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ANÁLISE DO FILME THE WALL

Aluno: Gabriel Mathias Rezende - 3º ano, graduação

The Wall, musical dirigido por Alan Parker e lançado em 1982, foi baseado no disco homônimo lançado em 1979 pela banda inglesa Pink Floyd. Na época de composição do disco a banda já havia alcançado o auge de popularidade com o sucesso do disco The Dark Side of the Moon e passava por um período de brigas e rupturas com a demissão do tecladista Richard Wright. O Reino Unido também passava por um momento de crise com a recessão econômica que culminaria no Tatcherismo dos anos 80, período de quase abolição de serviços sociais e de política ultraconservadora e liberal. O rock progressivo praticado pelo Pink Floyd deixava de ser moda para dar lugar ao punk e a new wave.
O disco e o filme se encaixam nesse período de mudanças e rupturas da banda e do mundo. Relatam a história de Pinky Floyd – personagem criado por Roger Waters para expressar sua insatisfação com o show business –por meio de músicas que são quase todas cantadas por ele e mostram as suas lembranças e delírios. O protagonista é um músico de rock que se sente oprimido por suas relações familiares e profissionais. Esse sentimento de opressão transforma o mundo externo em um lugar cada vez mais ameaçador para Pinky, que constrói ao redor de si o “muro” do título. O resultado desse processo é a dissociação do protagonista em várias personagens que o julgam e condenam. Analisando o contexto em que as músicas foram escritas, a dissociação da personagem pode ser entendida com um reflexo da dissociação que ocorria no mundo externo.
O filme é claramente dividido em duas partes: na primeira, Pinky está apenas relembrando o que lhe aconteceu durante a vida, sentado em uma poltrona de maneira inerte. A segunda parte mostra a ruptura com o mundo externo – deflagrada pela traição da sua mulher – e é um mergulho nas fantasias e delírios inconscientes do protagonista. Nesta parte vemos como tudo que o afetou na primeira parte ressoou internamente através de imagens oníricas e delirantes.
As opressões sentidas por ele nas suas relações familiares são mostradas como derivadas da morte do seu pai quando ainda era um bebê. Aqui, começa a se configurar tanto um complexo paterno (de pai ausente/devorador) quanto o materno (mãe devoradora).

O complexo paterno
Uma das primeiras cenas do filme mostra como esses complexos mobilizam a energia psíquica do protagonista. Ele aparece sentado em uma poltrona com o olhar parado em uma televisão. Na sua mão se vê um cigarro apagando até lhe queimar os dedos. Então são apresentadas as lembranças da morte do pai – que foi morto na batalha de Anzio, durante a Segunda Guerra. A imobilização de Pinky quando sua mente é tomada pelas lembranças demonstra como a ausência paterna ainda não foi elaborada, já que essa paralisia frente as suas recordações é causada pela constelação do complexo – no caso, paterno.
De acordo com Alberto Pereira Lima (2002, p. 297), como a referência proporcionada por uma figura paterna é uma necessidade arquetípica, na falta de um pai – ou outra figura que exerça essa função – essa necessidade será “alimentada pelas imagens culturais do pai”. Verena Kast também aponta que essa falta pode ser preenchida por aspectos paternos coletivos. Esta situação, caso haja a formação de um complexo paterno, torna ainda mais difícil a elaboração consciente da figura paterna, pois a relação se limita ao terreno das fantasias e não há “frases de complexo”, dando a impressão de que não há conteúdo a ser elaborado (KAST, 1997, p. 201).
A forma irônica com que o episódio da morte do pai é contado e contextualizado também mostra a sua atitude frente às instituições que desempenham em algum grau a função paterna. Murray Stein (1979) associa ao arquétipo paterno um aspecto devorador, no qual as leis devem ser obedecidas rigidamente e os sentimentos são todos convencionais, assim como o pensamento e o comportamento. Na letra da música em que Pinky relembra o que ocorreu com o pai ele diz:

Era exatamente antes do amanhecer de uma manhã miserável
Nos negros anos 44
Quando o comandante
Disse para tomarem uma posição firme e estável
Quando ele pediu para que seus homens batessem em retirada
E os Generais agradeceram
Enquanto os outros soldados seguravam
Os tanques inimigos durante algum tempo
E a principal ponte do Anzio
Foi mantida pelo preço
De algumas centenas de vidas ordinárias

