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Paisagens

Seleção de imagens por Mayara de Martini Cabeleira
Texto por: Edson Passetti

 

Jornadas de junho: o insuportável

 

Há uma passagem relevante produzida pela introdução do monitoramento no governo das condutas na sociedade de controle: ao mesmo tempo em que rapidamente se capturam resistências, se fortalecem os fluxos de participação.


As modulações são instantâneas, ágeis, se conectam e produzem agregações pelo compartilhamento. Mesmo sem deixar de lado as formatações partidárias e sindicais, fundamentalmente representativas, herdadas da sociedade disciplinar, as novas maneiras de monitorar agregam reivindicações sobre a falta de Estado e enfatizam demandas de saúde, educação e anticorrupção sintonizadas com as exigências da racionalidade neoliberal.


Combina-se o redesenho do trabalho em capital humano, situando a complementaridade entre o sujeito econômico localizado nas relações de produção, segundo seus interesses restritos, e sua interface como sujeito de direitos voltado para equacionamentos circunstanciais das desigualdades.

 

Vivemos um tempo em que se pretende consolidar desdobramentos das melhorias para as futuras gerações norteadas pelos programas da ONU e voltadas ao desenvolvimento sustentável com a programática dos Estados, que no Brasil articula modulações colocadas desde o governo Fernando Henrique Cardoso e continuadas nos governos Lula e Dilma.

Deste modo, estabelece-se um paradoxo entre o ritual periódico democrático eleitoral da representação, o governo do Estado por meio de coalizões, e os vácuos a serem preenchidos que pedem situações regulares de protestos.


Estes já tiveram sua fase antiglobalização e por uma nova globalização, que expressaram as defasagens entre a organização do capital e o capital humano, e que tomaram as ruas entre o final do século passado e o início deste século, situando o novo problema.

 

A crise de 2008 redirecionou os equacionamentos. Deu passagem a novos enunciados produzidos no interior destas lutas, que não se fundam mais somente em busca por direitos. Como toda crise, ela expõe os limites e ao mesmo tempo suas elastificações.

Desde então, os movimentos de protestos (Los Indignados ou Movimiento 15M, a partir da Puerta del Sol, Madrid, maio de 2011; Occupy Wall Street, desde o Zuccotti Park, Nova Iorque, setembro de 2011; ou mesmo a Praça Tahir, janeiro de 2011, Cairo-Egito) ganharam outras amplitudes que escancararam as situações relacionadas a direitos que vão do local ao nacional, procurando estabelecer outros fluxos de contatos e compartilhamento com o Estado. Porém, ao mesmo tempo, estabeleceram condições para a emergência do insuportável, como acontece na Grécia bem antes das chamadas medidas de austeridade do Banco Central Europeu e do FMI, em fevereiro de 2010.

Estabelecem-se duas situações que se entrecruzam nos protestos por melhorias que trazem por dentro e por fora o enfrentamento com o capitalismo por meio da participação e da contestação radical.

É a partir destes fluxos que pretendo mostrar um mapeamento de forças no interior das jornadas de junho 2013 no Brasil que ganharam surpreendente alcance por meio de uma reivindicação, que pode parecer simplória e ingênua, feita pelo Movimento Passe Livre em torno da redução de R$0,20 na tarifa do transporte público.


as forças...

 

O MPL não é recente, vem da década passada e sua aparição remonta a Salvador, Bahia, em 2003; é também um dos efeitos do Fórum Social Mundial de 2005, realizado em Porto Alegre, forma acabada que tomou o movimento antiglobalização.

É um movimento conectado às melhorias das condições de vida e se define autônomo, independente, apartidário; dispensa-se de lideranças, enfatizando as relações horizontais entre seus membros convictos e a possibilidade, ao médio ou ao longo prazo, de uma tarifa zero a partir da estatização do transporte privado.


Estes jovens voltaram às ruas em 2013 e trouxeram a possibilidade de contenção do aumento da tarifa, alcançado na efervescência das mobilizações sob os efeitos repressivos exercitados pela polícia, a comunicação constante pela mídia oficial e alternativa, a revisão da decisão pelas autoridades governamentais, o volumoso comparecimento de cidadãos, congregados previamente, agrupando-se a cada convocação, ou simplesmente estando ali.

