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A DILUIÇÃO NAS MASSAS – AnÁlise do filme A Onda
Liliana Liviano Wahba


O fenômeno do indivíduo submergido no grupo, seja este factual ou presente por meio de normas coletivas, é tema de estudiosos da filosofia e da psicologia. A história mostrou o emprego de manobras de coerção pela força e pela dominação de idéias, seja em ditaduras - gravidade maior -, mas também em democracias; nestas últimas pelo reforço à sugestionabilidade e pela estimulação de fantasias e de anseios compartilhados socialmente.

A obra de Elias Canetti , Massa e poder, publicada em 1960 e escrita durante 30 anos como tentativa de refletir sobre os horrores da II Guerra merece ser retomada. Nela, o autor retrata a síndrome de sobrevivência - ou desejo de perenidade - do líder que comanda uma multidão cega e passiva na obediência, mas violenta a ponto de matar as vítimas contra as quais se lança sem remorso ou arrependimento.

O escritor atribui ao poder um traço de paranóia e de inflação que somente poderá ser equilibrado pela sua humanização, tarefa das mais difíceis. Reich também ressalta a necessidade de preservar a liberdade individual, a independência e a responsabilidade. Em 1933 publica A psicologia de massas do fascismo, em que associa a repressão sexual na educação com a ansiedade e a insegurança do indivíduo que favorecem o autoritarismo.

Nesse mesmo ano, Ernst Kretschmer, proeminente psiquiatra alemão, renuncia à presidência da Sociedade Alemã de Psicoterapia em protesto ao regime nazista que tomou o poder. Pouco antes declarara: “Há algo estranho sobre os psicopatas. Em tempos normais, escrevemos avaliações médicas sobre eles; em tempos de intranqüilidade política eles nos governam” (BAIR, 2003, p. 437).

Tanto Freud como Jung baseiam-se na obra da psicologia social de Le Bon, Psychologie des foules de 1895, e de Mc Dougall, A mente grupal, de 1920, e analisam o poder mágico do líder e a sugestionabilidade humana, inerentes à constituição de grupos; vêem a psicologia de grupo como inferior à consciência individual. Nele a emoção é contagiosa e libera na massa instintos, forças, imagens primitivas.

Freud, em Psicologia das massas e análise do Ego, de 1921, pergunta-se sobre o poder de coesão da massa, acometida de pânico quando se dissolve devido à perda de ligação amorosa com o líder.
Jung, que trata do tema desde a década de 20 e, principalmente, em “Ensaios sobre eventos contemporâneos”, publicado em 1946, enfatiza a potencialização da psicopatologia inerente à massa e a constelação de epidemias psíquicas, como a que ocorreu na Alemanha Nacional Socialista: “uma psicose de massa”. Sua formação constitui um foco hipnótico de fascínio, exerce sortilégio e o surgimento de um líder é sintoma inevitável. O desejo grupal é projetado no líder que, por sua vez, dominado pelo desejo de poder e de auto-engrandecimento, controla e subjuga esse grupo. Jung procura compreender como um líder que foi “a mais prodigiosa personificação de todas as inferioridades humanas, desajustado, irresponsável, personalidade psicopática, com vazias fantasias infantis” (par. 454), conseguiu envolver toda uma nação e países da Europa. Somente mediante uma infecção psíquica o horror poderia tomar tal devastadora proporção.

Faz parte da condição de manipulação identificar um bode expiatório - o diferente - cujo surgimento enveredou a civilização para a concentração e canalização de objetivos controlando a ameaça de desestruturação, já que favorecia o investimento de esforços em comum. Eliminava-se o elemento perturbador: mais fácil indispor-se com o outro alheio do que com aquele dentro da comunidade. Em sua análise, Canetti associa a desvalorização monetária na economia alemã com a projeção de desvalor da vida dos não arianos - estes últimos reduzidos ao nada -, o que “descarregava” o profundo sentimento de minusvalia na Alemanha sob forte crise econômica.

