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III Simpósio

A Sombra na Política: Corrupção-Causas, Origens e Cura
7 de novembro de 2005


Abertura

Profª.Dra. Liliana Liviano Wahba

O III Simpósio do Núcleo de Estudos Junguianos do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica realizado em novembro de 2005 aborda um tema de atualidade e relevância, cuja patologia e efeitos devastadores na sociedade nos obrigam a refletir e a buscar soluções nos diversos âmbitos de atuação e de conhecimento. Propusemo-nos a debater a sombra e a corrupção na política aliando o pensamento psicológico com contribuições de representantes destacados do Direito, da Psiquiatria, da Administração e da própria Política.

O cotejo das diferentes perspectivas envolvidas na aproximação do problema da corrupção, cotidianamente presente na realidade brasileira, resulta num campo profícuo para o estabelecimento de parâmetros de reflexão que podem favorecer a ampliação de nosso campo de consciência. O conhecimento e o reconhecimento da nossa história e realidade é o primeiro e fundamental ato para que possamos nos apropriar de uma conduta socialmente responsável.

Temos um encontro promissor e enriquecedor iniciado com a conferência da Profa. Dra. Denise Gimenez Ramos, responsável pela implantação do Núcleo de Estudos Junguianos e coordenadora do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC de São Paulo. O tema abordado por ela, nesta conferência, é fruto de uma pesquisa sobre os complexos culturais ativos no povo brasileiro. Este trabalho foi publicado em 2004 nos Estados Unidos sob a organização de Thomas Singer e Samuel L. Kimbles. The Cultural Complex: Contemporary Jungian Perspectives on Psyche and Society é uma importante contribuição de autores junguianos para a compreensão de problemas sócio-culturais da atualidade. É um privilégio para os profissionais brasileiros dedicados ao estudo da psicologia junguiana ter a Profa. Denise Ramos envolvida num projeto desta monta.

No Simpósio, as áreas da Política, Psiquiatria, Direito Constitucional e Administração ganham expressão, respectivamente, pelas presenças do Senador Eduardo Suplicy, do Dr. Carlos Briganti e Dra. Maria Garcia. Agradecemos ao senador Eduardo Suplicy com sua agenda muito atarefada por estar aqui conosco, já que está vindo diretamente do aeroporto. A idéia geral do debate é que cada um vai apresentar uma visão sobre o tema “a sombra na política”, e depois haverá perguntas do público. Temos à mesa então o senador Eduardo Suplicy, o professor Carlos Briganti, médico psiquiatra, a professora Denise Ramos, que realizou a palestra inaugural, e a professora de direito constitucional da PUC a doutora Maria Garcia. Iniciaremos a mesa com o senador Eduardo Suplicy. Em seguida, a professora Maria Garcia, professora livre docente da PUC, professora de direito constitucional e educacional. Ela tem livros importantes publicados dos quais os mais recentes são: Desobediência civil, e Os limites da ciência, da editora Revista dos Tribunais. Finalmente, um amigo da casa, doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Doutor Briganti, médico psiquiatra e psicoterapeuta pela Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, escritor, autor de diversos livros, cronista de jornais e revistas, formou centenas de psicoterapeutas no Brasil desde o NEPP - Núcleo de Estudos em Psicologia e Psiquiatria, Ágora – Centro de Estudos neo-reichianos, MIP – Movimento Interdisciplinar de Psicossomática e, em vários outros países, durante os últimos vinte anos, tais como Alemanha, Tchecoslováquia e Itália.

Corrupção: sintoma de um complexo?
Profª.Dra. Denise Gimenez Ramos



Corrupção como fenômeno comportamental

Corrupção pode se analisada de diferentes ângulos, pois é um fenômeno complexo e que exige para sua compreensão certamente um estudo multidisciplinar.
Sabemos que a corrupção, como parte da rotina do brasileiro, é uma sombra endêmica e enraizada na cultura.

Corrupção pode aqui ser definida como “mau uso do poder para auto benefício ou vantagem para si mesmo. Um poder que pode, mas não necessariamente, residir no domínio público. Além do dinheiro, o benefício pode tomar a forma de proteção. Tratamento especial, recomendação, promoção ou favores de mulheres ou homens”. (Leisinger, 1996)


Considerando, portanto, dentro desse enfoque, poderíamos perguntar quais os fatores psicológicos que poderiam propiciar ou favorecer esse tipo de comportamento numa cultura. Se for verdade que a corrupção é universal, porque ela é mais freqüente em determinados países? Quais seriam os fatores propiciatórios desse comportamento?

Diariamente lemos nos jornais notícias sobre novos assuntos públicos envolvendo corrupção e muito freqüentemente novas informações sobre milhões de dólares desviados para contas privadas em paraísos fiscais. No dia-a-dia, o comportamento transgressor ou de pequeno suborno atormentam o brasileiro. Alguns, para não parecerem “bobo”, assumem o papel de “esperto” e corrompem ou aceitam a corrupção como meio de sobrevivência. Os indignados são considerados “babacas” e raramente sentem-se recompensados por sua honestidade. Esse comportamento destrutivo parece tão enfronhado na cultura que já se perdeu a data de sua origem.

Em 2002, numa pesquisa realizada pela Goettingen University and Transparency Internacional, Brasil foi colocado em 45º lugar numa escala mundial de corrupção internacional.(2002-Perception Index–Goettingen University and Transparency International) e em 2005 passou para 62º lugar.
A questão é: por que o Brasil sofre tenaz e recorrentemente da praga da corrupção e da impunidade por parte das figuras públicas de autoridade?

Considerando a corrupção como fenômeno universal com múltiplas soluções, podemos aqui refletir sobre a dificuldade de se chegar ao “miolo do problema” e perguntar quais são raízes desse problema não só moral e ético mas também de comportamento.

Realmente, a maioria das pesquisas sobre corrupção centra-se em variáveis relacionadas a modelos sistêmicos dinâmicos de corrupção, efeitos da corrupção na política, bem estar, projetos de desenvolvimentos, etc. As causas geralmente se baseiam em tipos de sistemas legais, na ética, no nível sócio econômico e educacional e nas formas de contenção e repressão. Quando a questão psicológica é abordada, geralmente ela refere-se a problemas sociais e educacionais. Na sua maior parte, os discursos e artigos escritos sobre o assunto, têm um tom moralista e apontam a ganância econômica e a falta de ética, como as grandes motivadoras desse mal. É surpreendente a falta de pesquisas em psicologia que analisem profundamente os determinantes inconscientes dessa patologia. Os poucos trabalhos encontrados centram-se no estudo da criminologia, da delinqüência, das questões de poder e nos mecanismos sócio-patológicos.

Portanto, uma das tarefas principais deste ensaio é descobrir o fio condutor de como a corrupção foi estabelecida no solo brasileiro.

Como veremos, a corrupção, não é somente uma questão de ética ou ganância, mas também um sintoma patológico na identidade coletiva e no Brasil origina-se provavelmente num complexo de inferioridade.

 

A. Descobrindo o conflito original

Na ocasião da comemoração dos 500 anos de fundação do Brasil (ano 2000) inúmeros debates, artigos e livros vieram à tona, na tentativa de explicar o que é a identidade brasileira. Num país de vasta extensão territorial e formado por três raças distintas (indígena, branca e negra), com correntes imigratórias inclusive japonesas e coreanas, falar de identidade é um assunto bastante complicado. Ao rever a literatura mais significativa, um tema ressalta e abre caminho para nossa investigação: o sentimento implícito de inferioridade ou o que alguns chamam de “complexo de cucaracha” ou de “latino americano subdesenvolvido”.

Embora nem sempre explicitamente verbalizado, podemos facilmente observar no cotidiano, na literatura, nos mitos, filmes e programas de TV, exemplos desse sentimento de inferioridade, principalmente quando o brasileiro classe média se compara com o estrangeiro.

Seria então a corrupção um comportamento compensatório a esse sentimento de inferioridade marcante?

Seria a corrupção uma forma de burlar a lei e autoridade por parte daquele que se sente infantil, fraco ou impotente para contestá-la abertamente?

Com essas questões em mente e com base em estudos psicológicos, sociológicos e textos jornalísticos, três vertentes foram tomadas:

1) observações de campo;
2) pesquisa junto a colegas de profissão,(queria me assegurar se minhas
percepções e observações coincidiam ou não com ao do meu grupo de
referência);
3) pesquisa bibliográfica, (que poderia ou não confirmar a intuição).

 

I. Primeiras observações

Os brasileiros de acordo consigo mesmo:

É corrente entre a classe média paulistana, e talvez pudesse generalizar – entre a classe média brasileira - a constante referência a adjetivos desairosos em relação à própria nacionalidade. Anedotas e casos são contados na televisão brasileira e no dia-a dia denegrindo a imagem do brasileiro. As comparações com os povos do “primeiro mundo” são constantes, retratando o brasileiro como incompetente, ignorante, malandro e corrupto.

Dois fatos recentes corroboraram para minhas afirmações, ambos acontecidos no aeroporto ao chegar de uma cidade européia:

- Só no Brasil mesmo! Temos que dar toda a volta em vez de seguirmos reto! Hei terrinha de gente burra... Grita de modo estridente uma jovem brasileira saindo do avião. A passageira em questão reclamava de ter que andar não mais do que 100 metros até as escadas rolantes que a levaria para o saguão do aeroporto. Outros acenavam com a cabeça, aparentemente concordando com a jovem irritada.

Nota: a passageira acima, sem reclamar, tinha andado cerca de 1500 metros até o portão de embarque pelos longos corredores de um aeroporto europeu, onde as esteiras estavam paradas.
- Puxa, mas que fila! É um absurdo termos que fazer fila, nem sequer esses caras (policiais) sabem organizar uma fila para ver os passaportes! O passageiro reclama de ter que mostrar seu passaporte para os agentes federais, embora a fila fosse rápida. Passávamos direto pelo agente federal, que mal olhava a fotografia. Em menos de 15 minutos estávamos livres.

Nota: é altamente provável que esse mesmo senhor ao chegar na Europa, após uma longa e cansativa viagem noturna, tenha ficado no mínimo (como fiquei) umas duas horas na fila de checagem de passaporte. Nenhuma cadeira ou qualquer conforto era oferecido, enquanto passavam direto, sem fila, os passageiros sorridentes da comunidade européia.

Duas cenas rápidas e ao mesmo tempo bastante reveladoras.

O brasileiro recém-chegado do “primeiro mundo” rejeita sua pátria, ressentido inconscientemente das diferenças e por vezes do tratamento discriminador a que fora sujeito. Sem se dar conta, imita o “superior”, repetindo a discriminação, agora tendo a si mesmo como agente. As duas observações escolhidas são corriqueiras e fazem parte da experiência de um bom número de brasileiros.
Piada corrente presente na internet e contada com freqüência (uma colega norte-americana contou-me que numa visita ao país ouviu a mesma de dois guias durante sua estadia).

“Dizem que, quando Deus criou o mundo ouviu uma série de reclamações. Habitantes de outros países disseram que Ele tinha sido injusto criando o Brasil como uma terra rica, dotada de extraordinária beleza. Um país banhado eternamente pelo sol, que ademais não tinha furacões, nem tempestades, neve, terremotos, desertos ou animais ferozes. ‘Isto não é justo’, disseram em coro para Deus. Mas, Ele calou a inveja dos reclamantes, replicando: ‘É! Mas esperem para ver o tipo de gente que eu vou colocar lá”.

Essa anedota supõe uma relação inversa entre cultura e natureza. Isto é, quanto mais pródiga a natureza, menor o esforço de trabalho e daí a degeneração humana.
“O Brasil não tem jeito” ou o “Brasil não é um país sério” (frase originalmente atribuída ao General francês De Gaulle) ditas em momentos de crise revelam que há até uma certa uma vergonha de ser brasileiro.

Outra frase famosa é a do escritor Nelson Rodrigues: “O brasileiro continua sendo aquele Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. A nossa tragédia é que não temos um mínimo de auto-estima”.

Segundo Kujawski (2001), há uma certa obsessividade no Brasil quanto a uma própria incompetência coletiva, com um misto de auto desprezo e falta de informação.“Esse sentimento nacional de inferioridade resulta, de imediato, da nossa comparação com as nações desenvolvidas, ressaltando nossos reiterados fracassos econômicos, nossa instabilidade políticas, atraso tecnológico e desigualdades sociais. No entanto, as verdadeiras raízes dessa auto-abjeção coletiva, dessa vergonha generalizada de ser brasileiro remontam às nossas origens históricas”.