O exército aparece como uma instituição implacável, na qual é preferível “pagar o preço de algumas centenas de vidas ordinárias” para se manter uma posição estratégica, ou seja, a manutenção do sistema como está é mais importante do que as vidas que se perdem no processo. O pai representado pelo exército é, então, um pai Uranos, que entrega os filhos ao inconsciente (morte) para evitar uma alteração do status quo.
Também é importante notar como ele vê o pai como vítima desse sistema, não como um herói de guerra, que morre defendendo seu país. Murray Stein analisa o complexo paterno de Jung de maneira semelhante; o pai é visto pelo filho como vítima de uma visão teológica unilateral. Nos dois casos, uma instituição impõe sua força repressora em um pai derrotado.
Em outra cena, Pinky aparece criança brincando sozinho em um parque. Ao ver outra criança brincando com o pai, ele tenta uma aproximação dessa figura paterna amorosa, “guardiã dos filhos” como afirma Stein (STEIN, 1979, p. 83). Quando esse menino sai com seu pai, Pinky tenta dar a mão ao homem, que o repele em suas duas tentativas. A atitude da criança pode ser interpretada como uma tentativa de compensar o pólo negativo do arquétipo paterno (pai ausente/devorador) buscando uma aproximação com esse pólo positivo.
Essa busca pelo outro pólo é assinalada logo após uma cena na qual esse Pinky criança brinca com soldados enquanto sua mãe está rezando na Igreja. O Pinky adulto, que é quem está lembrando essas cenas, conta então em Another Brick in the Wall pt1:

O papai voou pelo oceano
Deixando apenas uma memória
Foto instantânea no álbum de família
Papai, o que mais você deixou para mim?
Papai, o que você deixou para mim?
Enfim, era apenas um tijolo no muro
Enfim, era tudo tijolo no muro

A criança procura desesperadamente alguma orientação masculina e conforto. A busca pelo elemento paterno é mostrada ainda em uma cena na qual um Pinky pré-adolescente encontra escondido em uma gaveta o uniforme militar e as condecorações do pai. O filho então se veste com as roupas e se olha no espelho vendo no seu reflexo a imagem do próprio pai.
Como Verena Kast (2002) assinala, em um complexo paterno no filho existe a possibilidade do filho sentir uma exclusão do mundo masculino. Essas duas passagens mostram Pinky desconectado desse mundo paterno e, portanto, masculino. Essa masculinidade fragilizada se refletirá em sua relação com a esposa.
O pai devorador aparece novamente na relação com a escola, outra instituição que tem uma função paterna, a de educar e ensinar a convivência em sociedade. A cena que traduz essa relação mostra Pinky escrevendo poemas durante uma aula de matemática. Aqui, pode-se pensar em uma rejeição do mundo masculino, da razão, do Logos. Na aula em que deveria se inserir nesse mundo refugia-se na arte, na ligação com o mundo afetivo que no homem se dá através do contato com a Anima (contraparte feminina do homem). Por meio dessa interpretação fica claro que há um complexo, ou, pelo menos, uma estrutura dessa natureza está se formando.
O professor percebe que o menino não está prestando atenção na aula, vai até ele, pega o seu poema e o ridiculariza perante a classe, dizendo que “a garotinha se considera um poeta!” – mostrando a relação da poesia com o mundo afetivo, feminino, na sociedade em que Pinky está inserido. Após o ocorrido o menino começa a fantasiar a destruição da escola por uma rebelião dos alunos e a criticar o método educacional mostrado como alienante. Isso fica claro em The Happiest Days of our Lives e em Another Brick in the Wall pt2:

Quando crescemos e fomos para a escola
havia certos professores
que machucavam as crianças
despejando sua zombaria
sobre qualquer coisa que fizéssemos
expondo todas as fraquezas
por mais cuidadosamente que tenham sido escondidas
pelas crianças
mas na cidade sabia-se bem que
quando eles chegavam em casa à noite
suas esposas gordas e psicopatas os surravam
até a beira da morte.
Não precisamos de nenhuma educação
Não precisamos de controle mental
Chega de sarcasmo negro na sala de aula
Professores, deixem as crianças em paz
Ei! Professores! Deixem essas crianças em paz!
Enfim, tudo isso é mais um tijolo no muro
Enfim, tudo isso é mais um tijolo no muro

