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Paisagens

Texto: Edson Passetti e Acácio Augusto

 

O drama da multidão e os trágicos black blocs: a busca do constituinte como destino e a ação direta.

 

Edson Passetti
Professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, São Paulo, Brasil; coordenador do Nu-Sol e pesquisador principal no Projeto Temático FAPESP Ecopolítica. Contato: passetti@matrix.com.br.

   

Acácio Augusto
Pesquisador no Nu-Sol e no Projeto Temático FAPESP Ecopolítica. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SPPublicou, em co-autoria com Edson Passetti, Anarquismos e Educação, pela editora Autêntica, e é autor de Política e Polícia. Cuidados, controles e penalização de jovens, pela editora Lamparina. Contato: estadoalterado@yahoo.com.br

 

 

Há várias maneiras de ler o acontecimento jornadas de junho de 2013. Há uma extensa produção publicada, em diferentes perspectivas e pontos de vistas, em especial quanto às transformações marcadas no campo da política e da relação com a cidade. Esta análise situa-se em uma perspectiva singular e um interesse explícito. Acompanha os desdobramentos das jornadas de junho de 2013 de uma perspectiva anarquista e se interessa pela revolta como atitude antipolítica. Aponta para efeitos de teorizações que buscam um sentindo amplo e teleológico para as metamorfoses ocorridas, tanto em relação às tecnologias de governo e controle no planeta, quanto às intermitentes resistências. Diversos dos trágicos enfretamentos de rua ocorridos nas ruas de grandes capitais do Brasil situam uma dramática corrida pelo destino.

   
  1. em torno dos enfrentamentos e espetáculos nas ruas
   
 

Desde junho de 2013, vivem-se os efeitos de uma brecha de dimensões subjetivas e políticas que abre caminho para se colocar em xeque a própria política e as formas modernas de ação. Em especial, expondo a força da ação direta, de proveniência anarquista, mas também deixando em evidência as formas contemporâneas que institucionalizam as novas maneiras de participação política, nessa segunda década do século XXI, no contexto de um capitalismo renovado. Nesse sentido, interessam as ações táticas dos black blocs e as formas horizontalizadas dos newest social movements1, como traços marcantes e distintos das atuais manifestações, não apenas no Brasil, mas em todo planeta. Trata-se de uma análise de forças que se encontram em pleno movimento, o que faz desta exposição algo restrito ao que aconteceu até o momento, sem pretensão de indicar desdobramentos futuros.

 

 

Em linhas gerais, as ações táticas dos black blocs são da ordem do trágico: não buscam solução pacificadora, mas subvertem o modos aceitos de ação política para alertar o esgotamento da forma cidade como configuração espacial da vida e da sociabilidade contemporânea: produzem antipolítica. Os grupos de atuação e organização horizontalizadas, como o Movimento Passe Livre (MPL), são da ordem do drama. Identificam um enlace intrincado e, por meio de proposições e reivindicações, buscam uma solução pacificadora para ele e uma inserção institucional indireta: produzem uma nova política, no jogo atual de gestão governamental, compondo pressão popular e participação mais ou menos institucionalizada e/ou negociada.


 

Uma das características que mais chamaram a atenção de analistas e observadores em relação aos protestos contidos nas jornadas de junho de 2013 foi a profusão de cartazes individuais com inscrições de demandas diversas. Nos inúmeros vídeos produzidos in loco e disponibilizados nas redes sociais e canais da internet, lê-se: “Não somos massa, somos multidão”. Esse é um primeiro elemento do drama que caracteriza essa nova política nos novíssimos movimentos sociais. O indivíduo não se encontra mais dissolvido na massa, mas se apresenta na cena pública como singularidades múltiplas que se comunicam e estão organizadas na forma de multidão2 . Deste modo, o mote que disparou as manifestações por meio das reivindicações do MPL expõe, simultaneamente, o declínio das formas tradicionais de ação política — como partidos, sindicatos e demais organizações representativas —e novas formas de atuação política, pautadas na crítica à representação e na forma horizontal de organização. Esse enlace dramático configura a reivindicação de um “direito à cidade”, privatizada pelas formas dominantes do capital, e que sugere a “dramatização política”. Tanto os comentaristas, como os integrantes dos variados movimentos se orientam pelo que definem como crise das instituições democráticas convencionais. A indignação em torno dos limites das instituições democráticas e de um sugerido cerceamento do direito à cidade leva à formulação de um enlace dramático para o qual a solução se encontra em uma busca por mais democracia, sua renovação e atualização abertas a uma nova conformação da justiça social. Ora formulada como democracia direta, pretendendo roçar, tangencialmente, as práticas históricas dos anarquismos (exposta não como prática, mas como ideal em construção), ora, mais precisamente, como democracia participativa, expondo as aproximações dessa nova política com as tecnologias de governo do que foi caracterizado por Deleuze como sociedades de controle, ou mesmo sociedade de segurança, como sugeriu Michel Foucault.