Desse modo, regimes tirânicos e fundamentalistas empregam acusações de forma fanática, pois sem um inimigo feroz não poderiam justificar sua própria ferocidade. Acreditamos sermos livres dessa patologia em uma sociedade democrática, na qual não somos impedidos de exercer o livre arbítrio nem coagidos a atitudes extremas.

O filme A Onda (Die Welle) contesta a certeza acima. Já de início questiona se, nos tempos atuais, o comportamento das pessoas tidas como normais na sociedade poderia incorporar a indiferença e a crueldade com seus semelhantes. No desenrolar da ação a resposta evidencia-se afirmativamente.
O cineasta baseou-se no filme para TV norte-americana The Wave, inspirado em fatos que ocorreram em uma escola dos Estados Unidos em 1967.

A descrição e a reação dos personagens retratam modelos, motivações, em que cada um deles representa uma tendência, uma maneira de ser e de estar em sociedade, em suma, um retrato de um grupo.

Assim, temos o casal principal, Karo e Marco, em que, nitidamente, ela é a mais forte. Karo tem pais amorosos, mas liberais demais, o que a desagrada. Marco sente-se alheio a sua família, na qual não há pai e a mãe envolve-se com parceiros da idade dele. Procura o modelo de identidade no pai de Karo. Ela é mandona e Marco se submete de modo passivo; mostra um abandono talvez primal, refletido em sua insegurança. O personagem ganha força e poder de decisão, atrelado a descontrole de agressão, principalmente com Karo, já que, pela primeira vez, surge o desejo de dominá-la.

A agressividade é o tema presente, de um lado canalizada para objetivos - falta de objetivos é uma fala de diálogos iniciais -; todos se sentem parte de algo maior que lhes confere sentido vivencial e ímpeto para alcançar metas; ao mesmo tempo, a agressividade cresce com o aumento de poder: quando se ultrapassam alguns limites a sensação é de onipotência. “Poder por meio da união” e “poder por meio da ação”, combater inimigos sem responsabilidade individual; o uniforme os iguala e se sentem parte do todo: comportam - se tal qual manada desembestada. “A onda passa por cima”; “a onda vai engolir quem ficar contra”; “tragar o traidor” (o bode expiatório).

Diversos personagens mostram insegurança e compensação via agressividade e até mesmo violência.
Um deles é Dennis, o diretor da peça teatral que vai se afirmando e assumindo comando; pela primeira vez é admirado pela garota de que gostava sem esperança de conquistá-la. Uma mudança se opera aparentemente na personalidade desses jovens, que parece positiva, o que leva o professor a dizer a sua mulher que estão mudando, mais motivados, trazendo resultados inesperados. Desse modo processa-se o primeiro questionamento ético: vale qualquer preço obter mudanças?

A dúvida, no entanto, dissolve-se em seguida, pois a aparente segurança é derrubada como um castelo de cartas, pois provinha da identificação com a massa e de esta com o líder. A força é primitiva e decorrente de um estado de fusão, de indiferenciação, ou seja, não incorporada, sem possibilidade de estruturar a personalidade e de dar coesão ao ego.

O exemplo pungente é o garoto que irá se suicidar. Tim, desnorteado, querendo agradar sem ser valorizado pelo grupo, na família sem nenhuma compreensão por parte dos pais e criticado pelo pai, encontrará finalmente seu herói, seu valor como guardião do mestre e do movimento. Disposto a morrer por eles e a matar, se necessário em sua fantasia. Personagem bordeline, constrói um delírio paranoide e sucumbe à dissolução de aquilo que se constituiu sua única razão de viver. Não suporta a separação do líder, seu objeto de amor e de veneração, com o qual estava fundido (chega a dormir no jardim do professor).

A diluição no anonimato é representada por Lisa, sempre à sombra de Karo, por quem nutre oculta inveja. Assim, ela acha bom “anular as diferenças com o uniforme”, e vai ganhando força até contestar Karo e seduzir o namorado da amiga. A contestação é o caminho da auto-afirmação necessária ao fortalecimento do ego; percebe-se, no entanto, que o fez de modo sombrio, atuando defesas e sem convicção de sua real autonomia. As amigas reconciliam-se no final, talvez agora com maior possibilidade de ver uma à outra.