Os brasileiros de acordo com os estrangeiros:
Embora não caiba aqui um estudo sobre a imagem do brasileiro no exterior, algumas observações são pertinentes à medida que foram incorporadas mais ou menos conscientemente pela cultura. F. Pike (2001), no seu artigo sobre mitos e estereótipos norte-americanos sobre a América Latina mostra que enquanto os Estados Unidos são geralmente relacionados à cultura, a América Latina liga-se à natureza. Na América do Norte temos o símbolo do Tio Sam, homem branco, lutador inveterado que subjuga a selvageria e a natureza. Do outro lado, temos as figuras de negros, índios, crianças, mulheres e pobres, seres, portanto, incapazes de dominar a natureza representando a América Latina. A fixação desses estereótipos presentes até hoje, provavelmente alcançou o seu auge durante a política da Boa Vizinhança de Franklin Roosevelt entre os anos de 1933 e 1945. Na época, os cartunistas norte-americanos costumavam fazer caricaturas de seus vizinhos do sul como um povo sonhador e despreocupado com o trabalho, sugerindo claramente uma inferioridade latino-americana.
Nessa trilha, os estúdios da Walt Disney criaram um personagem chamado Joe Carioca (durante a Segunda Guerra Mundial) que contracenaria com o Pato Donald representando os brasileiros. Ele é personificado como um papagaio (sem fala própria) frágil e desajeitado, preguiçoso e covarde, que compensa seus fracassos com fantasias megalomaníacas.

Mais recentemente (2002), o canal de televisão americano Fox, retratou num desenho animado, uma família americana, os Simpsons, que vem para o Brasil procurar um garoto da favela carioca com quem a filha mais velha se correspondia pela internet. Ao chegarem, ficam sabendo que o garoto está desaparecido, então a família decide iniciar uma busca para encontrar o pobre menino brasileiro abandonado que precisa ser salvo pela família americana.

Temos assim, um Brasil retratado como o país da malandragem ou da bandidagem, um país que apesar de suas inúmeras riquezas naturais tem uma sociedade corrompida e dominada pela criminalidade, fragilizada pela pobreza e pela carência econômica. Mais uma vez, as projeções dos estrangeiros sobre o Brasil fixam-se em um recorte depreciador, e também distorcido culturalmente, pois o Rio de Janeiro é aí representado como a terra do mambo, da rumba e da conga.

Destaco aqui duas afirmações de estrangeiros, que sintetizam inúmeras outras recolhidas:
“Os brasileiros são muito bons, muito criativos. O problema é que sofrem de falta de auto-estima”. Martin Sorrel. (famoso empresário inglês, dono inúmeras agências de publicidade e empresas de marketing e pesquisa multinacionais). (Revista Veja, 8 de Maio, 2002)

“O Brasil quase perdeu a identidade....Acha que só o estrangeiro tem a solução. O Brasil tem muitos recursos...É preciso recuperar a auto - estima. Passei 40 anos estudando o Brasil, especialmente essa coisa de pessimismo e otimismo. ....Aquela coisa de dizer que o Brasil não dá.” T. Skidmore. (sociólogo americano e autor de vários livros sobre o Brasil) (Jornal: O Estado de São Paulo, 6 de outubro, 2002).

 

II. Pesquisa sociológica e antropológica

Uma pesquisa (SEBRAE, 2002) realizada por 25 especialistas de diferentes áreas das ciências humanas com o objetivo de definir um “perfil” da brasilidade compreendida como o conjunto dos traços peculiares ao estilo cultural, estético e comunicativo dos brasileiros vem reforçar essas observações. Embora o estudo tivesse sido encomendado por empresas de exportação, e, portanto tinha por objetivo relacionar particularmente as características que poderiam oferecer, a uma empresa que as levasse em consideração, uma vantagem competitiva tanto no plano de marketing, como na penetração dos mercados internacionais. Nesse estudo, interessantes qualidades psicológicas foram ressaltadas. Sintetizando os resultados, encontrou-se que atualmente os principais pontos fortes do Brasil, em ordem decrescente de importância, são os seguintes:

1. pluralismo racial e cultural;
2. os elementos culturais provenientes de tradições e experiências de vida autenticamente populares;
3. a alegria e o otimismo;
4. as características pluralistas e sincréticas da cultura;
5. a ênfase nos relacionamentos pessoais;
6. a hospitalidade e a cordialidade; e
7. a criatividade.


Os principais pontos fracos do Brasil são, em ordem decrescente de importância:

1. a falta de auto-estima, a valorização apenas do que vem de fora.
2. a falta de confiança nas autoridades e no governo, que se reflete na desconfiança geral em relação às
empresas públicas;
3. um certo desprezo em relação a questões técnicas;
4. a idéia de malandragem como necessidade de tirar partido de tudo, sobretudo dos mais humildes;
5. a escassa divulgação do trabalho cultural brasileiro em todos os setores;
6. personalismo arrogante que se coloca acima da lei;
7. a convicção de que todo mundo engana só para ganhar mais dinheiro;
8. a ignorância como “profissão de fé” (“se eu consegui ganhar dinheiro sem ler único um livro, então...”);
9. a desonestidade em nome da família e dos amigos; e
10. a falta de compromisso em relação a acordos firmados.

Uma das conclusões mais significativas foi que o contato com as chamadas culturas desenvolvidas muitas vezes incrementa o sentimento de inferioridade. Nesse sentido, existe no Brasil uma forte e infundada crença de que aquilo que vem do exterior é sempre melhor. Os autores consideram ainda que a falta de informações continuará a reforçar essa tendência ao desprezo pelo que é brasileiro e à valorização do que está fora. Eles concluem que os brasileiros são, também, vítimas de um latente complexo de inferioridade. A criatividade é vista como “malandragem” ou “jeitinho”.

Com efeito, podemos observar que o fato do brasileiro não perceber a dimensão de seus próprios valores culturais tem levado ao aprofundamento de uma marcante falta de confiança em si próprio, com o risco de se percorrer um caminho inverso que seria o da supervalorização. Isto é, poderia haver uma rápida enantiodromia, onde o nacionalismo desmedido levaria a uma perigosa inflação do ego coletivo.

A pesquisa é concluída com uma ênfase na necessidade de se realizar um trabalho de sensibilização que tenha por objetivo reforçar o valor da criatividade e a consciência das qualidades específicas a respeito da própria cultura. Entretanto, sabemos que o ponto de equilíbrio quanto à própria imagem não pode ser obtido somente pelo reforço dos valores positivos. Sem um trabalho de consciência da sombra coletiva, isto é, sem a análise do complexo de inferioridade mais uma vez observado, qualquer trabalho que se apóie somente no nível educacional será pouco eficaz.

 

III. Pesquisa com os analistas

Com a finalidade de identificar as percepções relativas ao complexo cultural brasileiro, foi realizada uma pesquisa entre os analistas e estudantes (n=144) junguianos membros das duas sociedades de analistas filiadas à International Association for Analytical Psychology, a Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e a Associação Junguiana do Brasil.

A pesquisa compreendeu o envio de uma questionário com questões referentes a comportamentos sintomáticos presentes no cotidiano sócio - cultural brasileiro e a forma como esses comportamentos se manifestam na sociedade e na cultura (mitos, contos, ditos populares, arte etc.).
Uma das questões solicitava aos respondentes que vendo o Brasil como um paciente, procurassem identificar quais seriam o(s) complexo(s) que estariam por trás desses sintomas. E por fim, foi perguntado se o analista teria identificado em si mesmo, quando em viagem ao exterior, a emergência de algum sentimento peculiar em razão do contraste experimentado e no caso afirmativo qual a cultura e os sentimentos percebidos.

Foram obtidos 33 questionários (32 analistas e 1 estudante) de volta. O baixo número de respostas deveu-se,segundo os colegas, à dificuldade das questões. Alguns consideraram que cada questão deveria ser respondida com uma tese ,outros disseram que precisariam de muito tempo ou de uma pesquisa de campo e, portanto se abstiveram de responder. Um analista disse que a primeira reação foi a de que : “não entendi nada , sentia-me muito estúpido, entretanto voltando para o título me dei conta que essa inferioridade ou resistência diante de coisas muito abstratas poderia ser o complexo falando em primeira instância (interpretação de minha própria contra transferência)”.

Como veremos, essa confissão inicial revelará o principal sintoma da sociedade brasileira aqui detectado. E, o resultado do questionário, apesar da resistência, mostra dados interessantes que corroborarão com as observações de campo e com material bibliográfico levantado.

As respostas foram divididas em 6 grandes categorias:

1. Sentimento de inferioridade.
2. Transgressão de leis e corrupção
3. Ausência de heróis
4. Narcisismo, exibicionismo, permissividade excessiva.
5. Puer aeternus
6. Tipologia

 

Categoria 1 – Sentimento de Inferioridade
Nessa categoria houve uma unanimidade: 100% dos respondentes descreveram comportamentos típicos e freqüentes que se referem à : baixa auto estima do brasileiro; dependência; insegurança ; desvalorização do folclore e de sua expressão mítica; piadas contra si mesmo (contra brasileiro); falar mal do próprio país - Brasil (freqüentemente comparando-o negativamente a outro país do hemisfério norte); desconsideração ou desvalorização com a língua (no que se refere a vocábulos de origem indígena) e supervalorização da língua estrangeira; vergonha de sua origem quando não-européia; busca e super - valorização da ancestralidade européia; vergonha de ser brasileiro; sentimento de impotência e de incapacidade; sentimento de ser eternamente “colônia” não tendo desenvolvido uma cultura de elite; desvalorização dos governantes e dos sistemas operacionais “na Europa tudo funciona”, “só no Brasil acontecem essas coisas”, sensação que no Brasil ainda tudo está por ser feito, inveja do nacionalismo do estrangeiro (um grupo de negociadores norte-americanos uma vez afirmou que era fácil negociar com os brasileiros porque eles não disputavam seus direitos nem defendiam sua terra); aceitação da classificação de país do terceiro mundo, terceira classe, ainda (eternamente) em desenvolvimento.

Outro aspecto dessa categoria que aparece em grande número de resposta (90%) é a super valorização do estrangeiro e de produtos do exterior. Ao achar tudo que tem e faz inferior, o brasileiro típico tende: a imitar o estrangeiro, a super valorizar qualquer produto exterior e a ter grande abertura para qualquer produto material ou cultural do exterior.

 

Categoria 2 - Transgressão de leis e corrupção
Oitenta por cento dos respondentes descreveram comportamentos referentes ao que é chamado no Brasil de “lei de Gerson”. Gerson foi um famoso jogador de futebol que nos anos setenta fez uma propaganda de cigarros associando a marca que fumava ao comportamento de esperteza, dizendo que ser esperto é “tirar vantagem de tudo”. Foi surpreendente o efeito dessa propaganda na ocasião e mais surpreendente ainda que passados vários anos a “lei de Gerson” ficou sendo conhecida como o comportamento do malandro- vencedor. Demorou um certo tempo para que essa propaganda fosse considerada anti–ética, mas até hoje fala- se do indivíduo de caráter duvidoso , como seguidor da lei de Gerson, por vezes havendo uma certa ambigüidade entre a admiração pelo malandro - esperto e a crítica moral. Nessa categoria entraram também o comportamento de burlar leis (há leis que pegam e leis que não pegam) e impostos (porque são injustos ou porque o dinheiro vai para o bolso dos políticos). Dar propina, não obedecer à hierarquia, corromper e ser corrompido passam a ser então uma conseqüência . Em várias respostas, os analistas consideram o comportamento corrupto associado ao sentimento de impotência. Ao sentir que não tem poder para mudar seu status ou para mudar os estado de direito, o único mecanismo percebido para se sair do estado de vitimização é aliar-se aos corruptos. Tornar-se um deles diminui a impotência e a frustração.

Categoria 3 - Puer aeternus
Setenta por cento dos respondentes consideraram que a falta de limite, o prazer de desrespeitar os sinais de transito, a falta de compromisso e a impontualidade legendária seriam um tipo de protesto infantil contra o excesso de autoritarismo. O desrespeito às leis estaria aqui vinculado à fraqueza frente ao poder patriarcal, exercido negativamente, isto é, as leis vistas como “babacas” ou injustas e a desobediência vista como “esperteza” ou a superação da autoridade.

Categoria 4 – Ausência de heróis
Sessenta por cento dos respondentes fizeram referencia à ausência de heróis míticos e históricos na cultura brasileira. Alguns consideraram essa ausência como um fator que dificulta o desenvolvimento da identidade nacional e colabora com o sentimento de inferioridade

Categoria 5 - Narcisismo, exibicionismo, permissividade excessiva
Houve, nessa categoria, menor unanimidade, com cerca de 30% das respostas referindo-se a comportamentos que talvez pudessem ser considerados como mecanismos compensatórios aos sintomas acima descritos. A grandiosidade das festas folclóricas (Boi-bumbá, no nordeste) e do Carnaval (em todo país) poderia apontar um desejo de superação dessa inferioridade.

Categoria 6 – Tipologia
Vinte por cento dos analistas apontaram para a questão tipológica como geradora de conflitos. Os brasileiros com a tipologia sentimento extrovertido sentiriam - se inferiorizados quando julgados por membros de cultura de tipologia pensamento introvertido.

Esses resultados coincidem com as observações do teólogo Frei L.Boff (2002) que fala que o brasileiro sofre de um “complexo de coitadinho” e de Dias & Gambini (1999), que ao analisar a formação da identidade brasileira, dizem que o brasileiro sofre de um complexo de inferioridade decorrente da falta de consciência sobre si mesmo.