 

 

A leitura de uma configuração dramática da crítica à democracia e a indignação em torno de suas formas institucionais expressa que as jornadas de junho de 2013 sinalizam para uma ruptura ainda em curso, acompanhada do caráter espetacular das manifestações. Talvez daí surjam novas formas do protagonismo político como renovação das convenções.

 

 

Paralelo a essa configuração dramática, emerge sua dimensão trágica, por meio das ações diretas da tática black bloc. Em seus combates não se formulam reivindicações específicas ou estratégias de exposição de pautas para convencimento ou conscientização dos demais manifestantes ou cidadãos em geral. Tampouco pode ser tomada como própria de um grupo organizado de atuação específica e/ou reduzida a uma mera presença nas manifestações para exercitar a prática de quebra-quebra. Afirma-se como uma forma contemporânea da antipolítica na medida em que sua simples presença nas manifestações rompe com a orquestração harmônica das singularidades articuladas no carnaval da multidão.

 

 

Quando, mediante as circunstâncias das manifestações, aqueles que praticam a tática black bloc enfrentam a brutalidade e violência da polícia ou se lançam na destruição dirigida da propriedade privada de bancos, lojas de multinacionais ou da propriedade estatal de prédios do governo, expõem tanto o drama da contemporânea busca paranoica por segurança, quanto os limites do que se chama modernamente de espaço público. Alertam que a garantia da segurança só se realiza pelo exercício sistemático da violência institucionalizada sobre o que se acredita como espaço público: a utopia de um direito à cidade é uma das formas da defesa da propriedade privada e estatal e, no limite, da construção do homem do comum.

 
 

As ações da tática black bloc, que ganharam notoriedade pública em meio ao movimento antiglobalização no episódio conhecido como Batalha de Seattle, em 1999, também problematizam as formas políticas dos chamados novíssimos movimentos sociais. Ao quebrar a prescrição geral de prática da desobediência civil como ação não-violenta e resistência pacífica pela inação, elas atualizam a prática anarquista de ação direta pela revolta. Habitam, portanto, os modos de fazer e jeitos de usar da cultura libertária3. Explicitam que pautas reivindicatórias expostas em marchas bem ordenadas com cartazes variados são incapazes de provocar um alerta potente que acorde os acomodados, mas que os convocam para a letargia das reformas e/ou idealização de um futuro.

 

 

Os que praticam a tática black bloc não são ingênuos em pensar que ao atacar policias estão fazendo a revolução ou que ao atacar bancos estão ferindo o capital. Afirmam apenas a potência da revolta, capaz de produzir efeitos de mobilização do que se encontra sossegado. Jogam, nas suas ações diretas, com o caráter espetacular dessas manifestações. Produzem, como frisam Saul Newman e Mike Mowbray, um contraespetáculo que agita a conformação dos indignados (Newman, 2013).