 

Todavia, o que o MPL não previa e que ganhou as primeiras páginas dos jornais e revistas, televisões, equipamentos de comunicação eletrônica, e ultrapassou fronteiras convencionais, foi a variação no conjunto de forças que se configurou nos protestos.

As primeiras manifestações em São Paulo, acertadas previamente via redes sociais, orientavam também a inteligência da polícia a respeito do trajeto definido e hora de concentração e desfile; após a mídia noticiar haver no interior do movimento outros descontentamentos que se traduziam por ataques a fachadas de bancos, postos policiais e estações do metrô, o MPL manteve-se atuante até as autoridades governamentais recuarem no aumento da tarifa.

As manifestações dos radicais visavam à propriedade privada e seu consequente patrimônio que assume a feição histórica de público, ou seja, as edificações de uma mesma propriedade privada.

 

Do interior do movimento tomou vulto uma suposta facção identificada por autoridades governamentais, polícia, mídia e demais forças democráticas como violenta, cujas ações poderiam colocar em risco um movimento legítimo e pacífico, imediatamente chamada de vândalos.


O que se viu desde então contradisse essa síntese apressada. Exterior aos protestos, com base na estúpida avaliação sobre os destemperados no movimento, ergueu-se a força repressiva ostensiva, com seus infiltrados chamados de P2 e uma reviravolta da mídia em 13 de junho, não só devido às transmissões ao vivo que escancaravam a violência policial, contradizendo os editoriais que moveram a transmissão ao vivo, como a defesa do corporativismo jornalístico tomou o primeiro plano após alguns deles serem alvejados pelo equipamento policial dito não letal.


Convocavam-se os manifestantes pelos equipamentos móveis eletrônicos, mas não só. Seus fluxos se desdobravam em direção a alvos: os prédios públicos, as vias de trânsito, e principalmente a polícia. Uma comunicação constante e ágil deu passagem à mídia alternativa, ocupou as páginas de relacionamentos, provocou a avalanche de mensagens simultâneas.

 

Notou-se que no interior do movimento havia muitas forças. E que a demanda pelo rebaixamento da tarifa, alcançada rapidamente depois do embate provocado pela polícia com respaldo de autoridades políticas, era somente a parte mais visível deste conjunto em movimento, incapaz de ser imediatamente elevado à categoria do entendimento pelos conceitos de massa, ou mesmo de multidão. Deixemos esta convenção um pouco de lado, pois o que importa para esse momento é situar o insuportável ali enunciado.


Entre os militantes do MPL, novos e recém-adeptos, uma gama de forças ocupará o meio, enquanto na outra extremidade estarão os chamados vândalos, associados à tática anarquista Black Bloc 1.

Esta ação direta os marcou como prejudiciais às reivindicações pacifistas, ao próprio movimento, à estabilidade democrática, aos arranjos políticos representativos e apartidários, violentos, inconsequentes e alvos legitimamente investidos de consentimento para serem identificados, fichados, presos, marcados e julgados pela polícia e tribunais.

 

Antes de tudo, julgados pelo tribunal da opinião pública constituído de forças reativas, mídias, políticos, militantes, analistas constitucionalistas, especialistas em mobilizações e segurança pública, enfim, um contingente armado e desarmado capaz de constituir um tribunal com base na lei, na norma, na democracia segundo sua convencional interiorização, caracterizando o que se passava como a distinção entre o legítimo e a sustentação da legalidade e, por conseguinte, a ser combatido.

Pluralismo tem limites!, enfatiza o liberal juramentado. Tolice, nenhuma lei consegue adestrar a história.

Em um movimento não se deve esperar pelo dissonante provisório ou sua identidade progressista ou conformista, e muito menos que a orquestração do rebanho estará sob controle, seja por meio de lideranças ou de horizontalidades.

 

O que um movimento tem de vivo é sua capacidade de atrair as demais forças em estado latente para se expressar e situar, sejam suas reivindicações, sejam seus questionamentos radicais.