Poderíamos, portanto, afirmar que os analistas identificaram por unanimidade um complexo de inferioridade que apresenta vários sintomas, predominantemente: baixa auto - estima e vergonha da identidade cultural. Os comportamentos patológicos de corrupção, malandragem e desobediência a leis poderiam ser conseqüência desse complexo de inferioridade.

Tendo em vista essas observações e o resultado da pesquisa algumas reflexões são necessárias na tentativa de explicar a origem desse sentimento e procurar o conflito original, subjacente e formador dos sintomas acima descritos.

 

B. Possíveis causas do complexo de inferioridade

Na busca do conflito básico que possa dar origem a esse complexo, a história da construção da nação brasileira é bastante reveladora, pois podemos considerá-la decorrente de uma situação traumática com duas vertentes principais: a colonização e a escravidão. Entretanto, no próprio mito de origem do Brasil, uma das bases em que se estrutura a identidade coletiva, percebemos a presença de uma pesada projeção a qual sociedade brasileira até hoje “esforça-se” para manter, quando se torna, por exemplo, “o país do carnaval”. Seria o Brasil um paraíso tropical?

 

- Mito de origem: o Brasil e o paraíso: projeções medievais sobre a terra desconhecida.

Segundo a analista junguiana, os mitos de criação são os mais importantes em várias sociedades. Eles são o ensinamento essencial nos rituais de iniciação.

Se a pergunta “de onde eu vim?” pode gerar ansiedade, o mito que a responde dá significado e eixo à existência. Repetido em momentos de crise, o mito de criação restaura a identidade e recupera a auto-estima. Se transpormos a questão mítica ao mito histórico fundante do Brasil, várias características saltam à vista revelando desde o início uma problemática até hoje não resolvida.

 

- O nome

A princípio, os portugueses batizaram a terra recém-descoberta de Terra de Santa Cruz, ato, que segundo alguns estudiosos, já constelava no inconsciente coletivo o desejo de domínio e depois a quase extinção das populações nativas, submetidas à força ao credo cristão (Gambini, 2000). “Os descobridores transportaram a cruz através do oceano e a fincaram em terra fresca, mas nunca foram capazes de carregá-la sobre os próprios ombros... Os europeus deixaram que os índios carregassem a cruz, enquanto se entregavam”... “à plenitude de sua ganância na zona franca ao sul do Equador” (Gambini, 2000, p. 42).

Entretanto, com o passar dos anos, o nome Brasil passou a predominar e até hoje sua origem, tem sido assunto de inúmeras discussões. As grafias mais antigas, como “Ho Brasile” e “O’Brasil”, demonstram tratar-se de um nome celta, cujo sentido seria “Terra dos bem-afortunados”, “Ilha da Felicidade” ou “Terra Prometida”, já que a raiz bres, em irlandês, significa "nobre, sortudo, feliz, encantado". Esse nome aparece em mapas anteriores ao descobrimento do nosso país e certamente conviria bem a uma ilha imaginária a oeste do mundo conhecido, na mentalidade medieval (Funari, 2002). Outros defendem que a palavra brasileiro designava a pessoa que morava na terra da árvore cor de brasa (vermelha), madeira que na época era bastante exportada para a Europa.

 

- O Brasil no imaginário medieval.

O fato é que a referência ao espaço do Brasil como Jardim do Éden, como “possessões maravilhosas” povoa na época o imaginário europeu. Podemos inclusive encontrar imagens fantasticamente positivas ou terrivelmente ameaçadoras sobre os novos espaços na literatura que procurava atribuir uma identidade característica ao país (Oliveira, 2000).

Em geral, as novas terras são apresentadas como o abrigo de uma natureza ainda intocada, a terra-virgem, e são descritas pelos portugueses como um universo perigoso, luxuriante, soberbo, avassalador e misterioso. Um lugar para ser explorado e desfrutado (Oliveira, 2000; Gambini, 2000).
A cartografia e os textos dos séculos XV e XVI revelam o encontro de duas civilizações e marcam diferenças que irão se confirmar ao longo dos séculos. Mesmo o uso do termo “descoberta” para uma terra habitada por milhões de pessoas (calcula-se entre 6 a 12 milhões) e mais de mil etnias, já é bastante controvertido. (Brito,2001)

Mais ainda, a construção do mapa mundial a partir da lógica do colonizador que cria o conceito de dois mundos, o velho e o novo, o explorador e o explorado. Na época, a legalidade da exploração baseava-se no conceito que o que estava no novo mundo era inferior.

Ventura (1991) aponta para a ambivalência do discurso europeu que oscila entre a imagem positiva da felicidade natural, a inocência dos habitantes da terra americana e a condenação dos seus costumes bárbaros. Esse autor ressalta ainda a presença de um discurso negativo sobre o homem e a natureza da América, o que permite a legitimação da expansão européia de uma forma tão invasiva e desprovida de qualquer consideração quanto ao estado das coisas nas terras recém descobertas. A tese da degeneração dos animais, das plantas e do homem latino-americano, assim como a tese da juventude do continente abrem espaço para a ação civilizatória do homem branco. Uma ação que visava exclusivamente à exploração e se fazia cega às riquezas culturais das populações nativas.

 

II. Primeiros habitantes

Discutia-se até mesmo no início da conquista, se os nativos tinham ou não “alma”. E, apesar do decreto papal que afirmava que os índios eram humanos, nas práticas sociais de poder afirmava-se que os nativos além de ter uma estrutura biológica diferente dos europeus, pertenciam a um nível inferior . Essas imagens configuraram profundamente um complexo cultural,uma matriz de idéias e um conjunto de imagens, de valores,de símbolos, de atitudes, de práticas sociais, que continuam presente no nosso inconsciente coletivo.

Ainda, o fato de que não se pode remeter o nascimento do Brasil a civilizações pré-colombianas de enorme qualidade e longevidade, como é caso do México e no Peru, vem a favorecer ainda mais a negação da existência das diversas culturas indígenas de milhões de nativos que habitavam o Brasil no século XVI, levando a formação de uma identidade brasileira que nega sua origem.
Desse modo, a cultura indígena brasileira nunca foi integrada à origem mítica ou histórica da nação. Pelo contrário, permanece isolada e protegida em territórios longínquos. Não há registro de mitos e de heróis indígenas que tenham sido assimilados no processo de formação da cultura brasileira.

 

III. A implantação da colonização

Primeiros colonos

À medida que Portugal nunca teve a intenção de estabelecer uma nova nação, mas somente apossou-se das novas terras movido pelo desejo de enriquecimento, a atitude dos colonizadores foi basicamente a de um extrativismo imediatista e predatório ao que o país foi sujeito durante séculos (Oliviera, 2000).

Segundo DaMatta (1993), a história econômica do Brasil trás uma representação da natureza que fundamenta a aventura pessoal caracterizada por extrema individualidade e pelo anarquismo pecaminoso. E é no ciclo do extrativismo predador que se reproduz o modelo da sociedade de origem.
Enquanto que nos EUA os primeiros colonizadores tinham como objetivo constituir uma nova nação guiada por princípios éticos e religiosos, no Brasil os primeiros colonizadores vieram com a única intenção de buscar riquezas e levá-las para o rei que delas necessitava para saldar a dívida de Portugal com a Inglaterra. Nesse sentido, a intenção de se produzir nas novas terras um espaço habitável, cujas riquezas e maravilhas naturais pudessem ser integradas à vida civilizada do europeu, e na quais estes poderiam estabelecer uma nova nação nunca foi verificada ao longo da história da dominação do território brasileiro. Pelo contrário, conta-se que os primeiros imigrantes foram dois degredados, abandonados na costa brasileira quando as embarcações de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, regressavam a Portugal para levar notícias da Terra de Santa Cruz.
Os primeiros colonizadores das terras brasileiras- vassalos do rei de Portugal, vieram sozinhos, deixando para trás a família e os amigos. Queriam somente explorar as novas terras e voltar ricos para seu país. Eram desprovidos de virtudes econômicas, de espírito público e autodeterminação política. Não se fixaram nos territórios percorridos e despovoaram mais do que povoaram. Enquanto os primeiros povoadores norte-americanos juraram constituir-se em um corpo civil e político, adotando formas de trabalho estáveis, realizando a conquista da terra e estabelecendo vilas e cidades, os europeus deslocaram-se para o Brasil na qualidade de conquistadores e mais tarde tornaram-se contrabandistas de ouro e pedras preciosas.

Portanto, a diferença básica entre os dois processos de ocupação territorial é que o imigrante que foi para os Estados Unidos teve a intenção de se tornar americano, de pertencer a uma nova religião, a uma nova pátria. Já o filho do português nascido no Brasil (o mazombo) reivindicava o nascimento no reino. Era um bastardo, abandonado pelo pai europeu e rejeitado pela tribo da mãe. Para se fazer português era preciso que ele fosse estudar em Coimbra. Seus olhos estavam voltados para Portugal e mais tarde para Paris. Era um europeu extraviado. Este português nascido no Brasil, este brasileiro sem sentimento de “pertencimento”, era um ser contraditório, um ressentido que não tinha a capacidade de ter dignidade, patriotismo, compostura, decência, vida limpa, honestidade, grandes propósitos, altas e nobres intenções.

 

Escravidão

A outra vertente do trauma na formação da identidade brasileira, como já foi dito, é a escravidão que junto com a colonização leva a “uma dominação quase absoluta, em que todo poder de decisão é abolido e as pessoas são até reduzidas ao estado de coisa – marcando mais um trauma na formação da identidade brasileira”.

O negro é trazido ao Brasil para realizar o exaustivo trabalho braçal necessário ao funcionamento das plantações de cana-de-açúcar. Ao chegarem na colônia, as famílias de escravos eram separadas e distribuídas de forma a se desagregar as populações que falavam um mesmo dialeto. Deste modo, a ação do colonizador sobre o escravo impunha, inclusive, uma ruptura dos laços culturais atados pela língua nativa.

 

Sem guerras – Sem heróis

O nacionalismo brasileiro não foi marcado por episódios de luta e empreendimentos grandiosos que mobilizassem emocionalmente seus habitantes, como foi o caso em diversas nações européias. O nacionalismo brasileiro é fruto da ocupação territorial e da nostalgia das origens dos diferentes povos que compõem o Brasil. “No fundo ainda perdura no inconsciente coletivo brasileiro um sentimento resmungão, produto do poderoso genocídio contra índios e negros que os portugueses e a classe dominante do Brasil perpetraram ao longo dos tempos”.
Assim, não se forma no Brasil o mito do herói ou da heroína. Embora a mitologia brasileira seja rica em simbolismo indígena, caboclo e africano, não há uma personalidade que represente um herói nacional.

(É importante também aqui lembrar que principalmente a partir do século 19, houve grandes correntes migratórias para o Brasil, sobretudo de espanhóis, italianos, judeus, alemães, árabes e japoneses. Esses povos se estabeleceram trazendo seus costumes, princípios e valores e marcaram fortemente a cultura brasileira. Praticaram no Brasil seus mitos, tradições e uma ética há milênios desenvolvidos. Vemos inclusive com freqüência o recurso da busca da identidade no avô europeu sendo usado como motivo de orgulho e de diferenciação. Entretanto, como esses valores são multifacetados pelas inúmeras características desses diferentes povos que compõe o país, eles não formaram uma identidade coletiva harmônica. Os valores positivos e morais trazidos por esses imigrantes são vividos mais no plano individual e familiar e não no coletivo nacional.)

 

Conclusão

A hipótese da existência de um complexo de inferioridade na cultura brasileira foi confirmada pelas três abordagens aqui utilizadas. Tanto as observações de campo quanto à pesquisa social e a opinião dos analistas foram homogêneas na descrição de comportamentos mais ou menos conscientes, que invariavelmente revelam um sentimento profundo de menosprezo e abjeção em relação a si mesmo.
As conseqüências deletérias desse auto - desprezo refletem-se em várias áreas, dentre elas na produção intelectual e econômica, assim como na perpetuação de desigualdades sociais, no caráter excludente da estratificação social (em relação ao índio, ao negro e à população pobre em geral) e nas questões éticas.

Na busca do conflito original, que estaria no cerne desse complexo de inferioridade, destacamos alguns fatores principais presentes na formação do país: mito de origem, projeções estrangeiras, escravidão e colonização. Vimos também como o trauma do nascimento repete-se compulsivamente em vários tipos de comportamento, destacando-se aqui o da corrupção.

O mito das terras parasidíacas é reproduzido pelos corruptos na permissividade generalizada, no menosprezo da legalidade e no gosto pela desobediência civil. Meira Penna,ao descrever os países tipologicamente, coloca o Brasil na categoria onde “tudo é permitido, mesmo o proibido”, comparando-o, por exemplo, com a Inglaterra onde “tudo é permitido, menos o proibido”.