 
 

No Brasil, essa tática teve uma aparição, quase despercebida, nos primeiros protestos antiglobalização do final do século XX e início do século XXI4. Naquele momento, ainda que alguns integrantes se autodenominassem black blocs, a imprensa os tratava como vândalos provenientes de grupos anarquistas e anarcopunks, uma constatação repetitiva e intelectualmente preguiçosa. As jornadas de junho de 2013 trouxeram a potência dessa tática para essas terras, em especial em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, e incitaram os inertes analistas nativos a revisarem suas acomodadas considerações. Essa tática, que se espalhou pelo planeta como um vírus, a ponto de se obter registros dela em cidades como Seattle, Gênova, Tel Aviv, Atenas, Lisboa, Madri, Barcelona, Toronto, Santiago do Chile, Buenos Aires, Nova York, Cairo, Istambul, etc., agora não podia mais ser desprezada. Por isso, seus detratores, ainda refugiados em suas convicções responsáveis, invariavelmente acusam seus praticantes de vândalos, baderneiros ou irresponsáveis. São âncoras de jornais televisivos, intelectuais bem colocados, professores da chamada extrema esquerda, militantes de partidos e usuários de comunicação eletrônica.

Francis Dupuis-Déri resume bem esse quadro dramático:
Quando um Black Bloc entra em ação, a resposta da mídia costuma seguir um padrão típico. Na mesma tarde ou na manhã seguinte, os editores, colunistas e repórteres falam mal dos arruaceiros dos Black Blocs, os chamam de vândalos. No dia seguinte, porém, o tom costuma ser mais neutro. Os leitores são informados de que os anarquistas estão por trás de táticas envolvendo armas como coquetéis Molotov, assim como o uso de escudos e capacetes para se defender. Esses artigos às vezes fazem referências a grandes Black Blocs do passado. Em seguida, citam alguns acadêmicos, assim como representantes da polícia e porta-vozes dos movimentos sociais institucionalizados, que se desassociam dos vândalos. No máximo, o jornalista cita alguns participantes do Black Bloc... (Dupuis-Déri, 2014: 20).

 

 

As semelhanças com a cobertura das jornadas de junho são bem claras. No entanto, como toda prática anarquista, os black blocs, ao menos em São Paulo, mostraram suas singularidades de efeito tático. Em outra ocasião, no calor da tragédia analisou-se as forças envolvidas no acontecimento (Passetti, 2013). Quando a prefeitura foi depredada e a guarda civil metropolitana empurrada para dentro do prédio, a subida dos black blocs do centro para a Avenida Paulista foi acompanhada por grupos de saqueadores. Esses saqueadores compreenderam o uso da tática e os saques simplesmente deixaram de ocorrer nas manifestações seguintes. Se a tática foi capaz de expor o insuportável, tanto para as forças institucionalizadas da ordem quanto para os chamados manifestantes pacíficos e demais movimentos sociais organizados, ela também aglutinou forças inesperadas no combate, causando confusão e apreensão em analistas e cidadãos comuns.

 
 

Esta breve exposição de comentários dispersos acerca do que se pode situar como o trágico e dramático em meio às jornadas de junho de 2013 sugere uma questão: entre a indignada e dramática reivindicação de “direito à cidade” e suas formas políticas que se transmutaram em multidão e a trágica revolta expressa pela ação direta da tática black bloc, há ainda espaço para se pensar um sujeito político? Abriu-se uma possibilidade de abandonar de vez a metáfora teatral do protagonismo em política para se potencializar práticas interessadas na produção de liberdades? As placas tectônicas movidas pela brecha aberta nas jornadas junho de 2013 parecem ainda não terem se estabilizado, e é do movimento que pode emergir uma resposta. Ela talvez seja surpreendente, como foram os black blocs em meio ao movimento antiglobalização, como foram as manifestações espetaculares que tomaram as ruas das principais capitais do país no ano passado.

 

 

2. corrida para o destino
 
 

As variadas análises sobre o drama encontram um texto que se propõe esclarecedor, articulando uma teoria renovada às novas práticas e situando a emergência de um novo protagonista na história. Trata-se de um pequeno livro de Michael Hardt eAntonio Negri, curiosamente intitulado Declaração. Isto não é um manifesto (Hardt e Negri, 2014). A familiaridade do título ressalta imediatamente. De um lado, a alusão imediata ao famoso texto de Michel Foucault, “Isto não é um cachimbo, é um cachimbo?”, que trata da filosofia da representação. De outro lado, desperta no coração dos militantes a lembrança do famoso Manifesto comunista de Marx e Engels. Hardt e Negri, como se sabe, oxigenaram o discurso marxista-leninista, a partir das reflexões filosóficas de Gilles Deleuze e Michel Foucault, e lhe acoplaram os ideais federalistas estadunidense; redimensionaram o proletariado em multidão e estilhaçaram a biopolítica situada por Foucault interpondo uma dicotomia composta pelo biopoder (Estado) versus biopolítica (multidão). Devemos agregar a isso não é um manifesto seu imediato correlato, é um manifesto?

