose de Rivotril.4


Podia ser apenas um som de quem está vivo. Podia ser apenas o choro de um bebê. Esse modo, dentre outros, de dizer tantas coisas quando ainda não se sabe falar. Contudo, um bebê não fala, mas não cessa de dizer. E, também por isso, falar jamais vai ser sinônimo de dizer. Mas lá vem alguém que é tomado como quem sabe melhor e ensina aos outros o que é melhor para aquietar um bebê, ou, mais precisamente, fazê-lo parar quieto. Há gente que acredita e passa a repetir a mesma fala, os mesmos gestos, para fazê-lo parar quieto.


A notícia continua.


Ele tem microcefalia causada pelo zika, vírus transmitido pelo Aedes aegypti, o mesmo vetor da dengue e da chikungunya. Os primeiros casos da zika foram oficialmente notificados há um ano, em abril de 2015, na Bahia. Entre setembro e outubro, gestantes que tiveram a virose começaram a dar à luz bebês com cabeças menores. Dezenas. Centenas. Segundo o Ministério da Saúde, 1.113 casos de má-formação foram confirmados – 189 têm relação com o zika. Nesta semana, o Centro de Controle de Doenças (CDC) dos EUA afirmou que “não restam dúvidas” da causa. (...) chora no colo [da mãe]. A vizinha (...) pega o menino. Vira de frente. De lado. Balança. (...) vai sossegando. Agora, porém, ele olha para o vazio. Parece ausente. Está duro. Costas rígidas. Perninhas rígidas. Bracinhos retraídos. “Ele é assim. Nervoso. Meio durinho. É da doença. Mas o remédio acalma” (...). 5

 

“O remédio acalma”. Como não acalmaria? É um calmante (designado, por vezes, como ansiolítico). Acatou-se, calmamente, como inquestionável verdade que bebês com microcefalia são nervosos, arredios, incompreensíveis e, portanto, apresentam rigidez no corpo assim como não suportam o toque. Será? Parece que esta é uma corriqueira construção cômoda com respaldo político-médico-científico para validar a administração de um arsenal de medicamentos psicotrópicos e antiepiléticos que os acalmem, os façam parar quietos, os normalizem, os dopem e os façam parecê-los quase normais..

Da mesma forma, só que em sua face reversa, a medicalização psicotrópica e antiepilética de bebês, crianças e jovens que não possuem microcabeças ou microcéfalos também é farta, e se dissemina como recomendável prática precoce voltada à normalização dos normais. Trata-se nos dois casos do investimento de mão dupla em uma educação voltada para que eles se acostumem a se controlar e ser controlados. Não perturbem, não convulsionem. Nada mais oportuno em tempos de controles e seguranças.


 

No caso da microcefalia estão em jogo os cálculos políticos em torno da sua atribuída condição de incapaz, pelo que definem como déficit intelectual, absoluto ou relativo, de tornar-se capital humano de agregado valor. E, na ausência de microcefalia, encontra-se seu oposto complementar como capital humano de valor agregado, desde que ele não se degrade, perturbe ou convulsione.


E a notícia segue.


Rivotril e Neuleptil, ambos tarja preta, são apenas alguns dos medicamentos usados para controle de ansiedade que foram adotados nos primeiros meses de vida de bebês para aplacar o choro. “São crianças com alterações neurológicas, e quem tem esse tipo de alteração costuma ser mais irritado”, diz Danielle Cruz, coordenadora do Laboratório de Microcefalia do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip). “Alguns são calmos, mas outros a gente só acalma com remédios”. Rivotril ganhou espaço porque tem a versão em gotas. “A gente precisa ir tateando até achar a quantidade certa”.6


 


O Rivotril foi lançado em 1973, inicialmente como antiepilético, e obteve um rápido crescimento de consumo por parte dos executivos devido a seus efeitos calmantes, passando a ser utilizado como “redutor de ansiedade e depressão” e “promotor de maior produtividade”. Ganhou cada vez mais adeptos e faz parte do grupo dos benzodiazepínicos, tais como Lorax, Diazepan e Lexotan, que derivam dos medicamentos benzo, provenientes da década de 1950, que viriam em grande parte substituir o Gardenal. O Rivotril é um dos medicamentos mais consumidos no Brasil, independente da faixa etária, do estrato social e da ocupação exercida, devido a seu baixo custo e seu alto valor calmante. O Brasil é o país que mais consome Rivotril no planeta e sua venda aqui ultrapassa a do analgésico Dorflex e da pomada para assaduras Hipoglós.7


 
 
 

 


Aos 8 meses, (...) acompanhada pela equipe do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, ela toma Trileptal. A mãe (...) não se conforma. “Minha filha era agitada, mas comia bem e eu conseguia fazer nela os exercícios que a fisioterapeuta ensinou (...). Desde que começou a tomar o remédio, só dorme e vomita muito, mas, se eu não dou, me arrependo logo, porque aí os tremores e o choro ficam fortes.” (...) ninguém, nem especialistas, sabe que limitação a microcefalia vai causar e qual tratamento será o adequado. [Outro bebê] de 5 meses, [conta a mãe] chora muito, mas não toma remédios, sorri para ela, faz fisioterapia. Ainda assim, ela vive tensa. “Eu não sei o que ele vai ter quando acordar amanhã”.8

 


E quem sabe? Ninguém. Viver nunca foi uma questão de saber. Viver é muito perigoso. O desconcertante, perturbador e convulsionado de uma existência livre não cabe e jamais caberá em caixa alguma. Muito menos numa caixa de medicações ou numa caixa craniana..

 

 

Fonte:


1 Pesquisadora no Nu-Sol e professora no departamento de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Contato: peemanki@yahoo.com.br.


1 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika. Brasília: Ministério da Saúde, 2015.
http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2015/dezembro/09/Microcefalia---Protocolo-de-vigil--ncia-e-resposta---vers--o-1----09dez2015-8h.pdf


2 Pesquisador no Nu-Sol e doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Contato: gusfsimoes@gmail.com.


2 Idem, 2015: 12-13.


3 http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,um-ano-apos-1-caso-oficial-de-zika--microcefalia-faz-bebe-tomar-ate-rivotril,10000026444


4 Idem.


5 Idem.


6 Idem


7 Ver http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2012/11/1183441-pesquisa-revela-remedios-mais-consumidos-pelos-brasileiros.shtml ; http://correio.rac.com.br/_conteudo/2014/05/capa/nacional/176661-genericos-conquistam-os-brasileiros.html


8 http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,um-ano-apos-1-caso-oficial-de-zika--microcefalia-faz-bebe-tomar-ate-rivotril,10000026444


 
 
Sobre Black Block nos movimentos, ver: Ned Ludd (org). Urgência nas ruas. Black Block Bolc, Reclaim the Streets e os Dias de Ação Global. Tradução de Leo Vinicius. São Paulo: Baderna, 2002. A. K. Thompson. Black Block, White Riot. Antiglobalization and the genealogy of dissent. AK Press: Oakland, 2010; Mark Bray. Translating anarchy. Zero Books: Winch ester-Washington, 2013.
 
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