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Paisagens

texto e seleção de imagens: eliane knorr, gustavo simões, sofia osório.

indicação de verbete: edson passetti

 

oguata: derrubando as cercas pelo fim das violências do Estado contra a existência dos guarani-kaiowá.

 

Essa terra não é dos brancos. É nossa e de nossos antepassados, bradou imediatamente um índio velho guarani-kaiowá, após o despacho da Justiça Federal ordenando que os índios abandonassem suas próprias terras retomadas de proprietários no Mato Grosso do Sul.O grito foi acompanhado de carta dirigida ao Estado brasileiro e que circulou por vários cantos do planeta, na qual os guarani-kaiowá do tekoha Pyelito Kue/ Mbarakai afirmaram que resistiriam com a própria vida para permanecerem ali, às margens do rio.

 

As mobilizações geradas pela carta e a vitalidade do posicionamento dos guarani-kaiowá não expuseram, mais uma vez, somente as infindáveis violências cometidas contra a vida dos índios no Mato Grosso do Sul. O acontecimento expôs também a velha articulação tramada entre o Estado e os proprietários, no extermínio de certos índios, por meio das emboscadas de jagunços, trâmites na justiça, prisões.

 

No caso específico dos guarani-kaiowá, essa violência se acentuou a partir da segunda metade do século XIX. Já no final desse século, certos guarani-kaiowá não puderam dedicar-se ao oguata, palavra que designa caminhar e que é valorizada por esses povos precisamente por afirmar suas existências pelos deslocamentos constantes pelo interior das matas. O oguata não pôde mais ser praticado, pois, as violências cometidas pelo Estado se ampliaram facilitando e intensificando os investimentos de proprietários apropriadores de terras dos índios nas fronteiras do Brasil com o Paraguai.

 

Em 1892, o empresário Thomas Laranjeira solicitou ao Governo Federal o arrendamento de terras localizadas ao sul do estado de Mato Grosso visando a exploração da erva mate. Para além de forçar o deslocamento de inúmeros índios, o estabelecimento da Cia. Mate Laranjeira disseminou variadas doenças entre os guarani-kaiowá.

 

Seguido à exploração da erva, de 1915 a 1928, o denominado Serviço de Proteção ao Índio (SPI) iniciou o processo de confinamento dos guarani-kaiowá, explicitando, sob a rubrica da "proteção", a articulação entre o Estado e proprietários para a exploração das terras indígenas no Mato Grosso. Passado pouco tempo da delimitação das reservas, a ditadura de Getúlio Vargas prosseguiu com a política de confinamento iniciada pelo SPI e em 1943, avançando com o que denominou de "Marcha para o Oeste", criou, no interior das terras dos índios, a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND).

 

Vargas escancarou o Mato Grosso para que posteriormente, a partir do governo de outra ditadura, instaurada no Brasil em 1964, proprietários utilizassem as terras da região para a produção de soja em larga escala.A política de extermínio dos índios adotada pela ditadura civil-militar ficou exposta pela construção do "Reformatório Krenak", localizado numa fazenda da Polícia Militar de Minas Gerais e onde estiveram presos aproximadamente uma centena de índios no final da década de 1960. Ao mesmo tempo em que a prisão para índios foi erguida, as últimas aldeias de guarani-kaiowá, espaços em que certos índios ainda resistiam fora das reservas, nos fundos de fazendas, próximos aos rios e matas da região, foram aniquiladas pela expansão das propriedades.

 

Durante a segunda metade dos anos 1970 e 1980, a criação do Pro-Alcool e dos consequentes subsídios às plantações de cana, fez com que a terra vermelha dos índios seguisse utilizada para o enriquecimento de proprietários e do Estado, muitas vezes com a arregimentação para o trabalho dos próprios guarani-kaiowá.

 

Contudo, após quase cem anos de confinamento, nos anos 1980, década conhecida pela "abertura política" e ocaso da ditadura civil-militar, bem como pela criação do estado do Mato Grosso do Sul, certos índios iniciaram o que denominaram de movimento de retomada das terras. A partir desse instante, cresceram exponencialmente as mortes de lideranças e estupros de mulheres guarani-kaiowá.

 

Nas décadas seguintes, isto é, as da consolidação democrática brasileira, as mortes não cessaram, pelo contrário. Nos últimos oito anos, mais de duzentos índios foram mortos no Mato Grosso do Sul. O confinamento dos guarani-kaiowá pelo Estado permanece ainda hoje em plena democracia devido a sobrevivência das oito reservas criadas pelo SPI há um século, as prisões, a vida entre as cercas de arame farpado das fazendas, as migalhas de cestas básicas e outros serviços prestados pelo governo.