 

 

A primeira grande surpresa deste manifesto está em voltar-se para a sustentabilidade, procurando espaço na dicotomia complementar consolidada no encontro ONU-Rio+20 entre as Metas do Milênio de 2000 e as novas Metas para o Desenvolvimento Sustentável a serem levadas adiante a partir de 2015, que estabelece um jogo de forças que não opõe capital e multidão, ou seja, as metas da ONU e as metas alternativas5 . Todavia, não devemos esquecer que o funcionamento desta racionalidade sustentável, fundado na relação de complementaridade entre Estado, fóruns, alternativos, empresários, organizações internacionais, relaciona novas formas de política e dos direitos com vistas a uma cultura de paz tolerante e capaz de gerar melhorias na qualidade de vida para as futuras gerações. A estratégia neoliberal não descarta a multidão.

 

 

É aí que este pequeno e instigante livro se situa: onde é provável jogar com e contra em um processo no qual as forças sejam organizadamente capazes de instituir uma nova justiça social mais justa? Trata-se de um acerto contínuo com a ocupação do Estado e a boa governança, uma tarefa de conscientização, a preparação para uma reviravolta. Trata-se, também, de uma estratégia a ser levada adiante, antagônica e complementar à do capital, portanto, fundada na dinâmica da luta de classes, ainda que estas sejam renomeadas no quadro histórico em curso.


 

Os autores situam claramente a tarefa da multidão na “constituição de uma sociedade nova e sustentável” (...): “em sua rebelião, a multidão deve descobrir a transição da declaração para a constituição” (Hardt e Negri, 2014: 9). Este processo necessita ser descrito para que a explicação seja absorvida. Para tal, Hardt e Negri delimitam a mudança ocorrida do nomadismo das lutas pela “globalização alternativa”, nos acontecimentos anteriores a 2011, para o início do atual sedentarismo. A luta pelo comum se fortificou “por meio de práticas democráticas de tomada de decisão” (Idem: 14), para que todos os participantes juntos liderem a luta contra as injustiças do neoliberalismo e a “regra da propriedade privada” (Ibidem: 15). Portanto, é uma luta política contra os convencionais sistemas de representação, visando combater as “formas dominantes de subjetividade produzidas no contexto de crise social e política corrente” (Ibidem: 16) para a consolidação do poder constituinte. Quais são elas? As figuras subjetivas primárias, segundo os autores, são: o endividado, o mediatizado, o securitizado e o representado.

 

 

O livro perseguirá estas figuras, as condições de rebeliões e a construção do comum para finalizar com “o advento do homem comum”, sua síntese. E, pela descrição/reiteração do comum, busca contornar a presença de práticas anarquistas no movimento para prefigurar um novo comunismo.

 

 

O endividado é a resultante da “hegemonia das finanças e dos bancos”; o mediatizado, do “controle das informações e das redes de comunicação”; o securitizado (o amedrontado sequioso de proteção), do “regime de segurança e do estado generalizado de exceções”; o representado resulta da intrínseca “corrupção da democracia”. É sobre eles que “os movimentos de resistência e rebelião devem agir” (Hardt e Negri, 2014: 21).

   
 