A rejeição ao mundo masculino iniciada na infância segue até a idade adulta, já que Pinky se tornou um músico, artista. A arte, apesar de não se restringir ao universo feminino, quando é realizada pelo homem tem grande influência de sua anima. Stein (1998) ao escrever sobre a anima, a define como tendo a função de ligação do ego com as camadas mais profundas da psique. No homem essa função é exercida pela sua contraparte interna feminina. A arte, como um meio de dar vazão aos conteúdos inconscientes, não pode prescindir da influência exercida por esse arquétipo. Se tornar músico para Pinky é então uma forma de continuar dissociado do mundo masculino.

O complexo materno
O complexo materno de Pinky é observado em diversas passagens do filme. A primeira vez em que a mãe é mostrada ela aparece à beira da piscina com um carrinho de bebê ao fundo. Cenas de corpos sendo levados na guerra são mostradas enquanto The Thin Ice toca, mostrando como a mãe conta ao filho sobre a morte do pai:

Mamãe ama seu filhinho
Papai também te ama
E o mar pode parecer quentinho pra você, filho
E o céu pode parecer azul
Mas, oh, bebê...
Oh, triste criança
Oh, bebê...

A letra da canção sugere o desamparo da mãe. O filho, como é um bebê, vê o céu como azul e o mar lhe parece quente, mas a mãe, que tem mais experiência e é responsável por ele lhe diz que só parece ser assim. A letra traz a idéia de que o mundo é ameaçador e já mostra uma projeção da tristeza que a mãe sente por seu marido no filho: “Oh, triste criança”.
A figura da mãe é inserida de maneira mais significativa na cena em que Pinky, adulto, está resfriado na cama. Ele relembra o beijo trocado com a mulher no casamento e então se vira na cama. Em seguida, é mostrado que ele estava deitado em uma posição idêntica à que fazia quando dormia na cama da mãe, abraçado com ela. Então, relembrando de situações com a mãe e a esposa, a música Mother toca, como conversas – às vezes fantasiosas – de mãe e filho:

Mãe, você acha que eles vão jogar a bomba?
Mãe, você acha que eles vão gostar dessa música?
Mãe, você acha que eles vão tentar quebrar minha coragem?
Mãe, eu deveria construir o muro?

Mãe, eu deveria me candidatar à presidente?
Mãe, eu deveria confiar no governo?
Mãe, eles vão me colocar na linha de fogo?
Mãe, isto é apenas perda de tempo?

Acalme-se agora, filhinho, não chore
Mamãe vai transformar todos seus pesadelos em realidade
Mamãe vai passar todos os medos dela para você
Mamãe vai manter você bem aqui, sob sua asa
Ela não vai deixar você voar, mas poderá deixá-lo
cantar
Mamãe vai manter o filhinho quentinho e confortável
Ooooh filhinho, ooooh filhinho ooooh filhinho
É claro que a mamãe vai ajudá-lo a construir o muro.

Mãe, você acha que ela é suficientemente boa para mim?
Mãe, você acha que ela é perigosa para mim?
Mãe, você acha que ela vai magoar seu garotinho?
Mãe, ela vai partir meu coração?

Acalme-se agora, filhinho, filhinho não chore
Mamãe vai avaliar todas suas namoradas para você
Mamãe não vai deixar nenhuma pessoa desprezível se
aproximar
Mamãe vai esperar acordada até você chegar em casa
Mamãe sempre vai descobrir por onde você tem andado
Mamãe vai manter seu filhinho saudável e limpo
Oooh filhinho oooh filhinho oooh filhinho
Você vai ser sempre o meu bebê

Mãe, precisava ser tão intenso?