Dessa forma, o mito fundante edênico colabora para o estabelecimento de um sentimento de inferioridade desde os primórdios da formação da cultura brasileira, uma vez que o único valor atribuído às novas terras e seus habitantes paira em torno da sensualidade, da atratividade carnal e das riquezas da natureza. E como, segundo padrões civilizatórios vigentes, o que é da natureza é inferior ao que é produzido, pois os recursos da natureza estão aí para serem colhidos e independem de trabalho ou de esforço criativo, aparentemente não há saída para a inferioridade. Como vimos, inúmeras projeções dos estrangeiros, desde o século XVI até a presente data, confirmam essa imagem. E o pior é que o brasileiro, na busca de uma identificação positiva, assimila a projeção, incorpora-a como sua e a reproduz em sua própria terra. Repete-se, assim, um mecanismo neurótico na tentativa de se achar uma solução para esse dilema.

Alguns autores chegam mesmo a propor que o sentimento de inferioridade possa ser sobrepujado com a valorização crescente da ecologia e dos recursos naturais, onde o Brasil seria pródigo. No entanto, esta aparente nova atitude estaria apenas reproduzindo mais uma vez o mito do paraíso tropical: Brasil, o exuberante e cordial país do carnaval. As qualidades intelectuais, o avanço da tecnologia brasileira, ou mesmo a capacidade do brasileiro de encontrar soluções racionais para seus problemas, por exemplo, não são reconhecidos como marcas nacionais.

Assim, parece haver uma certa cegueira quanto ao reconhecimento da produção cultural e científica coletiva. (Ou então seria o outro pólo, o da superioridade, que não permitiria aceitar uma produção normal, condizente com as características específicas do país? É provável, aqui, que um mecanismo compensatório leve a ponderar apenas “o melhor” ou “o nada”, desconsiderando as infinitas realidades intermediárias.).

A esse fator, acrescesse a estruturação dos arquétipos parentais, onde temos a imagem de um pai europeu, recém saído da idade média, que tem como únicos objetivos à exploração e o rápido enriquecimento. Fascinado pela nudez e pela liberdade das indígenas, o europeu reprimido abusa da ingenuidade da população. A mãe índia dá a luz a uma criança bastarda que é abandonada pelo pai e rejeitada pela tribo materna. O mesmo problema se repete na formação do mestiço, que corresponde a 38% da população brasileira segundo o censo de 2000 (IBGE). Em sua origem na história, o mestiço é fruto da lascívia e da violência do senhor do engenho contra a mulher escrava. A imagem do mestiço como filho de um pai abusivo tem seus reflexos mais evidentes no preconceito e na contundente estratificação social vigente no Brasil.

Portanto, a incapacidade de se basear nas figuras parentais, para se criar um ideal de desenvolvimento ou uma identidade condizente com a realidade produtiva brasileira, gera vergonha e mantém engessadas as articulações de um nacionalismo saudável. Tanto a vergonha quanto ao desamparo indica aqui um outro sintoma do mesmo complexo de inferioridade.

Alguns fogem da vergonha incorporando e reproduzindo o pai-bandido, assumindo uma persona bravata e arbitrária do tipo “comigo ninguém pode”, nem mesmo a lei. Reproduzindo inconscientemente o comportamento exploratório, imediatista e mercantilista paterno, o corrupto usa a terra e seu ambiente de modo predatório. Nada é para ser fixado ou produzido. Ele não respeita nem a história, menos ainda, suas construções. O objetivo é “tirar vantagem”, “ser esperto” – criar uma falsa superioridade.

Os discursos moralistas são engolidos pelo complexo paterno negativo e, portanto, são ineficientes. Não há nenhuma estima verdadeira pelo pai, tampouco há auto-estima suficiente para assimilar qualquer proposta meramente educativa ou moralizadora.

A busca de uma saída para esse impasse também é dificultada pela ausência do mito do herói, como precursor do desenvolvimento egóico e modelo no processo de individuação. Como sabemos, o herói tem como tarefa contestar a ordem vigente e promover a assimilação de novas forças arquetípicas na consciência coletiva. Numa cultura patriarcal, ele contesta o pai e impõe novos valores, os quais foram conquistados pelo herói em resultado de seu próprio esforço.

Mas, como contestar um pai abandonador que não reconhece o filho? Um pai desconhecido, que nem sequer pôde um dia ter sido admirado. Diferentemente do colonizador inglês, louvado e respeitado pelos norte-americanos, o pai português é motivo de escárnio. São abundantes no país as piadas que, num claro mecanismo compensatório, retratam o português como um ser inferior, estúpido e incompetente. Ao ridicularizá-lo, o brasileiro sente-se superior e ao mesmo tempo nega qualquer possibilidade de tomá-lo como modelo de figura paterna.

O afeto ausente no pai é procurado na repreensão em figuras de líderes políticos autoritários e corruptos, mas que através de seu “protecionismo afetuoso” inibem a queixa ou o comportamento de um possível denunciante.

Como reclamar daquele que abusa do poder, mas estende a mão e protege? A história é plena de exemplos de como regimes ditatoriais preencheram a lacuna do pai ausente. Nesse sentido, o poder político imposto pela força, pelo pulso firme e repressor pode ser mais “afetivo” do que certos regimes democráticos, onde o afeto tem de ser deslocado dos complexos parentais para um comportamento de alteridade. “Na democracia o afeto é baixo, pois não há um pai todo poderoso que vai cuidar das carências do povo”. (Janine)

A opção pela democracia e pela igualdade engendrada pela razão é difícil de ser mantida num povo carente de identidade parental. A criança abandonada tem irmãos abandonados, que se aliam na sombra contra o pai ausente - recorrendo à malandragem e ao clientelismo na ausência de poder para enfrentar o pai.

Busca-se tirar vantagem em todas as situações possíveis, ao invés de se obedecer a imparcialidade da lei, cuja missão, ao menos na doutrina, é assegurar valores civis e morais com eqüidade. Enredar conluios que lesam o pai (projetado no governo ou na Lei) é uma das únicas saídas encontradas por aqueles que se sentem impotentes. (A outra seria, uma união saudável entre os irmãos, vivendo numa sociedade de alteridade).

O complexo de inferioridade aqui ativa também a polaridade negativa do puer aeternus e cria a imagem de um país eternamente jovem, cheio de riquezas e belezas tropicais. A ilusão do puer é de que amanhã certamente será magicamente melhor que hoje. Essa ilusão foi fortemente impressa na cultura brasileira da década de 70 no bordão nacionalista “o Brasil é o país do futuro”. A crença implícita neste lema revela uma promessa enganosa dissolvida em uma profissão de fé.

A falsa impossibilidade de realização no presente e a falta de conhecimento daquilo que constitui a força do brasileiro neste exato momento são sintomas do complexo de inferioridade, compensados por fantasias de grandiosidade e comportamentos espúrios. O filho bastardo, ilegítimo, reproduz a ilegitimidade pela oscilação entre baixa auto-estima e fantasias maníacas, expressas na grandiosidade de projetos governamentais e em gigantescas festas carnavalescas, por exemplo. Assim, cria-se um círculo vicioso, onde a impossibilidade de realização das fantasias megalomaníacas faz crescer o sentimento de inferioridade, favorecendo a baixa auto-estima.

Cabe aqui lembrar que a corrupção como sintoma de um complexo cultural, nesse caso de inferioridade, embora afete a todos os brasileiros, não é um comportamento expresso ou aceito pela maioria. Ela é um sintoma de uma patologia da cultura, um distúrbio e um sofrimento para os brasileiros, à medida que todos são mais ou menos atingidos por ela, mas, de modo algum, é um comportamento aceito pela maioria. Pelo contrário, grupos em diferentes instâncias, desde grandes instituições educacionais às organizações não governamentais têm discutido o assunto, principalmente procurando medidas educadoras e coibitivas.

Como vimos, entretanto, sem a consciência dos fatores inconscientes que geram essa patologia, os esforços públicos e privados terão um efeito somente repressor, e, portanto, serão temporários. Pois, como vimos mecanismos históricos repressivos causaram uma “amnésia sistemática” das qualidades positivas, criando uma identidade fictícia de difícil superação.

Portanto, uma verdadeira mudança só ocorrerá com o enfrentamento doloroso do conflito inicial e com o suportar consciente da tensão entre as polaridades inferioridade - superioridade. E, a opção pela integridade dependerá, em boa parte, da força do ego coletivo e de sua coesividade frente à ansiedade que a consciência do conflito central pode provocar, num estado de vigia constante.
Dessa forma, a assimilação consciente do conflito original, não é somente um sofrimento, mas é o caminho da cura, à medida que pode permitir a liberação de grande energia e a constelação de novas forças na Consciência coletiva brasileira..

Com a auto-estima resgatada, não haverá lugar para a corrupção como sintoma patológico de um complexo cultural. Ela ficará restrita somente ao conflito consciente entre o bem e o mal. Mas, isso já é outra história.

PS As referências aqui citadas encontram-se no livro: Singer,T. &  Kimbles,S.. The Cultural Complex: Contemporary Jungian Perspectives on Psyche and Society: Routledge. London. 2005.

Ética e corrupção no Brasil
Senador Eduardo Suplicy

Achei muito interessante o convite que vocês me fizeram para dialogar com psicanalistas junguianos sobre o tema “a sombra na política”, e sobre as questões relativas ao problema da ética, da corrupção no Brasil. E confesso que embora conheça o que seja psicanálise, fiz psicanálise com, por exemplo, doutor Bernardo Blay Neto, quando bem mais jovem, e com diversas outras pessoas, algumas de excepcional talento e muito respeitadas na psicanálise; fui casado com a Marta que é psicanalista, de Jung conheço relativamente pouco. Para estar aqui li dois artigos de uma revista que não conhecia “Viver, mente e cérebro”. Ainda não li toda a revista, mas vou fazê-lo. Li o artigo do professor Carlos Amadeu Botelho Byington, e o da professora Denise Ramos. Fiquei muito interessado em saber mais a respeito de Jung e da professora Denise Ramos, que falou de seu artigo sobre esses complexos culturais que acabam causando um sentimento de inferioridade nos brasileiros; da supervalorização daquilo que é estrangeiro em detrimento do produto nacional, e das atitudes auto-depreciativas presentes em piadas, a falta de valorização de tudo que tem contribuído em grande parte para a tolerância com a corrupção, com a quebra da lei, com o favoritismo, e outros comportamentos, principalmente por parte de pessoas públicas e autoridades. Comecei a pensar nessa conclusão e lembrei-me que problemas de corrupção estão ocorrendo aqui e nos países mais desenvolvidos. Outro problema sério refere-se à necessidade das autoridades sempre dizerem a verdade, sempre serem honestas, inclusive no que diz respeito às questões de vida e morte dos povos.

Nesse sentido, estamos vendo o presidente da nação mais poderosa do mundo, que nos visitou ontem, deparar-se com o problema da evidência de que ele e os órgãos de inteligência dos Estados Unidos faltaram com a verdade no que diz respeito à principal ação americana, de repercussão mundial, que foi a guerra no Iraque para derrubar Saddam Hussein, em 2003, cuja justificativa foi o fato dele possuir armas de destruição em massa. Agora tomamos conhecimento que esse fato não corresponde à verdade. Ou seja, os Estados Unidos promoveram uma guerra de extraordinária repercussão que resultou em muitas mortes: até agora 26 mil pessoas morreram, sendo mais de dois mil norte-americanos. Essas mortes ocorreram desde quando o presidente americano anunciou o fim da guerra, quer dizer, a guerra não acabou. Então, eu queria dizer, já que estamos num ambiente de psicanalistas, que fiz análise com a doutora Virginia Bicudo, nos últimos anos de sua vida. Quero, com isso, dizer que conheço um pouco do que seja psicanálise, mas não conheço a psicanálise junguiana e tenho enorme vontade de aprender. Essa foi uma das razões porque aceitei o convite para estar aqui com os senhores e senhoras.

Teria aqui disposição em falar, horas e horas, sobre as coisas que têm ocorrido no Brasil, mas vamos selecionar algumas. Primeiro, em maio último, passei por uma situação de grande dificuldade porque, nesses vinte e cinco anos de existência do PT, partido do qual sou fundador, pela primeira vez fui instado a fazer algo diferente da recomendação da direção nacional, bem como da recomendação da bancada de senadores que, por sete a seis, dos treze membros, recomendou que não assinássemos o requerimento da CPI dos Correios. No dia 25 de maio deste ano, escrevi ao presidente Lula e depois lhe expliquei: pelo seu bem, do nosso partido, da nossa história, da nossa nação, eu resolvi assinar o requerimento de CPI. Isso me causou alguns problemas dentro do partido, mas o PT tem alguns marcos que caracterizaram a nossa história, como a luta pela democratização ao lado de outros partidos. A partir dos anos 80, o PT foi o partido que mais lutou pelas eleições diretas para prefeito das capitais, para governador, para presidente da república, enfim, considero ter sido o partido mais atuante na campanha pelas Diretas Já. Fomos nós que iniciamos a campanha pelas diretas já, a qual todos abraçaram depois.