O endividado (trabalhadores precarizados em uma relação de credor-devedor que vende seu tempo de vida) transforma a culpa em forma de vida; ele vive a passagem da exploração para a dívida, em que, paradoxalmente, a relação fiador-servo renasce por meio do contrato. O mediatizado, que se distingue do alienado, necessita experimentar a “qualidade da informação” (Idem: 28) para dar um fim à sua consciência fragmentada e dispersa expressa de forma passiva pela convocação à participação6 ; a mídia eletrônica o incita a opinar e a narrar sua vida; ele não é a priori ativo ou passivo, mas uma subjetividade “absorvida em atenção” (Ibidem: 29); aliado aos usos eletrônicos, o sujeito da multidão toma sua própria vida nas mãos quando mantém o contato corpóreo (o que, segundo os autores, passou a acontecer nos movimentos pós 2011). O securitizado, simultaneamente, é dois “dramatis personae” (Ibidem: 34): é o prisioneiro e o guarda, o sujeito e o objeto da segurança; vive neste estado de exceções tirânico que se reproduz devido à servidão voluntária (e, neste sentido, conecta-se endividado-mediatizado-securitizado) que legitima as mais variadas formas de penalizações; é o medroso que vigia e é vigiado povoado de “fantasmas amedrontadores” (Ibidem: 39)7 . O representado deve ter em mente que a representação não é um vínculo com a democracia, mas o seu obstáculo; ele é a condensação e o resultado de “sua subordinação e corrupção” sobre quem a política “despeja esse mundo de imundícies”8 ; a mídia o manipula e, vendo-se sem alternativas, refugia-se no medo, submetendo-se facilmente aos líderes carismáticos ou populistas de ocasião.

 

 

Enfim, como o cidadão-trabalhador poderá mobilizar o projeto democrático? Segundo Hardt e Negri, “um caminho, os movimentos ensinam, passa pela revolta e a rebelião contra figuras subjetivas esgotadas e despotencializadas... A democracia somente se concretizará quando emergir um sujeito capaz de entendê-la e aplica-la” (Ibidem: 45 – grifos nossos). Portanto, a rebelião deve ser encarnada; é o “estar juntos” a partir de uma recusa que afirme a vontade do comum, “base primária da produção social” (Ibidem: 53) com empoderamento de singularidades em rede e juntas para a construção de “outro mundo possível” (Ibidem: 55). A rebelião deve saber combinar as redes e o estar juntos, de modo que o mediatizado se conscientize de que precisa superar o encantamento e a captura, e que para tal permaneça atento. A rede é um coral de gente junta produzindo linguagem comum por meio da continuidade das práticas de acampamentos exercitadas pelos movimentos desde 2011.

 

 

“A deserção e a desobediência são armas confiáveis contra a servidão voluntária” (Ibidem: 61). A luta contras as prisões, segundo Hardt e Negri, constitui um novo abolicionismo, e esta luta é importante por revelar os efeitos perversos das desigualdades. Todavia, ressaltam ser impossível abolir as prisões em uma sociedade estruturada como a nossa. Desse modo, se este abolicionismo funciona como denúncia da função da prisão na desigualdade, ao mesmo tempo evita enfrentar a abolição do direito penal, e apenas lança mão deste evento insuportável para elencar uma das instituições a ser suprimida em uma nova constituinte no futuro – ou melhor, em função do poder judiciário constituinte (Ibidem: 130-133). Portanto, sendo mais uma das conscientizações na luta, o exercício da denúncia produz uma verdade a mais que consolida pontos de uma programática futura comum. Sua exemplaridade serve para mostrar como a produção da verdade deve ser estruturada para um novo governo futuro como “construção coletiva da liberdade” (Ibidem: 64) por uma multidão democrática e autogestionária.

 
 

Está em jogo reabrir o debate político e constitucional, contemplando a passagem da relação público-privado para o comum, efeito de uma “revolução” por vir, aberta a inovações. “Dito de outro modo, mais filosófico, os processos constituintes são dispositivos de produção de subjetividades” (Ibidem: 66). O revolucionarismo marxista-leninista começa a encontrar sua nova linguagem. Mas como ficaria a questão do partido da revolução?

 

 

