Desde 2011, irromperam no Brasil as manifestações dos denominados escrachos aos torturadores, médicos e outros colaboradores da ditadura civil-militar (1964-1985). A procedência desta prática política emergiu, na América do Sul, com mais de uma década de antecedência, na Argentina, uma invenção do grupo H.I.J.O.S. (Hijos e Hijas por la Identidad e Justiça contra El Olvido e el Silencio).
Após o indulto concedido a torturadores e militares durante o mandato do governo de Carlos Menem, o grupo de filhos de militantes resistentes à ditadura, "desaparecidos" pela polícia e pelos militares, passou a articular intervenções públicas que visavam expor a residência e as ocupações profissionais, em plena democracia, dos serviçais da violência do Estado.
O estopim para a deflagração de tais ações foi o depoimento de um ex-oficial da Aeronáutica, ainda nos anos 1990, acerca dos chamados "vôos da morte", relatando a decisão da ditadura argentina de assassinar, sistematicamente, os homens e mulheres resistentes ao governo que se encontravam encarcerados na ESMA (Escola da Mecânica Armada). Foi sob o efeito de tais declarações, proferidas por Alfredo Scilingo, que os H.I.J.O.S. começaram os escrachos. Os "vôos da morte" consistiam em retirar os subversivos das prisões, sob o pretexto de remanejamento a outra penitenciária localizada no Sul, dopá-los com soníferos, para depois lançá-los com vida no mar. Diante deste comunicado público, certos jovens decidiram intensificar a militância política pela memória e esclarecimento do destino efetivo dado pelo governo aos seus pais e familiares.
Ultrapassando a exposição da residência de torturadores, militares, médicos legistas, já no final dos anos 1990, os escrachos tornaram-se também um movimento que aproximou os moradores dos bairros em que realizavam as ações visando, para além de escancarar o endereço, estimular também o não convívio com tais funcionários da ditadura. Nesse momento, os H.I.J.O.S. criaram festas e peças de teatro, distintas das tradicionais manifestações militantes pelo direito à verdade, animando nos moradores desses bairros a vitalidade em não mais servir pão, café, serviços de táxi, de entrega de jornais, entre outros, para colaboradores ativos com as violências do Estado perpetradas na Argentina entre 1976 e 1983.
A partir daí outros coletivos associaram-se aos H.I.J.O.S, também com o intuito de fortalecer os escrachos e resistir, no presente, à política de "tolerância zero" ou de "saturação policial" aplicada na província de Santa Fé e que se consolidava como política criminal de segurança em toda Argentina, já democratizada. Associações de jovens e os H.I.J.O.S. prepararam material para distribuição na porta de certas escolas com informações aos jovens e telefones de advogados de plantão para liberação em caso de detenção.
Um programa de rádio local também foi inventado para combater as ações policiais. Entretanto, no interior da articulação dos escraches, uma nova perspectiva ganhou força no início dos anos 2000. A partir de então, o clamor por justiça e punição passou a compor as ações do H.I.J.O.S., e em muitos momentos suplantou o inicial combate que emergiu como articulação da revolta contra o próprio Estado, as violências que este produz. De início, a forma de ação também visava a disrupção de um novo modo de ação política, que não poderia incluir os reclames por justiça punitiva.
Quinze anos depois da Argentina e quase uma década depois do Chile, onde ocorreram sob o nome de funa, os escrachos eclodiram no Brasil. Após algumas ações ocorridas em 2012, às vésperas da criação da Comissão Nacional da Verdade, as manifestações se fortaleceram.
Em diversas capitais, torturadores como David dos Santos e legistas como Harry Shibata e José Carlos Pinheiro foram alvos dos protestos. As ações explicitaram que os serviçais da ordem seguem com suas violências no presente, administrando empresas de segurança privada e exercendo cargos públicos. A partir do segundo semestre de 2012, depois da Rio+20, momento em que militantes presentes na "Cúpula dos Povos" articularam o escracho a Dulene Aleixo, ex-capitão de Infantaria do Exército, outras ações ocorreram em variados cantos do país. Aos poucos, os alvos também se ampliaram para além da corja canalha de policiais, torturadores e legistas.
Em Porto Alegre, o jornal Zero Hora foi escrachado por sua conivência com a ditadura civil-militar e, em São Paulo, o atual presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), José Maria Marin. Em 1976, Marin, ex-deputado estadual pela ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e vice-governador biônico de Paulo Maluf, incentivou a ação do Estado na repressão à equipe de jornalismo da TV Cultura. Na semana seguinte à exortação de Marin, o jornalista Vladimir Herzog foi preso e "suicidado" por agentes da ditadura. O escracho a Marin, articulado em redes sociais, teve sua página censurada pelo Facebook, explicitando que a rede ainda não suporta os ataques vitais ao que resta e persiste feito ranço da ditadura civil-militar no Brasil.
Os escrachos, que emergiram na Argentina, passaram pelo Chile e recentemente aconteceram no Brasil, expõem a afirmação da urgência de certos jovens em lutarem contra os efeitos da ubiquidade das violências de Estado durante as décadas de 1960 a 1980, na América do Sul. Entretanto, se os escraches e funas, em determinados momentos, intensificaram seus embates ao próprio Estado e às suas violências, no Brasil, tais ações também foram utilizadas recentemente para levantar "organizações", seus "programas" e "projetos" de luta. Ao contrário do percurso dos escraches na Argentina, irrompidos lentamente a partir da urgência daqueles que viveram na própria pele as feridas provocadas pela violência do Estado, não tardou para que rapidamente certos grupos reivindicassem a autoria das ações ocorridas em várias capitais brasileiras e propusessem organizar os protestos.
Procedente de grupos ligados à luta pela reforma agrária, porém, voltado para o fortalecimento do processo de organização da juventude urbana, um dos grupos que reivindicou a autoria dos escrachos no Brasil apreendeu a metodologia dos protestos irrompidos na Argentina visando torná-los uma das "bandeiras" de luta da juventude, mas submetendo sua contestação à construção de um novo projeto de esquerda popular no país. Autonomeada como "apartidária", a organização reclama o pertencimento dos escrachos ao que denomina de unidade das lutas de esquerda, tornando o protesto radical uma questão de agenda política, expondo com suas próprias palavras, relações com o Estado e a política centralizada. A sanha em assumir a propriedade dos escrachos não cessou, culminando no fim de 2012, em São Paulo, com a conexão entre grupos de artistas e militantes políticos que produziram o evento chamado "organizar o escândalo".
Escracho pode significar "fotografia do rosto". Em dicionários argentinos, porém, já é situado como ação política. No Brasil, em menos de seis meses, ganhou uma definição na Wikipedia. O registro nos léxicos mostra os efeitos decisivos desta prática política inventada por jovens insolentes que combateram para descobrir o destino que o Estado reservara a seus familiares nos anos 1970 e 1980. Portanto, seja em Buenos Aires, Santiago, São Paulo, Recife, cabe a quem se envolve nessa questão urgente não esquecer que é preciso avançar escrachadamente e que, do lado de baixo do equador, isso é muito mais gostoso gozando, cantando e dançando. E que o escracho, quando destinado aos poderosos, senhores do governo e da guerra, deve ser amplo, geral e irrestrito, afirmando, para além da denúncia, o desacato! Pois não se trata de produzir justiça para a preservação da memória, coisas pelas quais partidos e governos se digladiam, mas de expor descaradamente o que é impossível de organizar, a verdade como escândalo!
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