O segundo foi a luta por ética na política. No primeiro semestre de 92, certo dia após a entrevista de Pedro Collor de Melo nas páginas amarelas, da revista Veja, com a qual fiquei impressionado, liguei para o José Dirceu, então deputado federal, e fomos conversar com Pedro Collor, que nos atendeu no hotel Macksoud Plaza, aqui em São Paulo. Conversamos por cinco horas. Ficamos tão impressionados que, juntos, escrevemos, na minha casa, logo a seguir, o requerimento solicitando a instalação de uma CPI para investigar os atos praticados por PC Farias no Governo Federal. Isso acabou resultando na campanha por ética na política, o movimento dos jovens de rostos pintados nas ruas para dizer que não era possível mais aquele tipo de procedimento, que acabou resultando na queda de Fernando Collor naquele ano. E sempre lutamos por transparência, para que as pessoas pudessem agir com muita sinceridade.

O terceiro pilar da nossa história foi a luta pela realização da justiça. Sobre isso eu vou deixar para depois.

Gostaria também de lhes falar um pouco, pois não sei se os junguianos conhecem, em breve todos os junguianos terão direito de partilhar da riqueza da nação através de uma Renda Básica de Cidadania.

Como é o seu nome? Lídia, você sabia disso? Não conhece a Renda de Cidadania? A Lídia quando saiu de casa hoje o fez pela janela? Por onde? Saiu por onde de casa? O mestre Confúcio no livro das explicações e das respostas 520 anos antes de Cristo disse que a incerteza ainda é pior que a pobreza, e pode alguém sair de casa senão pela porta? Dei o nome ao meu livro de Renda da Cidadania - A saída pela porta para demonstrar que, se desejarmos de fato erradicar a pobreza absoluta, construir uma nação justa e civilizada, e assegurar que todas as pessoas possam ter o direito à dignidade e a liberdade real é a Renda Básica de Cidadania que deverá ser implementada no Brasil associada a outros instrumentos, que também são importantes: a reforma agrária, o estímulo às formas corporativas de produção, o micro-crédito, a agricultura familiar, a educação, a expansão de educação básica, educação pública, e assistência à saúde pública. Uma solução tão de bom senso quanto sairmos de casa pela porta. Então, gostaria de lhes explicar o que é isso se tempo houver depois.

Mas, é claro que como será a forma de diminuir, minimizar a corrupção, isso que tem afligido o país, o PT? Acabo de chegar de Assis, onde estava com o Presidente da República, e o presidente estava sob o impacto da entrevista que acabara de conceder ao programa Roda Viva e que poderemos assistir hoje à noite. Ele fez algumas observações sobre o que lhe perguntaram. Muitas foram as questões sobre o José Dirceu, em que medida ele sabia do que havia acontecido, ou se ele havia observado a não existência de provas sobre qualquer ato que pudesse ser caracterizado como corrupção, se sabia do mensalão, e assim por diante.

Com respeito a esse assunto, é muito importante a iniciativa que vocês estão tendo. A minha convicção é de que a maior parte do povo quer viver todo dia da maneira mais sincera e honesta possível. Todos nós queremos ensinar aos nossos filhos e filhas a procederem sempre sem mentir, agindo com honestidade, orientando para que ninguém seja roubado, ninguém seja desrespeitado em seus direitos. A grande maioria do povo quer que as coisas aconteçam. Claro que muitas vezes alguns são até instados por uma questão de sobrevivência a tomar o caminho que não seja nesse sentido.
Posso perguntar aqui quantos assistiram “Cidade de Deus”. Levantem a mão, por favor. Praticamente todo auditório assistiu, e coloco isso como uma ilustração importante. Os personagens do “Cidade de Deus” são pessoas que vivem numa situação na qual a dificuldade de sobrevivência é de tal ordem, que quase não há alternativa senão aquela na qual as crianças se tornam “aviõezinhos” de quadrilha de narcotraficantes, as meninas eventualmente têm de vender o seu corpo, e assim por diante, como meio de ajudar no orçamento da família. Essa é uma questão importante e que precisa ser resolvida com os instrumentos de realização de justiça, como a Renda de Cidadania.

Outro aspecto refere-se àqueles que, tendo oportunidade, acabam agindo de maneira incorreta e, às vezes, até para enriquecer e tirar proveito das condições que acontecem. O prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen, em Desenvolvimento como Liberdade tem um capítulo extremamente interessante que trata do combate à corrupção. Ele nos coloca questões tão importantes sobre o tema.

Até recomendei ao presidente Lula que lesse esse livro, especialmente o capítulo sobre a escolha social, que aborda uma inscrição colocada nas pedras na China antiga em 122 AC na qual o problema é apresentado da seguinte maneira: se o instrumento de medida é verdadeiro, ou seja, se o instrumento de medida que se coloca na madeira for retilíneo, então a madeira sairá reta não por causa de um esforço especial, mas porque aquilo que faz a madeira ficar reta faz com que isso de fato ocorra. Como se chama esse instrumento da construção? A plaina. Se a plaina for reta, então a madeira sairá reta porque a plaina é reta. Da mesma maneira se o chefe de uma organização, o chefe do poder executivo, ou pode ser o chefe da organização junguiana, ou da PUC, se o chefe da organização é sincero e correto sempre, então aqueles que servem neste governo e que procuram agir com correção, e que gostam de agir com correção, vão fazer da mesma maneira. E aquelas pessoas que tentariam se aproveitar de cada situação em proveito próprio tendem a se inibir, a se afastar. Por outro lado, se o chefe da organização começa tomar atitudes que permitam a uns e outros se aproveitarem, então o que acontece? Normalmente aqueles que procuram agir com correção tendem a se inibir e se afastar, e as ratazanas é que se aproximam. Acho que esse é um ensinamento muito adequado e que, quem sabe, se case aqui com os propósitos do que vocês estão nos convidando a refletir.

Tem um outro tema que gostaria de lhes transmitir que é o direito de reeleição. Nós, do Partido dos Trabalhadores, fomos muito críticos no direito de reeleição quando o presidente Fernando Henrique Cardoso o propôs em 95/96/97. Naquela oportunidade me dei conta de que o presidente Fernando Henrique tinha como um dos seus autores preferidos Alexis de Tocqueville, que em a “Democracia na América” tem uma passagem formidável sobre o direito de reeleição, na qual ele observa que seria de bom senso um povo que tivesse tido um governante excelente e que amasse esse governante pudesse reelegê-lo. Isso seria de bom senso. Mas, o coloca, será que as vantagens do direito de reeleição não seriam sobrepujadas pelas desvantagens do direito de reeleição? Tocqueville demonstra que nas democracias quando existe o direito de reeleição – em seu livro ele se refere aos Estados Unidos – muitas vezes acontece do chefe de Estado e daqueles o cercam colocarem o objetivo de reeleição como seu objetivo maior. Ou seja, o presidente e seus auxiliares começam a se utilizar do Estado em proveito próprio, usando inclusive de meios ilícitos para garantirem a reeleição.

Quer dizer, assistimos muitos episódios durante a votação do direito de reeleição que não foram inteiramente investigados porque se evitou a instalação de uma CPI com essa finalidade. Foi noticiado, inclusive, que teria havido a compra de votos, o que agora deverá ser objeto de investigação da CPMI instalada no Congresso. Mas, tenho certeza, não será tão fácil encontrar as provas. Alexis de Tocqueville recomenda a não existência do direito de reeleição, pois ela pode ter contribuído para que muitos desses episódios tenham acontecido no Brasil recentemente. Se ocorrer de novo uma votação extinguindo o direito de reeleição votarei favoravelmente. Aliás, votei contra tal instituto. Muito obrigado.

Uma análise da teoria da corrupção do Estado de John Dobel
Profª. Maria Garcia

Boa noite a todos. Cumprimento a todos, mais especialmente aos participantes deste painel, com o prazer de rever o senador Eduardo Suplicy. Estivemos recentemente num painel na OAB e por isso é um prazer revê-lo, Senador, e ouvir a sua fala agora, muito inspiradora, muito aprofundada. Devo iniciar, então, com um aspecto constitucional e político deste painel sobre a corrupção. E vou colocar algumas idéias a partir de uma “teoria da corrupção”. É uma obra pouco conhecida do cientista político norte americano, John Patrick Dobel, que nos anos 80 publicou essa teoria. E é interessante também, observando as palavras do senador Suplicy de que efetivamente o Brasil não é detentor único da existência de corrupção. A corrupção é inerente ao ser humano, e no campo político existe em todos os países. O grande problema da corrupção é o nível que pode atingir quando ela toma o próprio Estado, e se estende para a sociedade, e os cidadãos em geral. O problema da corrupção é como combatê-la. É aí que se vê que o Brasil não é o único detentor de corrupção. É abrir o jornal e verificar como isso se dissemina pelo mundo. As pessoas e a sociedade corrompendo-se mais, ou menos, com os problemas agora da globalização financeira que realmente está alterando muito a nossa vida nacional e internacional. O problema é então, eu vou repetir, como combater a corrupção uma vez que ela existe. Então vou me utilizar dessa teoria do John Patrick Dobel, com os pontos básicos que ele coloca, para uma reflexão comum. Ele parte de cinco postulados, ou cinco proposições. Na sua teoria, propõe algumas idéias sobre a corrupção e depois dá uma receita sobre a corrupção. A primeira idéia que expõe é a seguinte: certos padrões de lealdade moral e de virtude cívica são necessários para manter uma ordem política justa, eqüitativa, e estável. Então é preciso haver padrões de lealdade moral e de virtude cívica abarcando, portanto, os dois ângulos da pessoa. O ângulo pessoal e o ângulo político, da cidadania. Então ele diz: a privatização das preocupações morais, ou seja, atentar para os interesses particulares em primeiro lugar, e a decorrente ruptura da lealdade e da virtude cívica são os atributos cardeais de um Estado corrupto. Segunda proposição: a grande desigualdade de riqueza, poder, e status geram a corrupção sistemática de todo o Estado. O que é que gera? A grande desigualdade de riqueza, poder, e status. Aí ele comenta: os membros das classes mais altas sacrificam a sua lealdade civil básica para ganhar posições ou mantê-las. E a desigualdade estabelecida solapa a lealdade e o bem estar do cidadão, em geral. Então o exemplo quem dá é a classe mais alta. Terceira proposição: essa mudança de qualidade moral combinada com a permanente desigualdade gera grupos, gera facções, as quais usurpam funções políticas e governamentais de importância vital. Então, as facções geradas pela mudança da qualidade moral e cívica, a existência de facções, fazem com que esses grupos, essas facções passem a ocupar, ele diz “usurpar” funções políticas e governamentais. Quarta proposição: O conflito de facções, porque certamente elas vão lutar. Se elas querem “usurpar” posições de poder e posições governamentais vão lutar entre si. O conflito dessas facções e a contínua desigualdade que não parou de crescer, estendem a corrupção a toda a cidadania. A violência torna-se o substrato dominante de todas as relações, em casa, fora de casa, na escola, na rua, a violência toma conta das relações sociais. E o discurso político fica reduzido a uma repetição sem profundidade. Você lê o discurso político, e você vê que ele se repete, ele é transparente, ele é sem profundidade, o que quer dizer que são ditas sempre as mesmas coisas, procurando convencer. A função pública, a lei, a justiça, tornam-se instrumentos dos grupos, das facções, e das classes. A população destituída e as classes altas tornam-se cada vez mais polarizadas, ou seja, as pessoas destituídas e as classes altas tornam-se cada vez mais distante uma da outra. Não há uma classe intermédia. A grande pobreza, e a grande riqueza. A sociedade gira num inquieto círculo de restaurações e reformas. É reforma da educação, reforma do sistema eleitoral, reforma política, e a sociedade gira num círculo inquieto de tentativas abortadas de reformas rumo à alienação, à violência e à anarquia institucional cada vez maior. Nós não estamos falando do Brasil. Nós estamos falando de uma teoria da corrupção. Resta ver em que medida nós estamos caminhando para isso, ou não. Isso se adapta a qualquer país. Por fim ele propõe a socialização da educação, da vida familiar, da religião, e classe militar, que sustentam os valores comunais, e a lealdade. Às vezes até mesmo depois da corrupção do processo político. Ele chama essas estruturas de “estruturas primárias”. Efetivamente a socialização da educação o que é? O acesso de todos à educação em todos os níveis. A socialização da vida familiar. O acesso de todas as pessoas a uma família, ainda que seja uma família adotiva ou substituta mantida pelo Estado. Abaixo as Febem’s. O que a pessoa precisa é de ter uma família. Também a socialização da religião. Foi dito aqui pela profa. Denise Ramos que em várias épocas, por exemplo, na formação dos Estados Unidos a religião foi um fator muito importante. E também a socialização dos militares. É interessante falar disso, causa um certo mal estar, mas basta lembrar que os nossos jovens que estão nas ruas, que estão na violência, se estivessem no serviço militar, aprendendo até, para obter um meio de vida seria muito interessante. Tirar a juventude da rua e colocar na vida militar, no serviço militar onde aprendem, podem aprender a virtude cívica, e até aprender uma profissão, ou permanecerem na carreira militar que sempre foi desde a história mais antiga o esteio do Estado. Infelizmente a história brasileira recente faz-nos desconfiar desse fator que Dobel entende como uma estrutura primária da sociedade, e que deveria ser estimulada. Então ele diz: a corrupção final do Estado envolve o fracasso dos cidadãos em apoiar voluntariamente essas estruturas primárias. A crise da família, o problema militar no Brasil, a crise da religião ou de um esteio moral, e o problema da própria educação à qual nem todos têm acesso ainda, no Brasil, apesar do que manda a Constituição que diz que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, com a colaboração da sociedade, que somos nós. Qual é a receita? Então ele apresenta aqui quatro pontos que eu vou citar rapidamente. Primeiro, a corrupção faz parte da condição humana. E a prática política honesta exige estruturas destinadas a limitar, desencorajar e canalizar essas tendências de corrupção. Isso já foi visto aqui na palestra da profa. Denise Ramos. É preciso uma reação contra essa corrupção inerente à condição humana. Segundo: e o Senador Suplicy falou do filme Cidade de Deus que mostra perfeitamente como já desde a primeira formação, esses meninos e essas meninas estão sujeitos à corrupção. A comunidade deve concentrar-se na educação a fim de encontrar lealdade nas relações dos cidadãos entre si e criar uma disposição inicial aos interesses do bem comum. Quem pode fazer isso, e somente pode fazer isso é a educação. É minha opinião pessoal também. A participação política continua o processo da educação e contribui para a estabilidade do regime. Então vem a participação política, a democracia participativa. Ela vai continuar a obra da educação que abrange desde as crianças até os jovens universitários e vai contribuir para a estabilidade do regime, no caso, o regime democrático. Finalmente, é absolutamente necessário que sejam impostos limites severos à acumulação de riquezas, e ao privilégio hereditário. Dobel diz que devem ser impostos limites severos à acumulação de riquezas. É inadmissível num país como o Brasil os grandes níveis de miséria, e os grandes níveis de riqueza por poucos detentores da riqueza nacional. E por fim, o privilégio hereditário. Isso realmente é um elemento da ideologia socialista, a questão do privilégio hereditário, do direito à herança. Muita gente não gosta da idéia, mas é claro que também é algo que precisa ser revisto. Ou, pelo menos, o imposto das grandes heranças que isso ainda não veio ao Brasil que é um derivativo, um paliativo, mas que ainda não é o fim do privilégio hereditário. Toda a dialética da injustiça e da corrupção começa com essa desigualdade. A corrupção do Estado, e a corrupção dos indivíduos andam lado a lado, portanto, é preciso rever essa questão da corrupção, porque a corrupção da sociedade é a corrupção do Estado e do indivíduo como foi dito aqui, aquele indivíduo que engana, aquele indivíduo que mesmo morando na favela se ele abre ali um botequinho, uma quitandinha, ele vai roubar no peso, ele vai roubar no preço também, porque a corrupção se dissemina por toda a sociedade. Vou ler por final um texto antigo, mas que pode se aplicar perfeitamente à atualidade. “Todas as crises que pelo Brasil estão passando, a crise política, a econômica, a financeira, não são mais do que sintomas de um estado mais profundo, uma suprema crise, a crise moral, a crise ética”. Ruy Barbosa, nos idos do século XIX. Portanto, uma fala perfeitamente atual.
Muito obrigada.