Abolir este governo e constituir outro, o que é legítimo desde a filosofia de John Locke — que instituiu pelo liberalismo contratual a lógica do equacionamento dos usos e abusos de governo entre o conveniente e o inconveniente, imprimindo à rebelião o estatuto de legalidade, sob a forma de desobediência civil —, é possível a partir das práticas dos acampamentos entendidos como “uma grande fábrica para a produção de afetos sociais e democráticos” (Hardt e Negri, 2014: 81), por meio de contrapoderes, dispondo dos “meios legais nacionais e internacionais” (Idem: 84), agindo diante do perigo ambiental e social, e constituindo o acesso ao comum. Trata-se da biopolítica da multidão exercitando, também, seu poder de coerção para forçar as corporações e o Estado-nação a se abrirem para o comum, dividirem a riqueza equitativamente e repararem danos causados ao planeta e à população. Trata-se de um poder constituinte, que opera em busca da ruptura com os limites de melhorias propostas pelo desenvolvimento sustentável (combinação dialética entre o molecular e o molar); que não prescinde das tecnologias eletrônicas redimensionadas em uma nova politização com base em uma governança democrática e multitudinária. Trata-se de uma retomada da velha estratégia da apropriação das forças produtivas, mais uma vez desconhecendo que se produz tecnologias (eletrônicas, de poder e de governo) a partir das relações de poder que as fundam. Então, se há denúncias que devem ser agendadas para a supressão futura, o estar junto não deveria somente politizar as tecnologias, mas inventar outras que ultrapassassem a produção de contrapoderes, que geralmente deixam intocáveis relações hierárquicas, para se voltarem à produção de antipoderes? No quadro apresentado pelos autores, as relações horizontalizadas de gestão dependerão de uma verticalidade reduzida nas relações de poder. Como ser autogestionário desse modo? É somente uma ultrapassagem da raison d’etat pelo federalismo?

 

 

Nos novíssimos movimentos após 2011, os autores situam a consolidação de novas práticas de tolerância em seus interiores. Por si só a tolerância supõe que os acima admitem algo dos abaixo, mas voltaremos a isso adiante. Se as suas assembleias evitam a unanimidade e enfatizam o pluralismo aberto a conflito e contradições, novamente, repete-se com a noção de pluralismo uma verticalidade omitida, posto que o plural não inclui todas as singularidades liberadoras e libertadoras, mas requer um certo padrão, o que remonta a um novo exercício parlamentar renovado na sociedade civil. O pluralismo, enfim, não lida com a parrhesia, prática constitutiva da democracia direta, e isso é mais do que uma diferença considerável negligenciada no estudo das diferenças.

 
 

A maioria descrita pelos autores, mesmo não se tornando homogênea ou corpo de concordância, deve concatenar diferenças e “modelar a política de forma democrática, de acordo com a vontade de todos” (Hardt e Negri, 2014: 91 – grifos nossos). Esta maioria “imperante” (Idem: 92), dinâmica e múltipla é capaz de transformar “a concepção convencional da tolerância” (Ibidem: 91) e avançar nos “processos horizontais de tomada de decisão da multidão”. Seu modelo é o federalista anarquista? Não, obviamente, e este também foi omitido e sequer citado como possível, tolerável ou mesmo compondo o pluralismo. É a velha manha marxista-leninista que evita radicalizar-se para compor com forças da ordem na conjuntura. Prefere alinhar-se ao modelo federalista estadunidense em que comunidades criam projetos comuns pela expressão de suas diferenças compondo a política como “ontologia plural” (Ibidem: 94), e colocada em prática “por meio do encontro e da composição de subjetividades militantes” (Ibidem: 95). Mais do que “estar com” é necessário o que fazer?, ou seja, “fazer com”: endividados, não paguem suas dívidas; mediatizados, libertem-se do controle e falsidade das mídias!; securitizado, sem medo, seja invisível; representado, recuse ser governado pelos governantes e finalmente encare-se como o homem do comum, cujas subjetividades diferentes, mais cedo ou mais tarde, encontrarão uma uniformidade garantidora das diferenças que portam a priori. O poder de coerção da multidão age e agirá não só em direção à propriedade e ao Estado como também aos diferentes na diferença libertadora.