Temos ainda Bomber, gordinho, sem motivações, que vira um verdadeiro guarda e inventa a saudação e responde de modo pungente no final: “Porque você mandou” (à pergunta do por que agrediu o amigo). E Sinan que, por ser de origem turca era o diferente, até se sentir aceito como igual.

O casal Karo e Marco se desdobra no futuro, e delineia uma perspectiva contemporânea das relações de gênero no casal protagonista representado pelo professor Rainer Werner e Anke. Mostram-se amorosos, unidos, felizes com o filho que está para nascer. Até eclodir o que estava oculto: quando ela diz que ele adora ser admirado ele responde que ela tem inveja e se sente superior com seus diplomas, e que sempre o considerou um pedagogo de segunda, pois ele fez faculdade pública. Anke constata: “não sabia que a ferida era tão profunda”. A ferida do complexo é exposta. A dor da inferioridade quando presente no casal mina a relação de modo insidioso, o que constatamos com freqüência em nossos consultórios. Ocorre tanto em homens como em mulheres; no homem, no entanto, parece mais aguda dado que perde prestígio na sociedade patriarcal. Werner cai em si, mas a tragédia é consumada: de fato, foram “longe demais”.

A aula cinematográfica ensina que, em primeiro lugar, estamos sujeitos a sugestionabilidade em maior grau do que gostaríamos de acreditar, e somos capazes de ações que contrariam os princípios de civilidade, justificadas por argumentos rasos e por emocionalidade intensa. E, pior, que no fundo, temos imenso prazer em torturar os outros, pois assim nos sentimos superiores.

Nos personagens não influenciáveis a lição mostra a possibilidade de saída: difícil é saber de fato qual foi a vacina empregada para evitar a contaminação. Maior auto-estima, convicções pessoais sólidas, atitude contestatória, autossuficiência e até mesmo um sentimento de superioridade?

Ressalta de algum modo que aqueles menos sujeitos à sugestionabilidade extrema têm uma dose de narcisismo saudável e se relacionam com o outro e com o entorno como personagens principais, ou seja, não são personagens secundários no roteiro de suas vidas. Sentir-se um personagem “secundário” alia-se a sentimento de inferioridade, o que constitui um terreno favorável a adesões inconscientes com o intuito de resgatar o valor de uma frágil existência.

Quando surge o líder em tais circunstâncias ele é aclamado como aquele que suprirá os anseios do grupo, carente de afeto e de poder. O líder, por sua vez, investe-se do poder superior e gratifica-se com o amor incondicional. Manipula para alcançar objetivos na maior parte das vezes escusos e ocultos. Dificilmente combateremos a psicopatia: trata-se de salvar os - parcialmente - inocentes. No discurso final do professor Werner: “achamos que éramos especiais, expulsamos os diferentes, fomos longe demais”.

A ética e a consciência custam, são duras de trilhar; a recompensa nunca é imediata, e parece que estar em paz com si mesmo e com o outro não seja a maior das preocupações das pessoas em geral.

REFERÊNCIAS

BAIR, Deirdre. Jung. A Biography. London: Littele, Brown and Company, 2003.
CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Melhoramentos, 1983.
DIE WELLE. Direção Dennis Gansel. Rat Pack Filproduktion. Germany, 2008. (107 min).
FREUD, Sigmund. Análise das massas e psicologia de Ego. SE 18. STRACHEY, James et al. (Ed) The Standard Edition of the Complete Works of Sigmund Freud. London: The Hogart Press and the Institute of Psychoanalysis, 1953-74.
JUNG, Carl Gustav. Essays on Contemporary Events. In: Civilization in Transition. CW 10. Princeton: Princeton University Press, 1978.
REICH, Wilhelm. Psicologia das massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 
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