O caráter do corrupto
Dr. Carlos Briganti

Primeiro, gostaria de agradecer ao Núcleo de Estudos Junguianos o convite, do qual me sinto profundamente honrado. Quando profa. Liliana Wahba dizia instantes atrás, “eu te apresento como psicanalista?”, e na seqüência o Senador Suplicy iniciou sua apresentação dizendo: “conheço muitos psicanalistas!”, isso me transportou a uma história que eu vivi e gostaria de compartilhar.

Foi a primeira e única vez que Jacques Lacan veio à América do Sul, em Caracas, onde aconteceria um Congresso. Lacan nesse congresso, que posteriormente ficaria destacado e relembrado através de seu discurso introdutório. Ele frente ao público constituído por muitos destacados psicanalistas lacanianos brasileiros, uma quantidade enorme de psicanalistas argentinos, a maioria lacanianos, alguns venezuelanos, também psicanalistas lacanianos. Eu estava lá, curioso, sem ser lacaniano ou freudiano ou junguiano. Não consegui, até hoje, ser devoto.

Estava com alguns colegas psicanalistas lacanianos brasileiros e argentinos no auditório, e Jacques Lacan tomando a palavra inicia mais ou menos assim “... fui informado que havia muitos psicanalistas lacanianos na América Latina, e como não era lacaniano, gostaria de aproveitar a oportunidade para conhecer alguns, para saber do que se tratava “isso”. Haveria algum psicanalista lacaniano na platéia?” O silêncio como resposta. Eu tive um acesso de angústia, o riso como expressão desta, e nesse instante para a minha sorte, Dr. Lacan muito próximo à platéia, ria e disse uma frase que, acredito, tenha tocado a maioria, “- Que todos saíssem da é-cole dele!”, escola dele. Da escola dele, e do “cole”, ou seja, “do rabo dele!” Provavelmente, porque sabia o que significava os “seguidores” de qualquer coisa escondidos em sua é-cole. Eu acredito ser importante atentar a isso neste momento de nossa apresentação a fim de não corremos o risco de confundir o individual com o coletivo expresso em partidos, seitas.

O risco é a possibilidade do se fanatizar “nisso”, sejam seitas ou partidos, abandonando ou deixando ao lado a reflexão individual, um dos possíveis caminhos em direção a alguma “razão”. Às vezes, a própria história que vivemos, sem nos apercebermos, nos induz a esta perda de identidade, constituindo uma falsa identidade que acreditamos, quando em verdade nos aproximamos da identidade de um rebanho de seguidores ou fanáticos.

Daí utilizar a metáfora do Senador “- conheço muitos psicanalistas!” e roubando sua apresentação: “- conheço muitos políticos!”. Isso expressa o vazio do indivíduo em sua subjetividade e estabelece uma crença: a do conhecer o individuo através do rebanho. Ledo engano.

Essa mesa foi muito feliz em sua constituição no instante em que ela se articula de forma interdisciplinar: por meio de um empresário, uma professora de direito, psicanalistas, um político, e um médico psiquiatra. Escapamos dessa forma do rebanho do mesmo ou de uma reunião de especialistas, que é o mesmo que um aglomerado do nada ou da não criatividade.

Eu, como psiquiatra acostumado a ouvir histórias, e por alguma razão ainda desconhecida, continuo gostando de ouvi-las. Sob esse hábito pesquiso as histórias das palavras. Toda palavra carrega uma identidade construída, uma biografia. Uma das melhores formas de tentar conhecer alguma coisa ou alguém é através do entendimento e compreensão do percurso da vida deste. Acontece o mesmo com o significado de cada palavra que carrega uma particular biografia. Corrupção é a junção de duas: Co que é originário do latim cum que significa contigüidade, companhia, por exemplo, co-autor, co-terapeuta, co-laborador; corrupto de rumpto, is, etem, ere, que vem do latim que significa romper, quebrar, partir. Corrupção é o ato de ruptura de uma norma ou regra ou ética em colaboração com outro ou outros, é impossível a co-rrupção ser exercida por um único ser humano, não é possível ser uma atividade solitária.

Corrupto e Corrupção irmãos siameses, exemplo disso: quando nos aproximamos de um corrupto sua primeira fala o denuncia: “- Eu nunca estive com ele. Eu nunca falei com ele. Eu não sabia de nada dele”. Porque a palavra indica que há uma expressão de comunhão. Se nós ficarmos atentos a concretitude do significado apenas do corrupto ou da corrupção, corremos o risco semelhante das vítimas daquele maluquinho que frente a um hospital psiquiátrico, portando uma vara de pescar, anzol e isca, mergulha todas as traquitanas num balde vazio e aguarda. O psiquiatra chegando ao trabalho olha seu antigo paciente e pergunta : “- E ai Zé pescando muito?” Ele responde: “- Com você é o sétimo!”.

A outra biografia que eu gostaria de trazer é sobre a palavra ética. Ética é uma palavra de origem grega, ethos, que surge pela primeira vez em Ulysses que significa a casa dos animais, mais especificamente do chiqueiro. Ética significa colocar em ordem a casa dos animais humanos, seguindo princípios normativos, que o diferenciem dos outros animais. Corrupção de uma ética: a ruptura dos princípios que constituem nossa casa, ou seja, nossa sociedade.

Transformamos por meio do corrupto nossa sociedade em chiqueiro. A corrupção é a responsável pela produção desse estado de “sociedade” emporcalhada que todos aqui presentes sofremos, de uma forma ou outra.

Está implícito, uma sociedade é uma construção por meio de passagem lenta e gradual da partícula “eu” em direção a partícula “nós”. Este processo é dificílimo numa estrutura social como a nossa que privilegia o ego-ismo, a individualidade. Ética é sempre comunitária, social, nasceu junto à cidade. “- Eu quero levar vantagem em tudo!” demanda essas tragédias que constroem nossa atual historia. A consciência de si somente é possível desde o individuo tomar em si a consciência da história.

Tomando consciência de si para construir uma possibilidade de entender o outro. Marx vai “roubar” esse conceito, e “roubar” é um artifício necessário para a construção da filosofia, política, história, ciência, porque é dessa forma que se produz o saber, através da articulação de um conceito em outro, na produção coletiva da sabedoria, que não possui proprietários, é a expressão do ser coletivo, da sociedade coletiva, qual um rizoma.

Rizoma é a palavra “roubada” da botânica, que traduz a maneira pela qual se estruturam as gramas, as raízes, que ao contrário das árvores, se disseminam, correm numa plataforma de igualdades e, de tempos em tempos nasce uma nova planta. Totalmente diferente da verticalidade, expressa pela árvore, onde existe a copa enorme, o caule, as raízes que reproduzem radículas, sempre, semelhantes às raízes.
O processo que privilegia o indivíduo é direcionado à mitificação da copa da arvore, semelhante aos regimes que enaltecem o “líder” travestido de valores de alguns altares quaisquer, demagógicos ou não. É mitificado com a única finalidade de hipnotizar um pouco mais o povo, cego de todas as misérias. Resta ao povo cego, olhar para a copa.

Encontra-se implícito que sociedade é um conjunto de indivíduos que se transforma, pelo menos a maioria, do “eu” árvore ao “nós” rizoma. É o momento maior da civilização a aquisição da consciência do “ser coletivo”. Ser cidadão é ser comunitário, é ser comum.

A ética sobrevive devido ao nomos ou leis. Recordemos Moisés, que ao se deparar com um possível fim da sociedade e cultura judaicas, no momento que seu povo se misturava a uma outra ética, a do Deus Baal, correndo o risco de desaparecer sob a degradação dos costumes das suas leis transgredidas pelas orgias, desrespeitos aos genitores. Moisés trouxe a tábua das Leis, ou tratado de ética social humano.

Em cada lei existe um pedaço da alma do ser humano, às vezes racional. Inscreve como primeira Lei: amar a Deus sobre todas as coisas. Sabedor de que, cada homem elege seu Deus particular: Deus-dólar, Deus-poder, Deus-sexo, Deus-Meu Deus! As outras leis que todos conhecemos dizem de perto a todos nós: não caluniar ou fofocar, não desejar a mulher ou homem do próximo, não roubar, não matar... pedaços de nossa essência.

A sobrevivência da ethos como a Dra. Maria Garcia trouxe muito bem, só é possível através da lei. Destaco Heráclito de quem restou 129 fragmentos. Eu sempre tento trazer esses gregos, sempre referências porque mesmo sem consciência disso, somos todos gregos: nós pensamos como gregos, temos lógicas gregas. Destaco uma frase de Heráclito “Ethos anthropos Daimon”, a tradução: “A ética ou o caráter é o destino do homem”.

A formação que o individuo recebe da sociedade que ele constrói. O individuo gera a sociedade que interpreta o indivíduo, que gera a sociedade que interpreta o indivíduo...
Como psiquiatra eu me perguntava: “- Como eu poderia entender caráter, subjetividade, desde minha prática clínica diária?” A resposta, como sempre, se encontrava a minha frente. O caráter se expressa, também, através dos delírios cotidianos, manifestos desde as instituições hospitalares, organizações psicanalíticas ou partidos políticos.

Mas, o que é delírio? Delírio é a expressão do imaginário que pretende realizar desejos. O que é essa coisa: “expressão do imaginário”? É aquilo que ainda não está resolvido sob a ordem simbólica, inteligível, lógica. E desejo por que? Porque o desejo é o motor do ser humano. Todo delirante expressa um desejo dele, imaginário.

Há trinta anos, nos Juqueris de Franco da Rocha, ou no Manicômio Judiciário havia sempre dois destaques-ibope, que reproduziam os “melhores personagens” da sociedade. Eram com ampla maioria de escolha, Jesus e Napoleão Bonaparte. A Dra. Denise Ramos adoraria fazer um trabalho sobre isso, tenho certeza. Demandaria um texto competente. Hoje mudou, Jesus continua em alta, provavelmente, devido à propagação não só da igreja católica como também dos “partidos das igrejas universais”, acompanhadas de milhares de irmãs igrejas, que deliram em construir bispos e outras riquezas-dízimos.