No decorrer da música, são apresentadas diversas situações de Pinky (criança ou adolescente) com a mãe, intercaladas com cenas que mostram sua relação com a esposa. As passagens com a mãe mostram como esta assumiu o papel de protetora do filho – ele acorda no meio da noite e vai para a cama dela, fica desesperada quando ele adoece. No entanto, também mostra outro aspecto de como ele vê a figura materna. Ela entra no quarto dele, que estava tentando ver uma menina trocando de roupa na casa da frente com um cigarro na boca. Ao perceber a porta abrindo, rapidamente finge estar estudando e apaga o cigarro. Esse aspecto castrador é retomado na letra: Mamãe sempre vai descobrir por onde você tem andado, por exemplo.
Pode-se perceber que, apesar da ausência da figura paterna, não há nenhuma menção que possa ser interpretada como uma atitude de desligamento da mãe – pelo contrário – tem-se a impressão de uma relação quase simbiótica entre ela e o filho. Portanto, o desligamento desse mundo materno só é realizado pelas instituições sentidas como implacáveis. Não surge nenhuma figura que realize essa função de maneira amorosa. Assim, o arquétipo materno projetado sobre a mãe é a mãe devoradora, que vai “manter o filhinho sempre limpo” e, ao mesmo tempo, impede ou dificulta sua relação com o mundo externo - “Mamãe vai avaliar todas as suas namoradas para você/ Mamãe não vai deixar nenhuma pessoa desprezível passar”, por exemplo.
Esse tipo de relação entre mãe e filho é abordada por Kast (1997, p. 172) em sua análise de um paciente, Helmut, na qual desenvolve:

[...] sua mãe insegura o manteve por muito tempo em um vínculo, mas não em uma simbiose que transmitisse uma plenitude de vida e sim em uma que exigia retraimento amedrontado e um controle do medo [...] não porque se quer manter algo de bom mas porque se gostaria de excluir angustiadamente o que é ruim, mas com isso também excluir o mundo, declarando-o assim perigoso.

O mundo se torna perigoso para Pinky que precisa sempre da aprovação da mãe (outro sinal de complexo materno apontado por Kast) e constrói um “muro” ao redor de si, mantendo-o separado do mundo externo.
É importante notar que a figura da esposa também é incluída neste contexto, no qual se fala explicitamente da mãe. Isto pode ser explicado pela constatação feita por Jung (2008, par. 162) de que em todo complexo materno masculino há uma significativa participação da anima, já que é a mãe a primeira figura a receber a projeção deste arquétipo.
Nas passagens em que a esposa aparece com Pinky ele está sempre distante, sem demonstrar qualquer afeto. Ela acaba se apaixonando por outro homem e tem um caso com ele. Uma hipótese a ser levantada em relação a isso é que há uma tentativa de projetar na mulher o complexo materno – como ocorre no caso de Helmut, descrito por Kast - mas, ela não aceita, ou não consegue viver com essa projeção e rompe com Pinky.
O rompimento ocorre após a música Mother. Na cena, ele aparece em um telefone público tentando ligar para a mulher que estava viajando e a telefonista responde que um homem atendeu ao telefone e desligou. Ele, então, senta no chão e a música Empty Spaces – na qual o desamparo de Pinky pela perda da mulher é evidenciado nos versos: “O que nós devemos usar para preencher os espaços vazios?/ Como eu devo completar o muro?” – é tocada enquanto uma fantasia sobre o feminino é mostrada. Nessa fantasia, duas flores – uma maior e outra menor – se balançam uma de frente para a outra. As flores começam a se acariciar e a flor maior começa a adquirir a forma de uma vagina enquanto a menor adquire a forma de um pênis e sua dança passa a se assemelhar cada vez mais com um ato sexual. A flor feminina engole delicadamente a flor masculina até que a flor masculina penetra na feminina – cujas pétalas se tornam pernas envolvendo uma a outra. Após esse momento as duas flores se transformam em serpentes que se atacam ferozmente e depois assumem novamente as formas originais. No entanto a feminina adquire uma grande luminosidade e atrai a masculina. Quando esta se aproxima, a outra se torna novamente uma serpente – dessa vez alada – devorando a flor masculina e voa para longe da câmera.
Essa fantasia demonstra claramente a forma como Pinky vê a figura feminina. Se sente dominado por ela, destruído. O fato de o feminino devorar o masculino também é significativo. Tanto a mãe como sua esposa o devoram. A mãe com sua superproteção o impede de adquirir autonomia e a mulher, com o rompimento, quebra sua ligação com o mundo externo. A anima, que antes era projetada na mulher, se torna ameaçadora, leva o ego masculino para um terreno desconhecido (o inconsciente) de forma violenta.
Depois do rompimento com a mulher, Pinky tem uma crise psicótica ao levar uma garota para sua casa. Começa a quebrar todo o apartamento e a garota foge assustada. Quando se acalma, raspa todos os pêlos do corpo e começa a enfileirar os objetos destruídos com as drogas que tomava. A música Don´t Leave Me Now é tocada, mostrando o desamparo que a perda da mulher causou. Na música Pinky diz:

Ah, querida, não me deixe agora
Não diga que é o fim da estrada
Lembre-se das flores que eu mandei
Eu preciso de você, querida
Para mostrar a picadora de papéis aos meus amigos
Ah, querida, não me deixe agora
Como você pode partir?
Quando você souber como eu preciso de você
Para me quebrar numa noite de sábado
Ah, querida
Como você pôde me tratar desta maneira?
Indo embora...
Eu preciso de você, querida
Por que você está indo embora?
Ah, querida...

Durante a música Pinky tem uma alucinação. Ele está sendo ameaçado pela flor/serpente feminina, que tenta engoli-lo e tenta fugir dela, mas acaba se recolhendo em um canto tentando se proteger.
A ruptura com o mundo externo é então completada na música Another Brick in the Wall pt.3:

Eu não preciso de braços ao meu redor
E eu não preciso de drogas para me acalmar
Eu vi os escritos no muro
Não pense que preciso de algo, absolutamente
Não! Não pense que eu preciso de alguma coisa afinal
Enfim, isso tudo foram apenas tijolos no muro
Enfim, vocês todos foram apenas tijolos no muro

Enquanto essa música é tocada, cenas da mãe, do pai na guerra, da escola e da mulher se intercalam com os gritos de Pinky. O “muro” que dá título ao filme, é completado com o desamparo que a separação da mulher proporciona, fechando o protagonista para qualquer relação com o mundo externo em uma tentativa de preservar a psique de uma realidade insuportável.
O problema desse mecanismo de defesa é apontado por Jung (2008, par. 150), que argumenta que: “A repressão e desvalorização de uma função tão importante como a religiosa tem, naturalmente, enormes repercussões na psicologia do indivíduo. Pelo refluxo dessa libido, o inconsciente se fortalece extraordinariamente, passando a exercer uma influência colossal sobre a consciência”. Apesar de o caso não ser de uma desvalorização e repressão da religiosidade, Pinky tenta reprimir e negar sua própria necessidade de contato com o mundo externo. Pode-se dizer, então, que a consciência se fecha para o mundo externo. A energia dirigida a esse pólo é, portanto, toda voltada ao inconsciente, ativando os complexos de maneira avassaladora para seu ego já fragilizado.
A ativação dos complexos neste caso trouxe para consciência conteúdos que o ego não é capaz de elaborar ou lidar. Sua consciência é possuída pelos complexos não integrados e fortalecidos por sua atitude unilateral, o que faz com que haja uma ruptura – psicose - na qual Pinky se torna um prisioneiro do seu mundo interno. A consciência se torna frágil e a energia naturalmente canalizada a ela é direcionada ao inconsciente. Nessa situação o ego – também um complexo, mas da consciência – se encontra dominado em um estado de confusão psíquica na qual os conteúdos reprimidos e arquetípicos o atravessam livremente.
Na psicose o ego perde sua autonomia ao se tornar indiferenciado, o que impede qualquer integração do conteúdo inconsciente que o domina pela força que este adquire com o “refluxo da libido”. Ele deixa de ser o centro da consciência e passa a dividir essa função com outros complexos energizados que assumem o controle da consciência. A psique se torna rachada, não há mais um centro de energia consciente que consegue – na maior parte das vezes – manter certo controle sobre a consciência. Diversos complexos também se alternam com o ego nessa função tendo, como resultado, “subpersonalidades” diferentes no centro da consciência, como Murray Stein aponta (2006, p. 54).
Como a psique possui uma atividade autorreguladora, a atitude unilateral de Pinky de se fechar ao mundo externo é compensada em seus delírios. Estes são mostrados nas cenas seguintes, nas quais o mundo externo aparece de maneira assustadora e persecutória e obrigam Pinky a se confrontar com ele.
Provavelmente, a arte seria uma maneira de organizar os conteúdos que invadem o ego nesse momento e ainda servir como um lugar nos quais seus conflitos poderiam começar a ser elaborados. Entretanto, a ruptura com o mundo externo impede que a arte exerça essa função. Pinky, como artista, já tem uma comunicação com o mundo inconsciente por meio da música. Porém, essa comunicação só é possível quando a arte serve como um elemento sintetizador do conflito entre o mundo interno e externo, a negação do último resulta em uma unilateralidade com a qual o ego não pode conviver e nem sua arte ocorrer de maneira organizadora, reparadora.
A música, sua arte, acaba também se tornando persecutória nesse processo. As músicas mostradas após Another Brick in the Wall pt III não tem mais um sujeito ativo, relembrando e sentindo. Pinky é tragado pelo seu inconsciente e se torna um boneco sem rosto ou vontade – como é mostrado na cena do seu julgamento.