 

Permanece o confinamento até mesmo quando certos índios abandonam as reservas, espaços onde a prática do oguata é impossível, para viverem na beira das estradas ou aceitando os limites das periferias de cidades como Dourados.

 

O confinamento permanece, sobretudo, onde ele é mais violento e abominável, isto é, na submissão dos índios ao investimento do Estado em introduzir órgãos de poder, como a nomeação de "capitães" às lideranças indígenas e a formação da chamada "polícia indígena" no interior das reservas.

 

Os guarani-kaiowá são marcados pelo oguata, deslocamento. É pelo caminhar que as relações entre grupos familiares se estabelecem, e é assim, também, que se pode garantir o cultivo de suas roças. O extermínio sistemático de povos indígenas garantiu não só o espaço necessário para a produção agrícola, sustentáculo da economia brasileira em âmbito internacional, como também a força de trabalho para seu empreendimento.

 

Diante do insuportável deslocamento, que não respeita fronteiras e o poder de chefes de Estado, a criação de áreas indígenas possibilitou a apropriação privada de terras. Neste processo, desconsiderou-se arbitrariamente a relação entre os grupos indígenas e o espaço habitado. Em nome do desenvolvimento capitalista, sustentável ou não, limita-se o movimento destes povos a uma reserva demarcada.

 

Se a partir de meados dos anos 1970 e 1980, com o aumento da população indígena no interior das reservas e intensificação das violências nesses espaços, o confinamento dos índios no Mato Grosso do Sul passou a ser questionado, hoje, um século depois das reservas demarcadas pelo SPI, a sobrevivência dos guarani-kaiowá permanece enredada nos debates acerca da demarcação e homologação de Terras Indígenas.

 

Limitam-se os índios à possibilidade de se viver trancafiado nas fronteiras de um território, encurralado em meio à Constituição e os infindáveis recursos que arrastam o processo de demarcação, tudo para que a circulação do capital seja preservada.

 

Desde a segunda metade do século XIX, o confinamento e as violências do Estado sobre os índios guarani-kaiowá arruinaram milhares de existências. Todavia, mesmo diante da força do Estado ainda ecoam as palavras da afirmação do velho índio sentado sob o tronco de uma árvore. Essa terra não é dos brancos. É nossa e de nossos antepassados. Para os guarani-kaiowá, palavras são como a extensão do próprio corpo, das histórias dos antepassados, do próprio chão vermelho em que pisam. Enquanto afirmações como essa vibrarem no ar, a possibilidade, mesmo que rara, de praticar o oguata, segue existindo. As palavras do velho índio indicam que certos guarani-kaiowá seguem em movimento, liberando-se das reservas, retomando certas terras, espalhando-se pelos campos, derrubando as cercas.

INDÍGENA, adj. (do latim indigena; de indi ou endu, no interior, no país; e de gena, nascido; do inusitado geno, eu gero, que se relaciona à raiz sânscrita gan, gerar, produzir).

Que é originário do país, da região; que lhe é exclusivamente próprio. Planta indígena; produção indígena. Subs., pessoa originária do país; "Os indígenas da América". As migrações periódicas dos povos nômades, as migrações acidentais das populações fugindo da fome ou dos cataclismos naturais, as guerras de todo tipo, as colonizações, o comércio, etc., criaram incessantes trocas de populações e misturas de raças, sendo assim quase impossível determinar atualmente de modo científico o grau real de indigenato de um indivíduo. Portanto, o indígena é algo totalmente relativo. Parece claro que um francês é indígena da França, um espanhol da Espanha, um argeliano da Argélia, etc., mas isso corresponde à realidade apenas de forma convencional, administrativa. Invadida por vinte tribos que permaneceram por mais ou menos tempo em seu solo, tendo mesmo se fixado nele, a França, por exemplo, não poderia afirmar que seus habitantes são indígenas. Não mais, aliás, que a Espanha, habitada durante vários séculos por árabes e judeus; ou que os Estados Unidos da América, quase inteiramente povoados por emigrantes das cinco partes do mundo. Mas os Estados cultivam cuidadosamente os preconceitos relativos ao patriotismo, cuja base é o indigenato. É preciso denunciar incansavelmente a mentira da unidade nativa dos povos e das raças, para que só existam sobre a terra indígenas do mundo. ARISTEDE LAPEYRE

http://www.encyclopedie-anarchiste.org/articles/i/indigene
Tradução: Martha Gambini

 
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