O outro “melhor personagem-ibope” em alta é “Silvio Santos”, esse em contínua ascensão. Napoleão não tem mais lugar, destronado, sem coroa, não ocupa mais o lugar de “melhor personagem”. Os “Silvios Santos”, de todos os corredores, não apenas dos hospícios, dizem: “- Quer dinheiro ou não quer? Vai para o trono ou não vai?” Aliás, não há grande diferença do que eu ouço e vejo nos corredores dos hospícios do que ouço e vejo nas falas das CPIs: “Vai ser cassado ou não vai? Vai para o trono ou não vai?”. “Dança da Pizza ou das cuecas?”. Sempre dá Bingo! Falam, de maneira fácil, de milhões de dólares. Aqui somos trabalhadores de saúde mental, funcionários de sistemas médico-psicológico-escravagistas. Lá, por meio das falas das CPIs me deparo com um outro mundo ético, todos ou “não sabem”,ou, “não viram”, são todos impolutos, honrados pais e mães de famílias. A ética do poder não corresponde à ética do mundo do lado de cá. A lei deles não é a mesma lei para o povo. Ética tripartida: ética política, ética social, ética religiosa ou admirável sociedade partida ou esquizofrênica.

Há uma corrupção ou divisão ética entre o público e o privado. Tenho certeza que a maioria dos homens das CPIs são crentes de algum deus, não matam, não batem em bêbados, devem rezar, tem família, tem ética privada. No caráter público, a maioria abandona as leis privadas e se transformam em cidadãos acima da suspeita.

Ética deles ou uma boa parte se transforma em sócios da Republica. Lá, amigos do rei. Lá, a máxima da ética pública se concretiza: “Trabalhar ou fazer política?” Vivemos uma gravíssima doença divisória. Não existem duas Ética.

A população é formada através dos exemplos. O caráter reproduzido pela mídia. Hoje nós elegemos presidentes que podem ser qualquer coisa: analfabetos, bebadoso ou qualquer outra coisa. Uma vez que será produzida a venda de um “produto”. “Presidente-Produto da República”. Elege-se um Presidente da mesma maneira e talento como se elege um sabonete. Todos os candidatos, sempre, em fotos rejuvenescidas coladas em outdoors rindo. Do que?

A televisão, os jornais, as revistas que o Senador citou e leu, também forjam o caráter ou deformam. “Silvios Santos” como ícone, e tantos outros iguais a ele, fornecem alienação: sorteios, para todos a se delirarem milionários, mais bundas morenas, bundas loiras, nos intervalos dinheiros, nos outros intervalos, que não dão trégua à formação do caráter do povo surgem as propagandas como a profa. Denise destacou: “- Levo vantagem em tudo!”; “Skol, Homem, Skol!”; “Marlboro, terra de homens!”; ”Viagara! Levita! Cialis!

E nós videotas ficamos calados, passivos, ouvintes, permitindo a constituição desta caracterologia e com pouca possibilidade de exercer algum movimento a não ser estes raros, que a Prof. Dra. Denise corajosa, resolveu realizar.

O corrupto, eu não tenho a menor dúvida psiquiátrica clínica, é um delirante. Ele procura o desejo inatingível, ele morre corrompendo. Por que? Porque não tem a possibilidade de incorporar, introjetar, constituir em si mesmo o que é lei ou o que é limite, o que é sociedade, o que é o outro. O corrupto é psicopata por que não tem a possibilidade ética de viver o limite que a lei estabelece. É aquele que não tem compreensão de sua vida com outros. É aquele que não cria o conceito de responsabilidade, muito menos a exerce. É aquele que acredita que tudo pode e tudo quer. O corrupto é aquele que é a própria lei de si mesmo. É aquele que é sócio da República e vive em outro país. Nada realiza pelo país que adotou muito menos pelo país que nasceu e vilipendia.

Quando surgem as épocas de eleição ao cobiçado cargo em que precisa dos votos, e todos sabemos dessas histórias, recebe beijos dos pobres, e em seguida passa álcool no rosto e nas mãos. Ele só tem um único projeto psicopático: avançar na coisa pública.

Cada corrupto é semelhante àqueles nazistas de Nurenberg, que foram julgados e enforcados. Por que eu os comparo aos nazistas de Nurenberg? Porque produzem no nosso Brasil não somente a miséria, a fome, a exploração, como campos de concentração de prostituição de todas as idades em todas as lindas praias de Alagoas, Maranhão, Bahia, Pernambuco, e todas as outras. Meninas e meninos de nove, dez anos de idade que estão nas infinitas cidades de deus, destruídas, vendidas, prostituídas. Nos Pelourinhos dos nossos Brasis falsos turistas ou seja estrangeiros que vem aqui para auxiliar a destruição do caráter de todas as nossas filhas e filhos de nove, dez, onze anos. E nós, videotas, não vemos.

A responsabilidade de tudo isso é simples e fácil de ser deduzida, é elementar aritmética: quando se enfia a mão na caixa da coisa pública, calcula-se a cada milhão de dólares, como eles facilmente falam, quantas crianças morrem, quantas escolas não se realizam, quantas penitenciárias não se constituem, quantas juventudes se deformam, quanta miséria...Eu também tenho um desejo, para todos os corruptos a lei. Jamais a pena de morte. A pena de vida.
Muito obrigado.

Debate

Profª. Liliana Wahba: Iremos abrir agora o debate. As pessoas podem dirigir as perguntas pelo microfone ou mandar por escrito.

Platéia: Boa noite. Relacionado ao tema da corrupção, eu gostaria de saber como a reforma política, ao delegar poderes a setores privados, principalmente na área da saúde e educação, tirando poder financeiro para gerir as coisas de forma direta do Estado, pode influir na corrupção. Como isso pode evitar que ocorra corrupção dentro do Estado?

Senador Eduardo Suplicy: As recomendações que foram feitas são muito positivas. Mas, sobretudo, a norma da transparência nos atos da administração pública em tempo real constitui uma das melhores maneiras para prevenirmos os atos de corrupção. No que diz respeito à reforma política e tudo aquilo que se passou sobre o financiamento do caixa dois, ainda há três semanas, os doze senadores do PT propuseram à direção nacional do partido, que a partir de hoje, se registre em tempo real, diariamente, na rede mundial de computadores, isto é, na Internet, todas as fontes de receitas e de despesas das campanhas políticas. Também assumimos o compromisso de não utilizarmos caixa dois.

Tive uma experiência na Câmara Municipal de São Paulo em 89/90 quando presidi aquela instituição e coloquei como norma que a melhor forma de prevenir a irregularidade seria tornar tudo transparente. Por exemplo, as reuniões da mesa diretora eram transmitidas em tempo real pelo sistema de som da casa. Isso fazia com que qualquer vereador, ou funcionário pudesse saber o que estávamos decidindo. Naquela oportunidade, também, resolvi publicar no Diário Oficial o nome e a remuneração de todos os servidores da Câmara Municipal para a população saber quanto cada um ganhava. As ex-esposas dos servidores ficaram sabendo quanto eles ganhavam. Eu falei: isso é mais do que justo, e é da lei que elas possam ter informações de quanto ganha seu ex-marido. Na ocasião pedi pareceres a três professores de direito, e os três me disseram que era normal e justo que fossem publicados àqueles dados, e assim o fiz.

Para dar alguns exemplos de coisas práticas, a norma de divulgar em tempo real as fontes de receitas e de despesas já foi aprovada pelo Senado, e foi para a Câmara dos Deputados. Trata-se de uma proposição instituindo a transparência das demonstrações financeiras e procedimento de todas as empresas que transacionam com o governo. Considero tal procedimento muito positivo, pois tende a inibir práticas ilegais.

E com respeito ao que fazer mais diretamente com os recursos públicos, o próprio exemplo da Renda de Cidadania constitui um exemplo nesta direção. A sua pergunta me dá margem de poder explicar o que representa a Renda Básica de Cidadania, aprovada pelo Congresso Nacional em 2003 e sancionada pelo presidente Lula em 08 de janeiro do ano passado, para ser instituída a partir de 2003 gradualmente, pois seria difícil instituí-la de uma hora para outra. Mas, qual é a definição da Renda Básica de Cidadania? É o direito de todas as pessoas, não importa a sua origem, raça, sexo, idade, condição civil, ou mesmo socioeconômica de partilharem da riqueza da nação através de uma modesta renda, que na medida do possível, será suficiente para atender às necessidades vitais de cada um. Isso significa que você também vai receber. Toda e qualquer pessoa nesta sala quando instituída plenamente. Mas como vai se pagar isso ao Pelé, a Xuxa, ao Antonio Ermírio de Moraes, a todos nós aqui na mesa mesmo que não estejamos precisando? Sim. Obviamente o Briganti vai contribuir como eu, para que todos nós e todas as pessoas na sociedade brasileira venhamos a receber.

Quais as vantagens desse mecanismo? Estaremos eliminando toda e qualquer burocracia envolvida em saber quanto cada um ganha no mercado formal ou informal; vamos eliminar qualquer sentimento de estigma de a pessoa dizer: eu só recebo tanto por isso mereço tal complemento de renda. Vamos eliminar também o problema da dependência que normalmente ocorre quando há um mecanismo que diz que se você não recebe até um dado valor você tem direito de receber um complemento de renda. Daí você acaba criando uma situação em que a pessoa, o chefe de família diz: eu estou para iniciar uma atividade de trabalho que vai me dar este tanto, mas se eu iniciar essa atividade o governo vai tirar isso que estava me dando, então fica criada uma armadilha do desemprego, da pobreza, e não vou aceitar essa atividade de trabalho. Se todos receberem uma Renda Básica ao direito da cidadania então a cada um, a todos, qualquer atividade econômica é onde a pessoa vai pelo seu esforço, trabalho, talento, criatividade ganhar um extra, e sempre haverá estímulo para isso. E do ponto de vista da dignidade, da liberdade, do ser humano, será muito melhor para cada um saber que nos próximos doze meses, e a cada ano, e com o progresso do país você vai ter aquela renda como um direito que a ninguém será negado. O professor diz em Desenvolvimento com Dignidade, desenvolvimento para valer deve significar maior liberdade de opção para toda e qualquer pessoa. Isso se aplica a todos nós, inclusive para os personagens do Cidade de Deus, ou àquelas pessoas que muitas vezes são levadas a aceitar uma atividade econômica humilhante ou que coloca a sua vida em risco, se ela tiver uma Renda Básica de Cidadania obviamente ela poderá dizer: eu não vou aceitar essa atividade até que tenha outra que seja mais condigna com a minha vocação. Portanto, aumenta o grau de liberdade, inclusive o poder de barganha das pessoas perante as empresas, os patrões, etc. Por outro lado, muitos aqui podem estar refletindo: mas será que se você garantir uma Renda Básica para toda e qualquer pessoa não estimulará a ociosidade? O que você vai fazer com as pessoas com tendência à vagabundagem? Essas são relativamente poucas.

Em 1918 em Caminhos para a Liberdade, Bertrand Russel propôs o direito de todos receberem o suficiente para sua sobrevivência, e daí para frente cada um receberia o que fosse necessário, ou de acordo com seu trabalho, esforço, etc. Ele já observava que todas as pessoas normalmente têm uma vontade imensa de fazer coisas produtivas, e gostam de fazê-las. Tantas coisas são necessárias para os seres humanos realizarem, e normalmente muitas não são remuneradas no mercado como, por exemplo, as mães que amamentam suas crianças, nós, pais e mães, quando estamos cuidando das nossas crianças pequenas, cuidando de não se machucarem, de se alimentarem, de se desenvolverem, ou quando nossos pais e avós são mais velhos e precisam da nossa assistência, ou tantas atividades que gostamos de fazer para a nossa comunidade no âmbito da universidade, estamos fazendo, que eu saiba, por livre e espontânea vontade, voluntariamente gostamos de fazer.
Viemos aqui por prazer, por alegria de termos este encontro que para nós está sendo produtivo. Nas comunidades, nas igrejas, nos bairros, nos clubes, nos partidos há várias atividades que fazemos voluntariamente. Também há atividades que às vezes não tem valor no mercado, na hora em que são feitas, mas mais tarde são reconhecidas como de grande valia. A começar com os exemplos de Van Gogh e Amedeo Modigliani que, quando pintaram as suas obras, mal conseguiam sobreviver tentando vendê-las. Ambos acabaram ficando doentes precocemente e faleceram relativamente cedo. Hoje as suas obras são vendidas por milhões de dólares.

Há um lugar do mundo onde se instituiu um dividendo igual para todos os seus habitantes, desde que ali residam há pelo menos um ano. É uma experiência original e notável que vem alcançando resultados positivos por mais de duas décadas. Durante os anos 60, o prefeito Jay Hammond, de Bristol Bay, uma pequena vila de pescadores no Alasca, observou que de lá saía uma grande riqueza na forma da pesca, mas que muitos de seus moradores ainda continuavam pobres. Propôs, então, a criação de um imposto de 3% sobre o valor da pesca, que seria destinado a um fundo que pertenceria a todos. Inicialmente, enfrentou enorme resistência. Propôs, então, que diminuíssem o valor do imposto sobre a propriedade, mas, cinco anos depois, acabou ficando com ambos.