O julgamento
Após a música Another Brick in the Wall pt III, o filme foca exclusivamente as fantasias de Pinky – com algumas exceções de cenas em que o protagonista aparece ao lado de outras pessoas de maneira passiva e quase mecânica. As fantasias mais significativas para análise dos complexos parentais presentes no filme ocorrem nas últimas cenas.
Pinky aparece vestido como um oficial nazista para um grande público e começa a dar o seguinte discurso para a platéia, que o escuta atentamente:

Então você pensou que poderia gostar de ir ao show
Para sentir a quente emoção da confusão
Aquele ardor de um astronauta
Eu tenho algumas notícias ruins para você querido
Pinky não está bem, ele ficou no hotel
E eles nos mandaram pra cá como uma banda substituta
Agora nós vamos descobrir o quão fãs vocês realmente são
Há alguma bicha no teatro esta noite?
Ponha-os contra o muro!
Lá está um na luz do holofote, ele não parece direito pra mim
Ponha-os contra o muro!
Aquele parece ser judeu!
E aquele é um negro!
Quem deixou toda essa escória entrar?
Tem alguém fumando maconha e outro com manchas!
Se eu tivesse minha chance
Eu fuzilaria todos vocês!

O discurso, presente na música In the Flesh!, mostra uma atitude autoritária e militar. Essas características não condizem com o personagem que vinha até então sendo mostrado. O trecho em que diz que Pinky não pode comparecer leva a concluir que aquele que está fazendo o discurso é, na verdade, sua sombra – os aspectos rejeitados por sua persona de artista. Essa análise também é corroborada pelas características militares que são criticadas por Pinky durante todo o filme e reaparecem aqui como sendo características próprias de sua personalidade.
Quem assumiu o poder sobre o ego nesse momento é sua sombra. Este aspecto de sua personalidade, após o discurso, leva a platéia do show “aprovada” para as ruas e começa-se uma perseguição a todos que estão, de alguma forma, ofendendo a visão política da sombra. No final da seqüência, o próprio Pinky é levado a um julgamento.
A cena – feita em animação - do julgamento mostra Pinky rodeado por um muro muito maior do que ele, que fica encolhido em uma parede. O julgamento se desenrola enquanto The Trial é tocada:

Promotor: Bom dia, Verme Vossa Excelência!
A Coroa provará que o prisioneiro, que agora está perante Vós
Foi preso em flagrante mostrando sentimentos
Mostrando sentimentos de uma natureza quase humana
Assim, não dá!
Chame o professor!

Professor: Eu sempre disse que ele não daria em nada que preste
No final, Vossa Excelência
Se tivessem me deixado agir do meu jeito, eu o teria posto na linha
Mas minhas mãos estavam atadas! Os artistas e os mais sensíveis
O deixaram sair imune. Deixe-me martelá-lo hoje

Pinky: Crazy... toys in the attic I am crazy,
Truly gone fishing.
They must have taken my marbles away.

Júri: Crazy... toys in the attic he is crazy

Juiz: Chame a esposa do réu!

Esposa: Seu merdinha, você está nessa agora
Espero que joguem a chave fora
Você deveria ter conversado mais comigo, mas não
Você tinha que agir do seu jeito
Você tem destruído muitos lares ultimamente?
"Apenas 5 minutos, Verme Vossa Excelência, ele e eu a sós"

Mãe: Bebêêêê!
Venha pra mamãe, bebezinho
Deixe-me segurá-lo em meus braços
Senhor, eu nunca quis que ele se metesse em encrenca
Por que ele teve que me abandonar?
Verme, Vossa Excelência, deixe-me levá-lo pra casa

Pinky: Crazy, over the rainbow, I am crazy. Barras na janela.
Era para ter uma porta no muro quando eu entrei

Júri: Crazy, over the rainbow, He is crazy,.