 

 

Os alvos constituintes principais que se dispensam de regulamentações, administrações e instituições locais e estatais são: a água (comum, segundo o princípio da sustentabilidade, garantida para as futuras gerações), os bancos (administrados em comum e como ferramenta do planejamento democrático) e a educação (com ênfase no autodidatismo e administração do conhecimento “orientada, como a de outros recursos, pelos princípios de acesso livre, igualdade, sustentabilidade e participação”) (Ibidem: 106). Para alcançar as metas, Hardt e Negri recomendam dois caminhos: o da transição da propriedade pública para a comum por meio do princípio da diferença elaborado por John Rawls, com distribuição dos bens segundo os benefícios aos mais desiguais, o que nada mais é do que a reescrita do mesmo princípio do direito desigual indicado por Lenin, em O Estado e a revolução, para a etapa de consolidação do socialismo em direção ao comunismo; o segundo é o da luta contra a propriedade privada e que abarca um combate duplo: a favor do público contra o neoliberalismo e contra o público em favor do comum e de “mecanismos de autogestão”. Concluem que “um relacionamento aberto entre movimentos e governos, uma forma plural de governança com múltiplos pontos de entrada, e uma formação indefinida de normas para as formas de vida que inventamos: esses são alguns elementos que constituem o horizonte processual de uma democracia participativa do comum” (Ibidem: 110-114).

 

 

Os partidos de esquerda estão falidos e os caminhos estão abertos; segundo Hardt e Negri, o federalismo é “um princípio fundamental do poder legislativo constituinte”, não subordinado a um poder central, mas horizontal e extensivo, com base na prática das assembleias. Sua referência deve ser os conselhos operários: “os mesmos circuitos de comunicação que funcionaram na produção foram adaptados às estruturas políticas dos conselhos” (Ibidem: 121-123). Mais uma vez, trata-se de uma politização das tecnologias de poder e governo, de uma administração. E quem fala em administração está sempre falando em governo de uns sobre outros. Não se trata apenas de retórica muito bem articulada seduzindo o militante dos movimentos a compartilhar, ter acesso e participar igualitariamente na produção da riqueza comum. Mas de uma programática que combina, como os autores já mostraram em outros livros, Lenin com Madison. Nesta empreitada, pouco ou nada se diz sobre São Francisco de Assis (ou com esta figura cabe habitar a nova função dos bancos, a sustentabilidade do planeta, o amor aos pobres?).

 

 

O manifesto se encerra com poucas páginas-síntese do que vem a ser o advento do homem comum. A abertura lembra imediatamente as palavras iniciais de Maquiavel em O príncipe sobre os que olham de cima para baixo e de baixo para cima com as devidas distâncias geográficas e recomenda que nos preparemos para o futuro que chegará. Seguindo as recomendações de Michel Foucault sobre a produção dos saberes que antecedem a produção da riqueza, faz um breve apanhado sobre a produção da verdade neoliberal antes do neoliberalismo e de sua incorporação durante o golpe de Estado contra Salvador Allende no Chile. Mais uma vez, os autores recorrem taticamente ao que lhes é relevante para a produção da sua verdade e composição de sua estratégia. Os movimentos estão trazendo algo novo pela rebelião e a revolta: o homem do comum é uma pessoa comum que realiza “uma tarefa extraordinária”, ou seja, “prover acesso aos campos e rios, para que os pobres possam se alimentar, mas também criar meios para a livre troca de ideias, imagens, códigos, músicas e informações” (Ibidem: 140). Ao homem comum cabe buscar meios para criar “alianças”, o que não deve ser sinônimo de coalizão, pois é na luta que os “grupos sociais distintos interagem como singularidades, e são esclarecidos, inspirados e transformados pelas trocas uns com os outros”; trocam singularidades e se transformam na luta. Enfim, a ausência de líderes ou de linha ideológica partidária não é sinônimo de anarquia, “se, por anarquia, você quiser dizer, caos, confusão e alvoroço” (Ibidem: 141-143). E lá se foi a anarquia capturada taticamente na estratégia. As derradeiras palavras-manifesto são: “para todos aqueles que ainda são apaixonadamente fiéis aos princípios da liberdade, da igualdade e do comum, constituir uma sociedade democrática está na ordem do dia” (Ibidem: 143). Assim como, diremos, para os liberais, conservadores e neoliberais, ainda que alterem um ou outro princípio, ainda que lancem mão de ditaduras para reconstruir a democracia. E quanto a isso, a América Latina, como a África, são pródigas.