A fase dos movimentos identitários parece ter sido superada.

O movimento antiglobalização tornou os movimentos mais democráticos, livres e intensos. Ainda que as radicalidades tenham sido imediatamente identificadas e condenadas, relacionadas aos anarco-punks, ao Black Bloc, ou simplesmente aglomeradas na generalidade anarquistas, os anarquismos não acabaram com a Revolução Espanhola, não apareceram de modo efêmero em 68, não foram coadjuvantes do movimento antiglobalização e tampouco presentes nas jornadas de junho como forças estacionadas, anacrônicas ou debilitadas.

 

Foi justamente ao batizar os vândalos de anarquistas que a ordem policial, governamental, mídias e especialistas universitários ganharam projeção, cultivaram suas vaidades, renovaram suas convicções, identificaram os bandidos e pretenderam soldar como legítima a relação movimento e apartidarismo, cumprindo a meta de preencher o vácuo político representativo.

De certo modo o leque convencional de forças, à direita e à esquerda do Estado, procurou obter vantagens em nome de uma situação moderada.

Quais forças estavam em movimento? Sem dúvida, a mais importante foi expressa pelo MPL, mostrando que a convencional política partidária da representação necessita incrementar os demais encontros com a sociedade civil organizada para que novos arranjos sejam solidificados.


 

É muito importante para o Estado e para o sistema político saber realizar decisões com base nesta confluência de fluxos entre Estado e sociedade civil em que está em jogo ampliar e modular a participação democrática em função de saúde e educação, os desdobramentos previsíveis da racionalidade neoliberal.

O apartidarismo passou a ser tão importante quanto a mobilização partidária. Neste sentido, duas forças no interior do movimento se destacaram.

De um lado os partidários, geralmente identificados com partidos de esquerda com entrada ou não na coalização governamental e que estão e estarão presentes nos movimentos por solidariedade ou para angariar maior representatividade. Os partidários são partes constitutivas de movimentos amplos em direção ao clamor pela falta de Estado, principalmente em políticas públicas compensatórias.

 

De outro lado estão os fascistas que atuam como força repressiva contra os partidários e antipartidários, envoltos em bandeiras e gritos propositalmente apartidários, nacionalistas, estatistas e antidemocráticos. Funcionam no interior do movimento como parte complementar da polícia tentando inibir os partidários de esquerda e antipartidários como os nômades do Black Bloc; eles tentam se assemelhar aos apartidários, são patriotas juramentados e funcionam para conter o movimento e insistir em sua vida fascista, porém, não deixam de se proclamar adeptos de melhorias na educação e saúde.

No movimento crescem os alternativos, geralmente escudados em suas próprias mídias, propagandeando-se autogestionários, obscurecendo suas fontes de financiamentos. Eles são capazes de conectar os fluxos que se aproximam e fortalecer as relações entre a sociedade civil organizada e o Estado, situando seu pacifismo declarado de ocasião como o Anonymous e outros, e sustentando a tese do déficit de democracia participativa, como expressa a sequência de artigos esclarecedores produzida pela Editora Boitempo em companhia da Carta Maior intitulada Cidades rebeldes, lançada imediatamente em julho de 2013.

No movimento crescem os democráticos de variadas filiações partidárias e apartidárias, conectados a Twitter, Facebook, mídias alternativas, reuniões para lá e para cá mais ou menos oficiais com autoridades governamentais, engrossando o movimento e seguindo, em linhas gerais, pistas fincadas desde o Movimento pelo Impeachment do Collor. Está em jogo a democracia e não a propriedade.

 

Foi aí que de repente, mas não tão de repente como se supunha, reapareceram os antipartidários em seu interior: os Black Bloc, os anarquistas e os saqueadores.

No movimento, a população de rua, os que vagam pelo centro da cidade vindos de suas periferias, os desempregados, craqueiros e malucos em busca de bens de consumo, juntaram-se aos corpos em marcha. Em um primeiro momento, os saqueadores formaram junto com os indiscerníveis do Black Bloc o aglomerado identificado como vândalos.