Juiz: A evidência diante da corte é incontestável
Não há necessidade de o júri se retirar
Em todos os meus anos de juiz, nunca ouvi falar
De alguém mais merecedor da pena máxima da lei
A forma que você as fez sofrer, suas adoráveis esposa e mãe
Enche-me de vontade de defecar

Promotor: Vai nessa, Juiz! Merda nele!

Juiz: Já que, meu amigo, você revelou seu medo mais profundo
Eu o condeno a ser exposto diante dos seus semelhantes
Derrubem o Muro!

Júri: Derrubem o Muro!

A situação de julgamento, como é apontada por Murray Stein (1979) é uma situação do mundo masculino, paterno. Portanto, Pinky é julgado pelo seu próprio complexo paterno, ele inclusive é acusado de mostrar seus sentimentos humanos. Como evitou elaborá-lo, fugindo deste, o complexo é energizado e ganha força para subjugar o ego fragilizado. Também é interessante notar como as figuras paternas (juiz, promotor, professor) aparecem como vermes e, mesmo assim, Pinky está em um estado tão frágil que não consegue se defender. A única personagem que vem em sua defesa é a mãe (em forma de vagina, que o envolve), que tenta retirá-lo do contato e do julgamento do mundo masculino para “voltar pra casa”, para a proteção materna.
A acusação do professor se torna, então, muito coerente se for considerado que ele nunca passou por esse “julgamento” necessário para adentrar no mundo fora do núcleo familiar e, mais ainda, no mundo masculino (PEREIRA, 2002, p. 289). A mãe devoradora impediu que ele passasse por essa experiência de amadurecimento. No entanto, internamente, há a necessidade do julgamento e da humilhação que o fazem “derrubar o muro” e, talvez, retomar o contato com o mundo externo de uma nova maneira.
A última cena do filme não mostra o que acontece após a destruição do muro. Apenas são mostradas crianças recolhendo pedaços do muro derrubado, enquanto a música Outside the Wall revela o que acontecia com as pessoas a volta de Pinky enquanto ele passava por esse processo:

Sozinhos, ou de dois a dois
Aqueles que realmente te amam
Andam para cima e para baixo
Do lado de fora do muro
Alguns de mãos dadas
Outros abraçados em grupo
Os sensíveis e os artistas
Estão a tua espera

E quando tiverem dado tudo o que tem
Alguns cambalearam e caem, porque afinal, não é fácil
Lançar o teu coração contra um muro feito por um louco

E quando tiverem dado tudo o que tem
Alguns cambalearam e caem, porque afinal, não é fácil

A cena das crianças recolhendo os pedaços do muro pode ser entendida como uma metáfora para expressar a capacidade que os complexos têm de serem passados pelas diferentes gerações (STEIN, 2006), quando mal resolvidos. O destino de Pinky permanece em aberto, mas a música mostra dificuldade em lidar com ele e como seus complexos o tornaram incapaz de estabelecer vínculos.

REFERÊNCIAS
JUNG, C.G. Aspectos do arquétipo materno. In: Arquétipo do inconsciente coletivo. O.C.9,1. São Paulo: Vozes, 2008.
JUNG, C.G. Psicologia do inconsciente. O.C. 7. São Paulo: Vozes, 2007.
KAST, V. Pais e filhas mãe e filhos: caminhos para a auto-identidade a partir dos complexos paternos e maternos São Paulo: Edições Loyola, 1994.
PEREIRA F., A. O pai e a psique. São Paulo: Paulus, 2002.
STEIN, M., Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 1998.
STEIN, M., O pai devorador. In: BERRY, Patrícia (Ed). Pais e mães. São Paulo: Símbolo, 1979.
WALL, The. Direção: Alan Parker. Produzido por: Alan Marshall. Inglaterra, 1982. DVD (95 min). Baseado no álbum “ The Wall”, de Pink Floyd.
WIMER, H. (Ed). Mother, Father. Wilmette: Chiron, 1990.


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