Inicialmente, Hammond pensou em pagar dividendos proporcionais ao tempo de residência de cada cidadão no estado. Entretanto, um grupo de promotores questionou a constitucionalidade desse procedimento, que poderia ferir o critério de igualdade de direitos. Isso levou o governador, em 1980, a enviar nova mensagem propondo que 50% dos royalties fossem destinados ao Fundo Permanente do Alasca, instituindo-se um pagamento igual, anualmente, a todos os habitantes do estado.

Os recursos assim levantados foram aplicados de maneira transparente, prudente e responsável, diversificando-se: em títulos de renda fixa, ações de empresas do Alasca, contribuindo para diversificar a sua economia, dos Estados Unidos, internacionais, inclusive do Brasil, e empreendimentos imobiliários. Em dezembro de 2005, a carteira de ações do Fundo Permanente do Alasca tinha ações de 16 empresas brasileiras, o que significa que nós, brasileiros, contribuímos para o sistema lá existente. O patrimônio do Alaska Permanent Fund evoluiu de US$ 1 bilhão, em 1980, para mais de US$ 32 bilhões, em 2005.

Cada pessoa residente há um ano ou mais no Alasca, entre 1o. de janeiro e 31 de março deve preencher um formulário de uma página informando nome, endereço residencial e do trabalho, se saiu do estado, o motivo da viagem e mais alguns dados. O responsável por crianças e adolescentes até 18 anos deve preencher o formulário por elas. Os dividendos serão recebidos pelo responsável que, conforme as informações disponíveis, normalmente os deposita em cadernetas de poupança para que os menores possam usufruí-los mais tarde. Duas pessoas, também residentes no Alasca, testemunham a veracidade da declaração.

Vamos supor que a professora Denise Gimenez Ramos estivesse vivendo no Alasca. De 31 de janeiro a 31 de março escreveria: sou residente neste endereço, trabalho aqui na PUC, se viajei no ano passado foi por tal e tal motivo, duas pessoas que lhe conhecem diriam que essa informação é verdadeira, poucas informações a mais, não precisa dizer quanto ganha, e assim na primeira semana de outubro se estivesse lá residente no Alasca teria recebido nos primeiros anos trezentos, depois quatrocentos, hoje cerca de mil dólares per capita. Em casa quantos são na sua família? Três. Então teria recebido neste ano que passou cerca de três mil dólares em casa com o direito de partilhar o direito da nação. O Alasca distribuiu nos anos 90 por este mecanismo 6% do seu produto interno bruto para os seus hoje setecentos mil habitantes.

Qual foi a conseqüência deste procedimento? O Alasca se tornou um dos estados (norte americanos) mais igualitários. Portanto, quando a professora Maria Garcia propõe que uma das maneiras de eliminar a corrupção é, inclusive, diminuindo as desigualdades, aí está um bom mecanismo para essa finalidade.

Platéia: A professora Denise receberia três mil dólares?

Senador Eduardo Suplicy: A família. Mil por pessoa, igual para todos. De um mês a cento e vinte anos de idade.

Platéia: Ela receberia porque mora em São Paulo?

Senador Eduardo Suplicy: Não. Se ela estivesse residindo no Alasca um ano ou mais.

Platéia: Mas, eu estou passando para cá. Se ela morasse no Maranhão não receberia?

Senador Eduardo Suplicy: Receberia. Pela lei que foi aprovada no Brasil todos os brasileiros virão a receber. Já foi aprovada a lei. Vai ser instituída gradualmente. Agora, se você achou boa a idéia prezado Briganti, então pode perfeitamente dizer ao presidente Lula: institua logo porque diz a lei: será instituído gradualmente começando pelos mais necessitados. O bolsa família que hoje beneficia oito milhões de famílias, no ano que vem onze milhões e duzentas mil, pode ser visto como um passo na direção da Renda Básica da Cidadania, e essa é a interpretação correta. Com o tempo todos iremos receber. Quando vai iniciar isso? Quando os psicanalistas e os junguianos, os lacanianos e freudianos, todos disserem ao presidente: Está na hora de instituir.

Prof. Carlos Briganti: Senador, há pessoas analisáveis e outras não analisáveis.

Senador Eduardo Suplicy: Foi aprovada a lei. Está aqui no meu livro, pode ler.
Os recursos virão a cada ano, e o poder executivo consignará no Orçamento Geral da União os recursos necessários aos respectivos cortes de despesas e aumentos de receitas necessários para se prover esses recursos.

O programa Bolsa Família está se expandindo rapidamente. Já vai de oito milhões para onze milhões e duzentas mil famílias. Corresponderá a quarenta e cinco milhões, ¼ da população brasileira em meados do ano que vem. Para que o Presidente da República, seja o presidente Lula, ou o próximo, ou ele próprio, diga que vai agora aplicar a lei que ele próprio sancionou depende muito de você chegar para ele e falar: passe logo do bolsa família para a Renda Básica de Cidadania. Eu digo você e cada um de nós. Estou dizendo todos os dias isso, por isso que estou falando disso daqui. É preciso persuadir a todos. Porque eu já persuadi o Congresso Nacional a aprovar a lei. Já persuadi o Ministro da Fazenda Antonio Palocci a transmitir ao presidente que como era gradual seria factível e ele poderia sancionar, e ele sancionou. Então como é que chegaremos lá?

Profª. Liliana Wahba: Muito bem, gostaria agora de pedir a cada um dos participantes para encerrar o nosso debate que apresentou idéias tão ricas e frutíferas. Farei uma pergunta para cada um deles para fechar a sua fala. Se cada uma das pessoas aqui na mesa, pudesse implantar, com a ajuda do nosso senador tão simpático e apreciado, se pudesse implantar uma lei, uma lei que estivesse de acordo com o seu pensamento, o seu parecer, uma lei que ajudasse a solucionar, a sanar, ou ir a caminho de uma solução desse problema tão sério e tão grave que nos aflige, que tipo de lei ou que tipo de medida gostaria de ver acontecer e ser implantada? Vamos começar pela Denise.

Profª. Denise Ramos: Seria possível a lei de falar a verdade acima de tudo? Falar a verdade sugere um profundo conhecimento de si mesmo. Na minha palestra, fiz umas breve reconstrução histórica dos traumas que fundaram a nossa nação. Essa revisão possibilita a encararmos nossos traumas e sofrimentos de frente, abrindo um caminho para a cura. A verdade é o começo da cura. Então, a consciência de onde viemos, de quem somos, a consciência de nossos defeitos e qualidades é o melhor remédio para a corrupção.

Profª. Maria Garcia:Creio que uma medida eficaz seria conscientizar todas as pessoas da responsabilidade pessoal. A responsabilidade é pessoal. Não basta nós dizermos que a sociedade isto ou aquilo, a sociedade somos nós. Eu nunca fui apresentada à sociedade, eu sempre fui apresentada a pessoas, então eu creio que se cada um de nós não compactuar com esse estado de coisas que foram alertadas aqui na aula da professora Denise como cada um de nós é responsável pelos pequenos grandes atos de corrupção, e isso se alastra. Porque a corrupção em latim também quer dizer ferrugem, uma coisa que se estraga. E realmente este é um mal que se alastra pela sociedade. Agora, cada um de nós tem a sua própria trincheira aqui, na sala de aula, na sua casa, na rua, no ônibus, nunca compactue com atos de corrupção. Não seja você um agente corruptor. Mas, trabalhe contra isso nos pequenos atos em que você se demonstre uma pessoa ética, uma pessoa íntegra, e assim vai se espalhando pela sociedade como a corrupção se espalha. É uma contra corrupção. Você mesmo é um agente contra corrupção. Vamos começar por cada um de nós, e isso realmente tem um valor muito grande. E lutar nossa própria trincheira contra esse estado de coisas.

Prof. Carlos Briganti: Eu fui formado médico sobre a pressão da Santa Casa de Misericórdia, com muita pobreza, recursos escassos, ou seja, a realidade que é outorgada a um Brasil dos desfavorecidos. Não fui formado na Faculdade de Medicina dos Palácios de Brasília. Proporia uma lei pela qual estariam obrigados durante trinta dias, vinte e quatro horas por dia, todos os políticos se instalarem em alguma “Cidade de deus” do Brasil e trabalharem nos Prontos Socorros, de preferência os infantis. Eu tenho certeza que os olhos perpetuariam para sempre na consciência de todos os políticos uma reflexão sobre a realidade miserável da imensa maioria do povo deste país.

Senador Eduardo Suplicy: A sua pergunta Liliana, e as respostas dadas pela Denise Ramos, Maria Garcia e Carlos Briganti, me fazem reforçar o sentido, inclusive das coisas que eu aprendi nesse breve contato, mas espero aprender muito mais nessas imagens psíquicas do inconsciente coletivo que constituem um patrimônio comum. Mas, há três situações que ilustram a importância de se dizer à verdade e de as pessoas serem responsáveis tal como enfatizou a profa. Maria. Vou aqui exemplificar isso com a história de momentos cruciais de três chefes de Estado.
Primeiro, Richard Nixon, após vencer George McGoen, foi denunciado pelo New York Times que afirmava que a Casa Branca tinha espionado o edifício Watergate, local onde se planejou a campanha democrática. Primeiro ele negou e os seus Secretários de Estado e da Justiça também negaram o episódio. Depois, pouco a pouco, graças às informações fornecidas pelo chamado garganta profunda - que este ano revelou a sua identidade, fez com que o presidente perdesse sua credibilidade. A situação chegou a tal ponto que Nixon foi obrigado a renunciar.

Segundo exemplo, Bill Clinton foi reeleito para o segundo mandato, com muito sucesso na área econômica, Mas, eis que um jornal anuncia que ele estava namorando uma moça chamada Mônica Levinsky. Sua primeira reação foi: nunca tive sexo com aquela mulher. Ou pelo menos na interpretação dele. E aconteceu que paulatinamente, a imprensa foi revelando mais e mais os episódios que envolviam os dois, e então ele refletiu melhor e falou com sua esposa Hilary e contou toda a verdade. Está tudo muito bem documentado pelo livro da própria Hilary e no dele, My Life. Eles dialogaram, e quando o Senado já tinha autorizado que se começasse o seu impeachment, ele resolve então falar a verdade: de fato eu cometi algo que não deveria. Peço perdão a minha mulher Hilary, a minha família, ao povo norte americano por ter cometido esses atos, e aí como que percebendo o consciente ou inconsciente coletivo do povo americano, o Senado resolve permitir que ele conclua o seu mandato e não promove o impeachment.

Terceiro episódio, em 1969, na República Democrática Alemã depois de quinze ou vinte anos de nazismo, pela primeira vez em quarenta anos, o parlamento alemão elege um chanceler de origem humilde, operária, Willie Brant. Foi o primeiro chanceler da República Federal Alemã que viajou à Alemanha comunista de trem, e foi aplaudido nas estações. Foi até o cemitério de Auschwitz, na Polônia, se ajoelhou, e pediu perdão pelas vítimas do Holocausto. Por essas e outras atitudes foi laureado em 1971 com o prêmio Nobel da paz.

No início dos anos setenta, a Alemanha estava passando por uma fase de prosperidade, e eis que em 1974 foi anunciado pela imprensa que o assistente do Chanceler Brant era um espião da República Democrática Alemã, da Alemanha comunista. O que faz Willie Brant? Escreve uma carta ao presidente da Alemanha dizendo, e explica ao povo: eu não sabia que este homem era um espião. Entretanto, fui eu que o escolhi, e por causa disso eu renuncio ao meu mandato.

O que ocorreu com Willie Brant a partir disso? Continuou sendo considerado um grande estadista. Tornou-se presidente de honra do Partido Social Democrata, e foi eleito presidente da Internacional Socialista entidade que congrega os Partidos Sociais Democratas no mundo. Ele também foi eleito representante da Alemanha no Parlamento Europeu. Faleceu em 1982 aos 78 anos, reconhecido como um dos maiores estadistas alemão.

Esses três exemplos nos fazem pensar e refletir sobre a questão de dizer a verdade. E com respeito a que lei, tinha dito a pouco que toda lei que vai proporcionar maior transparência na administração, como a que coloca na internet os dados sobre todos os gastos e concorrências, sobretudo, inclusive gastos unitários conforme uma proposta do senador João Capiberibe que já foi aprovada pelo Senado Tudo que gera maior transparência vai resultar em maior verdade e minimizar os atos de corrupção. Muito obrigado a vocês.

Profª. Liliana Wahba: Muito obrigado. Eu quero parabenizar a todos pelo encontro de hoje, que começou com uma brilhante palestra da professora Denise, seguida pelo senador Eduardo Suplicy, que é reconhecido como um lutador pela ética, pela transparência na vida pública, e as brilhantes apresentações desta mesa, que seguramente vão fertilizar as nossas idéias e, quem sabe, contribuir para uma realidade melhor com a qual nós todos sonhamos e desejamos. Muito obrigado a todos vocês.

 

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