Em duas ou três concentrações posteriores já não se noticiava mais a existência dos saqueadores, que desaparecem atraídos pelo anonimato do Black Bloc, agora identificados como anarquistas em geral; a seu modo canalizaram suas pulsões para os prédios privados do capital, preferencialmente bancos, e alguns prédios públicos além dos postos policiais.

 

O instante desta transformação, em São Paulo, talvez tenha ocorrido quando os manifestantes Black Bloc empurraram a guarda metropolitana para o interior do prédio da prefeitura da cidade.

O confronto com os prédios explicitou a diferença: a polícia defende a propriedade com todas as suas forças e com isso investe na agressão aos manifestantes em geral; o Black Bloc investe contra construções do capital e sua polícia; os fascistas defendem a propriedade e investem contra o corpo dos manifestantes partidários e antipartidários; os demais se assustam e correm, e no meio do caminho postam suas pacifistas arengas eloquentes.

O movimento ainda tinha suas patricinhas e playboys, o pessoal da pegação, usuários de transporte público dando sopa pelo trajeto, solitários abestalhados, mães e pais preocupados, gente disforme e quem sabe em busca de um uniforme, da aventura ou de um sentido. Tinha os mascarados com a carinha do V de vingança, comprada a granel nas lojas da Rua 25 de Março, brincando de incógnitos, de personagem, de manifestantes de vanguarda HQ.


Giravam desnorteados entre balas de borracha, cassetetes, tiros, bombas de gás lacrimogênio, sprays de pimenta, e tinham as suas máscaras e porções de vinagres tomadas pela polícia sob a argumentação de benefício pelo desarmamento. Mas não houve polícia para tocar nos encapuzados do Black Bloc.

 

não cessam.

 

As coisas não cessam e tampouco gente entra em movimento por uma só razão, ainda bem. O olhar para os movimentos mais recentes leva a traçar mapas e cabe a cada um, como navegador, escolher sua cartografia.

O que sabemos, mais uma vez, é que a história escapa dos conceitos prévios, da lei e da norma, e que são as forças que enunciam insuportáveis que produzem situações inéditas. Cabe ao analista situá-los, livre da convenção da lei, do que é proibido e do que deve ser obedecido, livre da suposta vontade geral.

Isso, obviamente, o analista não faz sem construir sua cartografia ou mapoteca.

Um movimento não é mais expressão de segmentos identificáveis, mas o epicentro das manifestações de forças políticas existentes. E estas escapam, se ajustam, enunciam que a vida livre, com horizontalidades e autogestão, está para além das capturas da terminologia libertária. É por ser preciosa que os libertários riem e combatem as supostas capturas. Inclusive a dos neoliberais para tentar fazê-la funcionar para seus espólios e que tentou sequestrá-la chegando a denominar-se anarco-capitalistas.

 

A palavra libertária é sinônima de anarquista, e foi inventada na luta, no final do século XIX, quando os anarquistas eram associados a terroristas. E, por se manterem livres, os anarquistas tampouco disputam com os analistas, entre os mais variados segmentos progressistas, a pertinência de suas práticas passadas no presente, agora ressignificadas — é esta a palavra da ordem, não? — em democracia participativa e seus eventuais déficits.

Os anarquismos são múltiplos e somente a convenção teórica tem artimanha dissimulada para confundi-los com fascistas ou habilidade para tratá-los no singular. São múltiplos, por vezes defasados e identitários, mas mesmo quando convencionalmente organizados, escapam das formalidades.

Seja pela sua história, sua atualização contundente na situação grega atual, pelos modos como surgiram nas jornadas de junho, enunciam o insuportável. E escapam dos monitoramentos. Não cessam!

 

 

 

 

 
Sobre Black Block nos movimentos, ver: Ned Ludd (org). Urgência nas ruas. Black Block Bolc, Reclaim the Streets e os Dias de Ação Global. Tradução de Leo Vinicius. São Paulo: Baderna, 2002. A. K. Thompson. Black Block, White Riot. Antiglobalization and the genealogy of dissent. AK Press: Oakland, 2010; Mark Bray. Translating anarchy. Zero Books: Winch ester-Washington, 2013.
 
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