   
 

Então isso tudo não compôs um manifesto, tanto quanto o cachimbo de Magritte é e não é um cachimbo. O drama continua encenado e o seu sujeito, finalmente encontrado, é o homem do comum. A trama, contudo, tende a se expandir neste teatrão dos movimentos, velhos, novos ou novíssimos. Mas serão os movimentos, devidamente expurgados de excessos e definitivamente configurados, os protagonistas definitivos deste drama? Como se sabe, no drama, os coadjuvantes são capazes de provocar reveses. Sem eles não há diferenças, porém, mesmo assim giram no interior das maquinações de um autor. E como são modernos os autores!

 
 
 
 

1. Cf. Day, 2005. O autor relaciona as formas desses chamados novíssimos movimentos sociais a algumas práticas provenientes dos movimentos anarquistas, como marca distintiva em relação aos novos movimentos sociais, que se caracterizaram pela luta por direitos de minorias de mulheres, gays, negros, etc. Essa caracterização se diferencia da designação de “comunismo perfigurativo”, mais comumente atribuída aos desdobramentos provenientes do movimento antiglobalização e identificados com a composição da multidão.

 

2. Cf. a caracterização de Michel Hardt e Antonio Negri (2005).

 

3. A respeito da cultura libertária, ver: Passetti e Augusto, 2008.

 

4. No centro da cidade de São Paulo, em 26 de setembro de 2000, no ato conhecido como S26, quando atacaram com pedras e tintas a fachada da Bolsa de Valores; na Avenida Paulista, quando se deu a chamada “batalha da Paulista“ contra a Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo, no ato conhecido como A20, em 20 de abril de 2002.

 

5. Para uma leitura sobre esta complementariedade, ver Augusto e Simões, 2012.


6. A convocação à participação deveria ser considerada no interior das relações produtivas. Além de mediatizadas, elas são democratizadas, fazendo do trabalhador um empreendedor enquanto capital humano. Portanto, a convocação à participação é uma condição da racionalidade neoliberal que traz a democracia para as relações de trabalho. Os equipamentos eletrônicos funcionam conjuntamente produzindo um cidadão midiático. Ele está dentro e fora dos movimentos. Quando dentro, tende ao aperfeiçoamento das convenções democráticas enquanto atualizações. É o sujeito conveniente à nova política, ou ao equacionamento do ingovernável trazido pela racionalidade neoliberal sobre os efeitos do socialismo e do wefare-state.

 

7. A democratização das penalizações tem por objetivo punir mais e melhor. Funciona produzindo prisões de controles eletrônicos, incluindo supermax,nos Estados Unidos, assim como o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), no Brasil, ampliando a população pobre encarcerada. Mas, ao mesmo tempo, desenvolve-se o dispositivo de penalizações generalizadas que vai desde a prestação de serviços à comunidade (com vínculos diretos com ONGs e empresas privadas) a delações premiadas (derivadas do combate aos chamados crimes de colarinho branco como democratização da punição), a descriminalização de condutas criminosas (como consumo de certas drogas ilícitas) até a conduta do cidadão-polícia, ou seja, daquele que não vigia, mas monitora condutas de seus vizinhos em cada comunidade que habita e/ou frequenta.

 

8. Idem: 40-41.

 
  BIBLIOGRAFIA
 
 

AUGUSTO, Acácio e SIMÕES, Gustavo (2012). “Uma verdade sustentável? Rio+20 e Cúpula dos Povos de uma perspectiva ecopolítica”. In: Revista Ecopolítica, nº3. São Paulo: Nu-Sol.
Disponível em: http://www.pucsp.br/ecopolitica/galeria/galeria_ed3.html (consultado em 21/07/2014).

DAY, Richard J. F. (2005). Gramsci is dead. Anarchist currents in the newest social movements. Londres/Toronto: Pluto Press.

DUPUIS-DÉRI, Francis (2014). Black Blocs. Tradução de Guilherme Miranda. São Paulo: Veneta.

HARDT, Michel t e NEGRI, Antonio (2005). Multidão: guerra e democracia na era do Império. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Record.

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PASSETTI, Edson (2013). “Jornadas de junho: o insuportável”. In: Revista Ecopolítica, nº 6. São Paulo: Nu-Sol.
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PASSETTI, Edson e AUGUSTO, Acácio (2008). Anarquismos e educação. Belo Horizonte: Autêntica.

 
 
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